segunda-feira, 31 de março de 2008

goya

Robert Hughes é um dos escritores e/ou intelectuais que eu mais admiro. Já escrevi aqui sobre o impacto em minha formação da série "O choque do novo", que tratava do modernismo nas artes plásticas (ele produziu esta série para a BBC e ela foi veiculada pela TV Cultura em meados dos anos 1980). Ano passado li "Barcelona", um belo ensaio dele sobre a capital dos catalães e li um terço de sua autobiografia ("things i didn't know", ainda vou resenhá-la aqui - quando terminá-la, claro). Este "Goya" comprei como peça de arte, para ficar folheando na sala, admirando as muitas ilustrações e gravuras, mas quem disse que eu iria resistir ao texto? Claro, o livro é belíssimo, capa dura, muito bem editado, mas é no texto que encontramos o melhor dele. O livro começa como sua autobiografia, descrevendo um grave acidente de carro em que ele se envolveu. O projeto de escrever um texto grande sobre Goya era antigo, mas só após o acidente ele percebeu que já era hora de dedicar-se de fato ao tema (antes que fosse tarde). Sorte nossa este acidente (sendo um tanto politicamente incorreto). O texto não é acadêmico, mas é rigoroso. Este sujeito escreve como se estivesse dando uma excelente aula, os parágrafos são vívidos e convincentes. Que coisa admirável. Nada do que eu já vi ou li deste sujeito é ruim. Recomendo este livro com a maior convicção. Não há muito o que antecipar. O livro acompanha cronologicamente a vida de Goya e é repleto de informações interessantes sobre a Espanha do século XVIII. Muitos dos mitos e lugares-comuns atribuídos a Goya são discutidos no livro (não, ele não era um irônico pintor da corte que ridicularizava seus nobres e aristocratas modelos; a maja desnuda não era a duquesa de Alba; o Goya pintor ainda não é um artista moderno que pinta o que quer e despreza encomendas, mas é um ilustrado que despreza a estupidez humana em primeiro lugar; e por aí vai.) Assim como no "Barcelona", onde suas descrições das massas e volumes escultórios das igrejas e prédios públicos deixam o leitor sem fôlego, neste "Goya" as descrições dos quadros é ao mesmo tempo didática e seminal. Ele mostra um caminho para o olho do leitor, mas nunca menospreza a inteligência de quem pode fazer uma leitura diferente de cada um dos quadros. Qualquer leitor interessado em entender um tanto a alma espanhola (que nestes tempos bicudos têm se mostrado ambígua como nunca) ganha muito em se aventurar pelas belas páginas deste livro. As descrições das séries de gravuras (Caprichos, Disparates, Desastres, Tauromaquia) são soberbas. Ainda encantado paro aqui citando um trecho da resenha deste livro escrita pelo prof. Teixeira Coelho: "Hughes vai rapidamente ao ponto: Goya nunca foi trivial, e o animou o desejo de conhecer e contar a verdade com enorme sentido de urgência - algo que, diz Hughes, a arte que veio depois perdeu. Opiniões cortantes são discutíveis - mas delas são feitos os textos que vale a pena ler.". Bom divertimento.
"Goya", Robert Hughes, tradução de Tuca Magalhães, editora Companhia das Letras, 1a. edição (2007) capa dura 16x23cm, 504 pág., ISBN: 978-85-359-0999-9

domingo, 30 de março de 2008

olhos de morcego

Leonardo, gentil, mandou-me este exemplar pelos correios com dedicatória e tudo. Lembro de quando o conheci, através de Maria Luiza, em visita para entregar-me um livro recém saído da gráfica. É vero: com ele nunca ficamos com saudades da boa educação. Olhos de Morcego é um pequeno livro com dez contos curtos. Em cada um o narrador é sempre alguém incapaz de entender o que acontece a seu redor, pois a vida é mesmo muito dura. Fragmentários, os contos são narrativas do mundo confuso e trágico dos mais pobres e desvalidos dentre os seres humanos deste início de século que é confuso e trágico ele mesmo. O título se mostra bastante adequado: os olhos dos morcegos são limitados. Mas quem disse que os morcegos dependem dos olhos para se locomover? Assim como os morcegos os párias sociais simplesmente existem, não podem ser modificados. Preciso registrar que não fui arrebatado de pronto pelo livro. Os contos são sempre bem escritos, mas alguns, em que pese o fato de serem muito tocantes, soam algo irrelevantes para mim, que sou quase sempre avesso a valorar o mundo dos párias. Mas isto é provavelmente um problema meu e não do livro. Um dos contos que mais gostei me lembrou o Faulkner de "o som e a fúria", por conta de um personagem/narrador que é deficiente mental. Estas dificuldades que Leonardo cria para si mesmo valorizam o livro e tornam seu esforço digno de uma leitura mais atenta.
Olhos de morcego, Leonardo Brasiliense, editora 7Letras, 1a. edição (2007) brochura 13x20cm, 112 pág., ISBN: 978-85-7577-422-9

domingo, 23 de março de 2008

poemas de kaváfis

Ano passado li o Quarteto de Alexandria, de Lawrence Durrell, e lá fui apresentado ao mundo mágico dos poemas de Konstantinos Kaváfis. Eu conhecia na verdade um ou outro dos poemas dele por conta de outros entusiastas, como Celso Braida, um filósofo amigo meu, que traduziu uma seleção deles anos atrás e don Ronái Rocha, que me mostrou os livrinhos. No ano passado mesmo encontrei esta bela edição bilíngue da Odysseus, dando conta que a íntegra dos 154 poemas de Kaváfis tinha sido pela primeira publicada cá no Brasil. Comprei de pronto e só agora nestas férias longas de Santa Maria tive a chance de ler com calma e deleite os poemas. Konstantinos Kaváfis nasceu e morreu em Alexandria, no Egito, mas sempre escreveu seus poemas em grego. Consta que era um homem bastante solitário, mas esquecido dos homens e dos muitos problemas pelos quais passou o mundo durante sua vida (1863-1933), construiu aos poucos uma obra respeitadíssima. Muitos escritores (não apenas gregos ou egípcios) não escondem seu débito literário a ele, apesar de apenas curtos 154 poemas seus terem sido produzidos. Nikos Kazantzakis disse que "escrevendo e retocando obstinadamente seus poemas até a forma com que desejou que se tornassem conhecidos do mundo, Kaváfis criou uma das obras poéticas mais originais de seu tempo". Os poemas estão publicados na ordem cronológica em que foram escritos. A maioria envolve temas históricos e/ou mitológicos que sempre incluem alguma reflexão plena de erudição. Mas o curioso é que ao ler lentamente estes poemas aos poucos fui lembrando de coisas minhas, sentimentos meus, que ainda não tinha racionalmente verbalizados. Esta é a mágica de certos livros, que nos escolhem antes de nós os escolhermos. Os poemas de Kaváfis, como um oráculo, me revelaram alguns temas e mesmo dúvidas bem entranhadas. Que experiência ímpar. Ao mesmo tempo que são enigmáticos e cheios de cifras a serem desvendadas os poemas algo que nos fortalecem, lembrando-nos que há mesmo pouca coisa de nova sobre o sol (além do verniz útil e fundamental da ciência e da tecnologia, sem os quais seríamos os mesmos homens que tateiavam a verdade nas planíceis duras da grécia). No final do livro boa parte dos poemas receberam curtas explicações temáticas da tradutora, que também assina uma curta introdução biográfica. Aprendi um par de coisas lendo este belo livro, que manterei por perto por um tempo, para tentar congelar esta sensação confortável (porém muito provavelmente enganadora) de se estar um tanto mais próximo de entender a alma humana.
"Poemas de K. Kaváfis", Konstantinos Kaváfis, tradução de Ísis Borges da Fonseca, editora Odysseus, 1a. edição (2006) brochura 14x21cm, 406 pág., ISBN: 85-88023-79-2

quinta-feira, 20 de março de 2008

a caixa preta

Eu estava sem nada a mão e entrei decidido na CESMA para comprar algo para ler na hora do almoço de um daqueles dias compridos das férias santamarienses. Vi este livro na estante, comprei e sai lendo na rua. O livro é epistolar, uma seqüência de cartas, notas e telegramas trocadas por um grupo inusual de personagens do Israel contemporâneo (algo em torno da década de 1970, após a guerra dos seis dias). Um escritor e professor respeitado, já há muito separado da mulher se corresponde com ela através de um advogado para resolver uma pendência com seu único filho. O atual marido, o filho, uma cunhada distante, o pai demente no hospital, outros advogados, outros personagens menores, todos escrevem e se expressam sem parar, como se a palavra fosse mesmo a única forma de salvação de cada um. A culpa tem um grande papel neste livro. A culpa de ter feito algo, de não tê-lo feito, de não ter tido a chance de corrigir algum erro. Mas a cada carta, a cada página lida, me assombrava uma questão: claro que já li este livro, já sei desta história, mas como é possível tê-la esquecido tão completamente. Na verdade a trama eu havia esquecido, mas passagens específicas pipocavam aqui e ali. Mas eu me lembrei de súbito porque não gostei da primeira vez: é um livro piegas, piegas de uma forma atroz, como se o autor não soubesse mais como terminar a história e a arrastasse carta após carta. Tudo bem, a vida também é assim, estendemos as escolhas e as situações até o ponto limite, mas na vida ao menos somos mais coerentes nas mentiras que contamos até o final (o autor leva suas metáforas até o final mas os personagens do livro mudam muito de opinião para o meu gosto). Há paralelos curiosos entre este "a caixa preta" com os livros que li recentemente de Roth e Begley: sexo, câncer, dignidade frente à morte, humanismo, o imponderável, o estoicismo. Procurei nos meus guardados, achei meu velho exemplar original deste livro, marcado pelo tempo. Nas guardas escrevi miúdo: "7.8.95-10.8.95, início interessante + o final moral (ou amoral) me enerva". Talvez eu não tenha mudado tanto nestes últimos treze anos afinal de contas.
"A caixa preta", Amós Oz, tradução de Nancy Rozenchan, editora Companhia das Letras, 2a. edição (2005) brochura 14x21cm, 244 pág., ISBN: 85-7164-356-3

quarta-feira, 19 de março de 2008

instalação grande sertão

Noutro dia vi uma bela caixa com um exemplar da edição comemorativa dos 50 anos de Grande Sertão: Veredas nas prateleiras da CESMA. Na hora tive a certeza que ela iria mudar de endereço e enfeitar uma das minhas prateleiras de livros. Li que a editora Nova Fronteira havia publicado ainda no início desta década uma edição digamos definitiva da obra, feita a partir da última edição corrigida pelo próprio autor. Já esta edição comemorativa foi pensada em termos mais eloquentes, para de fato despertar novo interesse por todos os que já conhecem o livro bem como por aqueles que ainda estão por conhecê-lo. A idéia surgiu inspirada pela "instalação" sobre Grande Sertão: Veredas que Bia Lessa preparou ainda em 2006 para a abertura do Museu da Língua Portuguesa na Estação da Luz, em São Paulo. Quem teve a chance de ver esta "exposição" deve ter sido arrebatado de pronto, pois trata-se de um belo trabalho onde vários dos aspectos mais conceituais e herméticos do livro são apresentados visualmente (e auditivamente) de forma muito eficiente e elegante. A instalação tinha vários elementos: o mar das páginas datilografadas de todo o livro, com as marcas de correção feitas pelo próprio autor, pairando sobre nossas cabeças por todo o espaço; as trilhas temáticas a serem percorridas, à vontade do visitante, seguindo o caminho de alguns dos personagens; as pilhas de tijolos e materiais de construção, onde se construiam palavras; os pingos d'água que ondulavam as palavras espelhadas de uma superfície; as "torres de observação", onde o público mirava de longe trechos escondidos do livro, eventualmente filtrados por placas de acrílico; os comentários longos e contínuos de críticos e contemporâneos de Guimarães Rosa, sendo projetados em uma sala totalmente vermelha (como o inferno?); aquele mapa gigante das Minas Gerais, onde os itinerários dos personagens e da história são indicados com precisão; os muitos fios vermelhos amarrando e costurando todos os caminhos e leituras, como restos de fios de Ariadne. Enfim, uma bela exposição (eu vi na verdade uma remontagem dela, no MAM do Rio de Janeiro, mas isto é detalhe besta). Assim, a edição comemorativa incorporou ao livro de Rosa, na forma de um catálogo, a própria instalação. Li e vi o catálogo com imenso prazer, lembrando da exposição, do dia agradável no Rio, onde prometi reler o Rosa (mas quem disse que eu cumpro as promessas feitas quando estou emocionado?). De brinde o catálogo ainda inclui um DVD com depoimentos em audiovisual de Antonio Callado, Antonio Candido, Décio Pignatari, Eduardo Coutinho, Haroldo de Campos, Paulo Mendes da Rocha e Sérgio Sant'Anna, além da leitura por Maria Bethânia de trecho da obra. Um tremendo presente de ano novo, que só agora apreciei de fato. Um produto híbrido que honra na justa medida tanto o trabalho de Bia Lessa e quanto a obra de Guimarães Rosa.
Grande Sertão: Veredas, uma instalação, Bia Lessa, editora Nova Fronteira, 1a. edição (2006) brochura 17x24cm, 216 pág., ISBN: 978-85-209-1887-5

terça-feira, 18 de março de 2008

o caçador de pipas

Minha amiga Saionara, grande leitora, leu este livro há tempos e me perguntou várias vezes se eu não o queria emprestado, entusiasmada que ficou. Em algum ponto das férias fiquei com ele e li em um final de semana inspirado. O livro é um grande best-seller, virou filme, ganhou resenhas mil mundo afora. Difícil ler livros assim sem uma reserva extra, sem ter já uma idéia mais ou menos formada do assunto. Acabou não importando muito pois lê-se "O caçador de pipas" sem esforço. É mesmo um livro fácil de ler e mesmo nas passagens mais duras não ficamos tão chocados assim. O enredo envolve a culpa, senhora do tempo. No afeganistão da segunda metade do século passado dois garotos de etnia e classe social distintas convivem muito bem, são exímios caçadores de pipas, termo que se usa lá para o esporte de buscar as pipas que são cortadas por outras. Quem já viveu em uma grande cidade e já conviveu com legiões de garotos pulando telhados e muros para alcançar um pipa sabe do que se trata. Esta amizade é duramente afetada pelo caos gerado na guerra civil afegã e rompida definitivamente com a invasão soviética (ocorrida no final da década de 1970) e a instalação de um regime pró-soviético no afeganistão. O ponto central do livro envolve a incapacidade do garoto rico de defender o colega de uma brutal agressão que ocorre ao final de um festival dedicado ao esporte de empinar pipas e cortar as linhas de seus adversários. A partir daí o livro descreve a escalada de violência que assola a região e como o garoto rico e sua família acabam sendo expulsos e encontram exílio nos Estados Unidos. Anos depois, quando a vida nos EUA já propiciou que ele tenha uma vida bastante confortável e sua carreira de escritor profissional já está consolidada, eis que um sujeito que ainda vive no afeganistão entra em contato com ele solicitando um favor que envolve uma viagem de volta ao afeganistão ainda mais conturbado com o governo dos talibãs. Esta viagem dará ao agora homem maduro a chance de se redimir da traição a seu amigo de infância, mitigando sua culpa. A parte final do livro envolve este resgate de um passado sombrio. O que dizer deste livro? Claro que ele foi burilado à exaustão para provocar empatia do leitor. Os personagens não têm ambiguidade alguma e se apresentam sem máscaras. Sabemos de antemão que o livro terá um final redentor, que mesmo em uma situação extrema o humanismo vence de alguma forma o arbítrio. A volta do narrador para o afeganistão é apresentada como se ele fosse Orfeu indo aos infernos resgatar uma Eurídice que é ele mesmo, ou a melhor parte dele mesmo, sufocada quando ele traiu seu amigo. Não posso dizer que o livro é ruim, mas pessoalmente gosto mais de romances onde a análise da psicologia é um tanto mais sutil, com mais camadas e tramas embaralhando os sentimentos de cada um, mas, de qualquer forma, o livro acaba mesmo se sustentando.
"O caçador de pipas", Khaled Hosseini, tradução de Maria Helena Rouanet, editora Nova Fronteira, 1a. edição (2005) brochura 14x21cm, 368 pág., ISBN: 978-85-2091-767-1

segunda-feira, 17 de março de 2008

uma viagem ao tempo

"Uma viagem ao tempo dos castelos" é um livro para jovens. Foi escrito por duas professoras de história, portuguesas, para motivar seus alunos ao estudo da história de Portugal. É um livro de ficção escrito em linguagem muito direta com belas ilustrações de dois sujeitos (Dave Santana e Maurício Paraguassu). A idéia original do livro implica em uma viagem mágica para o passado. Dois irmãos que estavam aborrecidos com suas férias se vêem repentinamente nos tempos da fundação do reino de Portugal, em meados do século XII. Estas viagens são organizadas por uma organização secreta de cientistas. As autoras aproveitam esta situação para descrever a vida daquela época, o modo de viver dos cavaleiros e do povo. Não chega a ser um mundo completo recheado de bruxos, duendes e companhia, como o inventado pela senhora J.K.Rowling, mas lê-se esta histórica com genuíno prazer. A edição é muito bonita e bem cuidada. Certamente trata-se de um belo presente para aqueles filhos de amigos que ainda conseguem brincar de ler um livro bem escrito.
"Uma viagem ao tempo dos castelos", Ana Maria Magalhães e Isabel Alçada, editora Landy, 1a. edição (2005) brochura 15x24cm, 126 pág., ISBN: 85-7629-044-8

quinta-feira, 13 de março de 2008

reparação

Em algum ponto destas férias santamariense fui a uma festa na casa de minha amiga Vera, tudo muito divertido. Em algum momento fiz uma aposta boba envolvendo quem era Jack Johnson (para mim era o boxeador que recebeu uma homenagem do meu guru Miles Davis; mas para Betina era um músico americano que esteve recentemente no Brasil). A ambiguidade depõe contra o cara que aceita então comprei e fiz chegar "Reparação" do Ian McEwan às mãos de Betina, leitora contumaz e apostadora sábia, para quem perdi a aposta (explicar porque uma conversa sobre música nos fez chegar a uma aposta envolvendo um livro é algo mais transcendental.) Mas vamos a este belo livro. Nunca havia lido nada dele, mas vez ou outra já havia lido sobre ele com bastante entusiasmo. O Daniel Piza escreveu em seu blog de final de ano que Reparação tinha sido uma de suas melhores leituras do ano anterior. Aquilo estava ainda fresco na lembrança. Para quem gosta de uma história bem contada difícil encontrar algo melhor. A história principal envolve a interpretação de uma moçinha de uma cena que ela vê de longe, envolvendo sua irmã mais velha e um rapaz simples que é protegido de seu pai. A influência óbvia de McEwan é "Pelos olhos de Maisie", belo livro que li já há tantos anos. Algo acontece no livro e o desfecho é habilmente postergado. Há também algo que me lembra o "Memórias de Brideshead" e pinceladas sobre o comportamento dos homens e mulheres com seus atos falhos. Mas claro, estamos falando de um livro, e um livro é apenas uma obra de arte, não é a vida mesmo, pulsante e real, por mais fiéis e detalhistas que pretendemos ser. Há um truque no livro. Você não vai se importar de saber isto se continuar a ler. Esta é apenas uma opinião minha. O truque envolve escrever todo o livro e ao final mudar o autor, pois na verdade ao chegarmos a quarta parte do livro percebemos que quem escreve as três partes do livro que acabamos de ler é uma personagem do autor McEwan. Aí ele fala um tanto sobre como se dá o processo literário de inventar e gerenciar personagens, que por vezes são hábeis demais para se confinarem nas páginas de um simples livro. Ele confessa que poderia fazer o que quiser, a solução atribuída a autora das três primeiras partes é só uma entre várias outras. Enfim, o ser humano é multifacetado à exaustão, tudo o que ele faz é real e só isto importa, milhares de livros podem ser escritos sobre a mesma história, mudando passagens, modificando escolhas, invertendo os papéis. Não há perda de unidade entre as partes (que de fato são bem distintas entre si). O livro mostra que literatura digna do nome é mais que contar uma história banal. Em um certo sentido o livro mostra como uma pessoa pode tentar expiar seus pecados através da arte (claro, é um personagem que faz isto, mas será que nós também não tentamos isto o tempo todo, através da arte, da paternidade, do bom mocismo, da humanidade). O que dizer da trama? Mais tarde, depois da tal cena inicial vista de longe ela testemunha um outro encontro entre sua irmã mais velha e o rapaz, desta vez na biblioteca da família e, ato contínuo, uma cena noturna envolvendo uma de suas primas. Há muitas peripécias a partir desta sucessão de testemunhos (pensando retrospectivamente os azares da vida também são assim, mesmo o inverossímel teima em acontecer de vez em quando, mesmo a mais cruel e ríspida das situações ficcionais não têm a exuberância da vida real de cada um de nós). Finda a primeira parte (que ocupa mais da metade do livro) passamos as duas seguintes: uma descrição dos horrores da segunda guerra mundial (particularmente do desastre inglês na batalha de Dunquerque, no norte francês) e o período dos bombardeios sobre a Londres conturbada dos primeiros anos da década de 1940. Vários dos personagens são novamente apresentados nestes caminhos posteriores e discutem as situações tensas e seminais descritas na primeira parte. Todos envelheceram e reinterpretam as situações do passado à luz de um mundo mais complexo e cruel que o anterior. Mas devemos expiar nossos pecados afinal. Para uma das personagens a única forma de entender o que se passou é escrever um livro sobre o assunto. Belo truque metalinguístico do autor, é este o livro que nós acabamos de ler. Mesmo a arte tem lá suas limitações. Comentários rápidos: um filme foi produzido baseado neste livro, mas não o vi ainda (pobre Santa Maria, sem cinema há 280 dias.); a orelha do livro é mais ou menos ridícula e dispensável, para dizer o mínimo; há muito sobre as diferenças de gênero tanto na vida privada quanto no mundo acadêmico da Inglaterra da primeira metade do século passado, interessante; vou tentar ler mais livros deste sujeito, diz a hagiografia que ele, ganhador de prêmios importantes como o Booker Prize de 1998, é um tanto mais pesado nos demais livros. Veremos.
"Reparação", Ian McEwan, tradução de Paulo Henriques Britto, editora Companhia das Letras, 1a. edição (2002) brochura 14x21cm, 444 pág., ISBN: 978-85-329-0235-8

domingo, 9 de março de 2008

crônicas marsicanas

Alberto Marsicano é um excelente leitor de poetas difíceis, tradutor de Haikais, John Keats e William Blake, filósofo e músico, mas é melhor conhecido por ter tornado não exótico o Sitar no Brasil ou, melhor dizendo, ter tornado não exótico o Sitar em São Paulo, seu habitat natural. Quem já teve a oportunidade de vê-lo tocar o Sitar nunca se esquece dele: cabelos brancos e longos, olhar etéreo, dedos longos e suaves sobre o Sitar, trajes invariavelmente sempre brancos ou sempre negros. Eu o vi pela primeira vez em um Bloomsday paulista organizado pelo Haroldo de Campos (de quem aliás ele foi amigo pessoal por muitos anos). Este Crônicas Marsicanas, publicados recentemente pela LP&M é um livro curioso, em parte relatos de viagem, em parte caderno de anotação de poemas e traduções, em parte reflexões pertinentes que flertam com a sociologia. Um leitor desavisado pode se interessar por um tópico e abandonar o livro de vez no parágrafo seguinte, repleto de hermetismos. Não é um livro fácil (ele parece fácil, "gozadinho", vamos dizer assim, mas não é nada superficial). Muitos trechos têm indicações de um possível acompanhamento musical, basta você conectar-se no www.marsikano.tk onde dezenas de músicas dele estão disponibilizadas. Há no livro também dezenas de notas e indicações de leituras muito elucidativas. Acredito que há várias formas de ler este livro. Você pode ler apenas as histórias de viagem por lugares normalmente bem afastados do circuito Elizabeth Arden. Ele transita pelo Marrocos, Bombain, Katmandu, Siracusa, Macau, e de repente volta as cercanias da serra da cantareira em São Paulo. Claro que há uma irrelevância total neste livro. Porque afinal queremos dividir suas experiências pessoais, irreprodutíveis de pronto? Talvez pelo prazer de descobrir que cada um de nós pode fazer escolhas e usar seu tempo para viver qualquer história sem se preocupar com as escolhas e padrões dos outros. Cabe o registro aqui de que acho totalmente absurda a fé de Marsicano na existência de outros mundos, outras civilizações, fora deste pobre planetinha que habitamos, mas esta é outra história.
Crônicas Marscicanas, Alberto Marsicano, editora LP&M, 1a. edição (2007) brochura 14x21cm, 168 pág., ISBN: 978-85-254-1686-5