quarta-feira, 10 de setembro de 2008

uma criatura dócil

Estive na Bienal do livro de São Paulo e, claro, fui ao estande da Cosac & Naify. Don Renato Cohen sempre me pede para esperar a queima de livros da Cosac que acontece em novembro dentro do campus da USP, mas eu sou um incorrigível gastador. Namorei uns tantos, mas acabei comprando apenas dois, um romance curto de Samuel Beckett e este "Uma criatura dócil", romance igualmente curto de Fiódor Mikhailovitch Dostoiévski. Já faz tempo que ando pensando nos russos e estou devendo o início desta travessia literária, mas contorno a montanha e não me atrevo a enfrentá-la. Sou o fiel depositário de três tijolos de don Renato: Os demônios, Crime e Castigo e Os Irmãos Karamazov, ainda vou cumprir a promessa e lê-los na seqüência. Para afiar os dedos peguei "uma criatura dócil", romance que o autor chamou de "narrativa fantástica". A edição é muito bonita, claro, com ilustrações de Lasar Segall e dois ensaios que contextualizam o texto e as ilustrações. A história é simples, um sujeito ganha a vida em uma casa de penhores, explorando clientes e desesperos. Uma moçinha penhora um ícone da Virgem e para resgatá-la (pois trata-se do único objeto importante para ela) acaba por se casar com o vil proprietário da casa de penhores. Mais que um casamento o que se pactua é um sistema de humilhações cotidianas e degradações morais, pois há mais assimetrias entre eles que um afeto pode mitigar: assimetrias de classe, de idade, de poder (e claro, sexo.) O narrador é o agiota, transtornado, louco. Retrospectivamente ele tenta explicar como seguiu (por vezes acredita ter sido quase a contragosto) a espiral de assédio moral que obrigou sua mulher a buscar desesperadamente saídas radicais. Dostoiévski nos ensina como a opressão funciona mesmo nas relações mais cotidianas e como é difícil para um tirano e sua vítima escaparem da sina que os une. Belo livrinho.
"Uma criatura dócil", Fiódor Dostoiévski, tradução de Fátima bianchi, editora Cosac & Naify, 1a. edição (2003) brochura 13.5x20cm, 96 págs., ISBN: 978-85-7503-197-X

terça-feira, 9 de setembro de 2008

jornada ao oeste

Depois de ler aquela bobagem da Claudia Tajes fiquei sem ânimo para nada que precisasse de algum fôlego e fui ler um gibi, relaxar um tanto. Nada como uma irrelevancia assumida para nos garantir um par de horas agradáveis ao sol. "Jornada ao oeste" é o primeiro mangá publicado pela Conrad da série dedicada a Sun Wukong, o rei dos macacos, uma figura lendária importante na cultura chinesa (confesso que eu estava ainda com as imagens ufanistas das olimpíadas de pequim na cabeça quando resolvi comprar este livro.) O texto original foi escrito ainda no século XVI (por Wu cheng'en), mas as histórias datam de ao menos 900 anos antes. O romance (aqui na forma de mangá, com belas pranchas que originalmente deveriam ser gravuras, xilogravuras, melhor dizendo) unificou lendas associadas a um fato real: a peregrinação de um monge chinês, Xuan Zang, para a Índia, de onde volta com os ensinamentos básicos do Budismo, que a partir dele é introduzido na cultura chinesa. As histórias são divertidas. Um macaco se torna quase tão poderoso quanto os deuses e provoca confusões mil no mundo celestial. O próprio Buda o aprisiona sob uma montanha por quinhentos anos como punição. Para purgar-se definitivamente de suas estrepolias do passado ele deve tornar-se discípilo do monge chinês em viagem a China e protegê-lo dos muitos perigos da jornada. Nada espetacular, nada pretencioso, apenas um mito sendo contado para os crentes ao redor do fogo por um aedo inspirado. Segundo consta este personagem inspirou de alguma forma o mais moderno Son Goku, o Saiyajin do mangá e do anime Dragon Ball, mas esta definitivamente é mesmo outra história. Para quem gosta de mitologia vale uma missa.
"Jornada ao Oeste - o nascimento do rei dos macacos, vol.1", Wu Cheng'en, tradução de Adan Sun, editora Conrad, 1a. edição (2008) brochura 14x21cm, 466 pág., ISBN: 978-85-7616-284-1

segunda-feira, 8 de setembro de 2008

as pernas de úrsula

Dorothy Parker escreveu em algum lugar que há livros que devemos abandonar com tédio na mesa de cabeceira da cama, mas há livros que devemos jogar pela janela, com força. Este "As pernas de Úrsula..." para mim não merece um destino diferente. Que livro vazio e sem nexo. Ela tenta emular como um homem pensa e reage à maturidade, aos compromissos afetivos, à paternidade, mas fracassa do começo ao fim. Se uma escritora inteligente como ela acredita que homens neste início de século XXI se comportam da forma inventada por ela estamos mesmo todos perdidos. Claro, o livro é escrito corretamente, as frases são curtas, o enredo se desenvolve sem malabarismos, mas tudo é redondinho demais, engraçadinho demais, artificial demais. Rosa Montero desenvolveu em seu "La loca de la casa" um raciocínio com o qual eu concordo: "Para a maioria dos leitores quando um homem escreve, seus personagens explicam o ser humano; mas quando uma mulher escreve, seus personagens explicam apenas as mulheres." Verdade, e cabe as escritoras fortes mudar esta percepção falsa. Mas este preconceito literário (se podemos chamá-lo assim) não vale para mitigar a qualidade de "As pernas de Úrsula", pois quando Claudia Tajes escreve seus personagens apenas repetem chavões sem fim, das mais diversas fontes, para os mais diversos usos mentais. Há frases feitas demais no livro dela, tudo é muito banal, previsível, esteriotipado mesmo. No final um epílogo explica os futuros distintos dos personagens, que afinal são rasos demais para que possamos nos interessar por sua sorte. Basta de Tajes, se é para ler literatura escrita por mulheres voltarei a Nothomb, a Montero, a Pedrosa, a Gopeguí, minhas musas de plantão neste ano.
As pernas de Úrsula e outras possibilidades, Claudia Tajes, Agir Editora, 3a. edição (2006) brochura 13.5x21cm, 128 pág., ISBN: 978-85-22-00751-9

domingo, 7 de setembro de 2008

paraíso perdido

Li este "Paraíso Perdido" assim que terminei o "Caminhos para Santiago", de um Nooteboom para outro. Gostei do livro. É pequenino, cento e cinquenta páginas. Lê-se em um final de semana de sol, sem medo. O livro começa com uma epígrafe de Walter Benjamin que já dá o tom duro do livro (algo envolvendo o conceito de progresso humano.) Nos livros de Nooteboom os personagens estão sempre viajando, de um lado para o outro do mundo, tentando entender a si mesmo e ao próprio mundo. Neste duas brasileirinhas são personagens importantes, começam sua saga em São Paulo, mas logo se vêem primeiro na Europa e depois na Austrália. No enredo o que está em jogo pareceu-me ser a descoberta se há redenção pessoal possível em qualquer queda, ou ainda, se alguma redenção pode ser desejada e alcançada após uma queda (não estaríamos sempre em queda após o pecado original afinal de contas, parece dizer o autor.). O texto é repleto de flashs, pinceladas curtas que deixam a continuação e o desfecho das situações apenas subentendidos. Há duas sessões grandes e simétricas no livro, cada uma com quinze capítulos. A primeira parte da conta da partida e das primeiras experiências de duas amigas brasileiras na Austrália. Na segunda parte mudamos de personagens e de paisagem. Um sujeito (editor e/ou crítico literário) sai da planície holandesa e vai às alturas de um spa suiço tentar emagrecer um tanto. Lá reencontra uma das moças da primeira parte, fortuitamente e eles têm a chance de discutir uma experiência que tiveram na Austrália. Não há desfecho possível para o livro. Mas no final um curioso epílogo explica algo. O epílogo me pareceu uma conversa de uma das personagens com o autor do livro, como se ambos estivessem avaliando o resultado da escritura em si do livro, ou melhor, como se o escritor estivesse tentando saber se a personagem gostou do resultado do livro. Interessante. Grande autor este sujeito.
"Paraíso Perdido", Cees Nooteboom, tradução de Cristiano Zwiesele do Amaral, editora Companhia das Letras, 1a. edição (2008) brochura 14x21cm, 153 pág. ISBN: 978-85-359-1229-6

sábado, 6 de setembro de 2008

caminhos para santiago

Se há uma coisa que impressiona um sujeito é descobrir um autor feito à sua medida. Descobri Cees Nooteboom há pouco e por acaso, mas já me sinto um afotrtunado amigo dele, de suas criações, de seus personagens. Quando vi uma entrevista de Edney Silvestre com Nooteboom impressionei-me com um comentário onde ele dizia que um país como a Espanha era curioso principalmente por ter Nossa Senhora, mãe de Jesus, como "comandante em chefe" honorária dos exércitos de Espanha (e isto até hoje, neste bizarro século XXI) e também por ter uma cerimônia anual, onde o Rei, o Príncipe de Austúrias ou ainda um preposto nomeado, entregam o país simbolicamente à são Santiago, o apóstolo que é cultuado na cidade Galega de Compostela e é o padroeiro da Espanha. Em função deste comentário resolvi ler algo sobre o tal caminho de Santiago (daí o "Ultreia", garimpado nos guardados, que já resenhei aqui) e encomendei este "Caminhos para Santiago", que resenho agora. Bom, lê-se este livro com enorme prazer. Não se trata de um guia para peregrinos, mas antes, como o próprio subtítulo do livro nos ensina, uma digressão inspirada por "desvios pelas terras e pela história da Espanha". São vinte e cinco capítulos, escritos entre 1979 e 1986. No último texto, escrito em 1992, ele analisa estas viagens (anuais quase todas) e seu envolvimento com o país. Nooteboom, que tem setenta e cinco anos agora, foi a Espanha pela primeira vez quando tinha vinte. A idéia era experimentar o calor do sul, esteve primeiro na Itália, mas logo quis conhecer aquele país que em sua Holanda natal era odiado desde os bancos escolares (por conta da guerra de secesão do final do século XVI.) Daí para um encantamento foi um passo. Seu texto aqui lembra Robert Hughes contando as coisas da Catalunha. Temos a mesma mistura de erudiçao e cultura refinada, envolvimento pessoal e emoções, tudo na medida certa. Já disse que não se trata de um guia para explicar como funciona a caminhada. Em suas viagens ele segue caminhos distintos a cada ano. Alguns de fato associados a história da peregrinação (Saragoça, Jaca, Sória, Pamplona, Burgos, León, Atorga), a maioria entretanto por destinos rotas mais distantes (Segóvia, Extremadura, Córdoba, Cádiz, Múrcia, Valência, Teruel.) Os espaços amplos e o tempo que flui lentamente na meseta espanhola parece saltar do livro, emulado pelo autor. Assim como no Hughes há uma enfase na descrição da arquitetura de castelos, mosteiros, claustros, mas há também muito sobre pintura (Zurbarán principalmente, mas também Velázquez e claro, Goya), sociologia, história, literatura e religião (sempre presente em seus livros.) O livro inclui um mapa simples e índices de nomes próprios e lugares, além de algumas fotos em preto e branco. Todo aquele que já esteve na Espanha e já se apaixonou por aquele país há de apreciar este livro e talvez concordar com ele quando diz: "Um ano sem o vazio desse país, sem as cores da terra e dos rochedos, é um ano perdido." Vale.
"Caminhos para Santiago", Cees Nooteboom, tradução de Irène Cubric, editora Nova Fronteira, 1a. edição (2000) brochura 14x21cm, 451 pág. ISBN: 978-85-209-1117-X

sexta-feira, 5 de setembro de 2008

dicionário de nomes

"Dicionário de nomes próprios", de Amélie Nothomb, é um curto romance que se lê com gosto, quase de uma sentada só (como o anterior que resenhei aqui, "A seguinte história:"). É uma história direta, sem nuances, mas que te fisga desde os primeiros parágrafos. Desta vez eu não vou contar muito sobre a trama. A idéia original é descrever a origem, o nascimento, o crescimento e a maturidade de uma pessoa (mas que é também uma personagem de Nothomb, e que acaba sabendo disto e tomando conta do romance.) Há algo de conto de fadas neste livro, pois somos apresentados às cruéis possibilidades de uma infância, de uma educação, de uma família, de uma vida afinal de contas. Não há possibilidades de hipocrisia no texto de Nothomb, tudo é dito de forma explícita, sem anestesia, sem preparação. A personagem principal em algum momento encontra a autora e, ula-lá, da cabo dela e encerra a história. Isto é algo que muitos personagens devem ter pensado em fazer mas nunca o fizeram (ao menos eu não conheço personagens deste naipe.) Neste, que é o meu ano das leituras de obras de mulheres, (uma falha antiga, que Cristina Polo me ajudou a detetar), Amèlie Nothomb, Rosa Montero e Inês Pedrosa há mostraram o quanto há de coisas boas para se ler desta seara. Belíssimo livro, por enquanto posso generalizar afirmando que nas oportunidades em que Rosa Montero é reflexiva e intelectual, senhora das técnicas de criação, Amélie Nothomb é enxuta e precisa, sempre mirando a jugular do leitor. Não há o que comparar, mas apreciar a ambas fazem a alma um grande bem.
"Dicionário de nomes próprios", Amélie Nothomb, tradução de Bluma Waddington Vilar, editora Nova Fronteira, 1a. edição (2003) brochura 13.5x19.5cm, 156 pág. ISBN: 978-85-20-91541-7

quinta-feira, 4 de setembro de 2008

a seguinte história:

Cees Nootebom é um escritor holandês de seus setenta e poucos anos. Tem como marca seu apreço pelas viagens e pelo esforço em incorporar as distintas experiências que teve e tem ao redor do mundo em seus livros. Ao mesmo tempo é um erudito de mão cheia. Recentemente ele esteve no Brasil, participando da feira literária de Paraty. Lá ele lançou "Paraíso Perdido", que já li e vou resenhar aqui daqui a um par de dias. Eu diria para você ler este livro de uma vez e não ler esta resenha, pois me é impossível não contar o enredo. Há uma "presença grega" notável nesta história, e isto já bastaria para recomendar o livro. Este a "A seguinte história:", assim mesmo, com os dois pontos no final do título (um artifício do editor brasileiro, não presente no original) é um curto romance ambientado em três lugares bem separados no tempo e no espaço: Amsterdã (a cidade holandesa), Lisboa (a cidade portuguesa) e Amazonas (o rio brasileiro). Na primeira parte um sujeito acorda em um hotel lisboeta, falando português, com dinheiro português na carteira, pensando em português, mas ele tem certeza que na noite anterior havia se deitado holandês, falando holandês, pensando em holandês. Este sujeito, um professor de latim e grego, no passado havia estado neste hotel com uma mulher, casada com um colega de trabalho seu. Na segunda parte ele está no passado, nos tempos em que ainda era um professor vagamente interessado (mas sem genitalidades) em uma aluna brilhante. Esta por sua vez era amante do tal colega de trabalho do narrador. A mulher do colega, por vingança e não por amor, aparentemente trai o marido, mas o narrador é o último a saber das nuances do triângulo/quadrilátero amoroso, bobo que é, imerso em seus livros e em suas traduções. A aluna brilhante desaparece na trama após usar sua juventude e calor para colocar a engrenagem da vida para funcionar. Os três profesores algo adúlteros são expulsos da escola. O narrador se transforma em um escritor de guias de viagens. O enredo é o de menos, o livro é curto, o que importa basicamente são as reflexões do narrador sobre a cultura e o prazer quase desconhecido que se encontra na cultura (as línguas, principalmente as ditas mortas; a filosofia, principalmente na sua origem grega; os relacionamentos amorosos, principalmente na sua complexidade e dramacidade). E a arte claro, sempre seminal. A terceira parte é mais enigmática. Eu a entendi como a de um homem que está a singrar por um dos rios do inferno (tudo parece mais luminoso e etéreo que um inferno no livro, mas eu prefiro entendê-lo como uma metáfora de meu favorito entre os rios infernais, o Letes, o rio do esquecimento.) Ao cruzar este rio ele tenta lembrar dos fragmentos de histórias suas histórias, das histórias dos colegas, bem como seguir recolhendo histórias dos incríveis companheiros de viagem (um chinês é o mais interessante.) No final do livro ele se prepara para contar a tal seguinte história que estamos a ler. É um livro muito gostoso de ler, muito tocante mesmo. Haverá mais Nooteboom aqui, prometo, mas esta é outra história.
"A seguinte história:", Cees Nooteboom, tradução de Ivanir Calado, editora Nova Fronteira, 2a. edição (2008) brochura 14x21cm, 102 pág. ISBN: 978-85-209-2123-4

quarta-feira, 3 de setembro de 2008

la loca de la casa

Rosa Montero tomou emprestado de uma santa da igreja católica chamada Tereza de Jesús o título deste livro: para elas a imaginação de uma pessoa é a tal "louca da casa". Rosa Montero usa este mote para definir o que é literatura para ela, em um livro que é um tanto difícil de definir, pois ela propositalmente mistura ficção e realidade, história e criação. Seguramente qualquer pessoa que tenha curiosidade sobre o processo de criação de um autor já seguro de seu talento e determinação vai gostar deste livro. Até aqui é o livro dela que mais gostei (há outros nas estantes, nos guardados, esperando-me calmamente.) Há um pouco de tudo relacionado a literatura neste livro: memória, invenção, dados históricos, jornalismo, cartas, psicologia, ensaio (faltou um tanto de gastronomia, se é que posso brincar um tanto.) No livro ela dá detalhes e faz reflexões bem fundamentadas sobre muitas das armadilhas às quais jovens autores estão sujeitos. Conta pequenas histórias sobre autores ou muito criativos ou que se perderam em um sucesso único (o medo de não conseguir escrever algo novo assombra qualquer um que depende de sua imaginação, desde os tempos remotos dos aedos.) Há um longo capítulo discutindo sobre a validadde do termo "literatura feminista" e sobre o papel da mulher nas letras contemporâneas. Gostei particularmente das reflexões dela sobre a morte, sobre a memória íntima das coisas (sua fragilidade e sua reconstrução/invenção principalmente), sobre os tipos de escritores, sobre as paixões, as viagens, e sobre as mentiras totais e absolutas que contamos aos outros e principalmente a nós mesmos. Talvez inspirada em Allen Ginsberg e Timothy Leary, que defenderam o uso de drogas para testar a criatividade artística ela defende uma espécie de loucura domesticada para o escritor ou ao candidato a ser reconhecido como escritor. Talvez eu não devesse escrever isto aqui (portanto não leia a partir deste ponto se não quiser saber detalhes sobre o livro), mas o artifício de contar uma mesma história pessoal de formas completamente distintas, para exemplificar o quanto o material pessoal de um autor pode ser transmutado em arte, me pareceu um tanto artificial (ela repete o truque vezes demais no livro.) No posfácio ela embaralha as cartas uma vez mais (o Philip Roth faz isto no Operação Shylock e é sempre um belo truque) dizendo que nem tudo é o que parece quando ela fala da vida dela, mas isto não é necessário, já sabemos que a autora - aliás qualquer autor - é uma fingidora. Outra coisa que me pareceu quase um desaforo é ela desautorizar Ulysses e James Joyce em uma linha, sem dó, enquanto gasta páginas com outros autores que para mim não dizem nada, fazer o quê. De qualquer forma é um excelente livro que se lê com muito prazer, além de servir como referência para reflexões pessoais. Acho este livro melhor do que qualquer manual de "como escrever" ou oficina do gênero.
La loca de la casa, Rosa Montero, Santillana Ediciones Generales, 3a. edição (2007) brochura 12.5x19cm, 250 pág. ISBN: 978-84-663-1869-3

terça-feira, 2 de setembro de 2008

carvalho 25 años

Achei esta caixa comemorativa dos 25 anos da publicação do primeiro volume das histórias do detetive Pepe Carvalho na "La Central", uma adorável livraria catalã. Achei por acaso, pois estava a procurar algo para dar de presente e o "estuche" caiu-me nas mãos. É antigo, foi publicado em 1997, quando ainda não haviam sido publicados os três últimos volumes da saga: "Quinteto de Buenos Aires", "O homem de minha vida" e "Milênio". Mas isto não é um problema, pois serve sim como um bom guia tanto para os já entusiastas de Montalbán, quanto para os recém iniciados. A caixa contêm seis volumes pequenos e foi organizada pelo jornalista catalão Quim Aranda, ele também um grande entusiasta da obra de Manuel Vazquez Montalbán. Dois dos volumes são assinados por ele e contam na forma de biografia ligeira a vida do detetive Pepe Carvalho, alinhavando situações e passagens que podem ser encontradas nos dezessete livros publicados até então (o último havia sido "El Prêmio"). É mesmo uma bela homenagem e há muitas pistas para elucidar aquelas passagens menos conhecidas da vida do detetive. Um terceiro livro apresenta fotos de lugares onde o enredo da maioria dos romances foi ambientado, Barcelona reina, claro, mas também há Madrid, Múrcia, Albacete, Amsterdan, Bangkok, São Francisco, Grécia. Os fotogramas vêm acompanhados de trechos dos livros. Dois outros livros envolvem dedicatórias e/ou cartas oficiais cumprimentando Montalbán pela obra ou mesmo o próprio Carvalho pela efeméride. As dedicatórias dão conta do vasto conjunto de apreciadores de sua obra, pertencentes a muitas camadas sociais espanholas, envolvendo jornalistas, escritores, políticos, empresários, poetas, ilustradores, críticos, e por aí vai. Montalbán participou ativamente do movimento de redemocratização espanhola e neste processo encontrou muitos admiradores no meio literário e político (claro que há os detratores, mas estes não participaram destes livros). O último volume organizado por Aranda envolve 101 perguntas sobre Carvalho, um longo teste do perfeito carvalhista. As soluções estão todas nos livros, claro. Um sexto volume encerra a caixa comemorativa e nesta o Montalbán escreve um texto onde o detetive Carvalho é o entrevistado de próprio Montalbán. Com sua ironia de sempre ele vai ajudando-nos a conhecer melhor seu personagem. Belo texto onde criador e criatura se miram, se enfrentam, mas o detetive já sabe que quem terá a última palavra será o autor. Belo conjunto. Para quem tem interesse em conhecer um pouco mais sobre a série Carvalho ou mesmo os demais escritos por Montalbán recomendo o site http://www.vespito.net/mvm/indesp.html. Quem sabe um dia, antes do cinquentenário, voltarei a ler todos os volumes, mas desta vez justamente na ordem em que foram publicados. Veremos.
Carvalho 25 años, el aniversário del grande detective (estuche comemorativo), Quim Aranda e Manuel Vazquez Montalbán, editora Planeta, 1a. edição (1997) brochura 10.5x15.5cm, 6 volumes, 350 pág. ISBN: 978-84-08-02056-1

segunda-feira, 1 de setembro de 2008

manual prático

Neste "Manual prático de levitação" José Eduardo Agualusa conta três tipos de histórias curtas: as escritas em Angola, as escritas no Brasil e as escritas em viagem, em errâncias como ele diz, sem lugares definidos. Quase todos já haviam sido publicados em jornais e revistas de Portugal e Angola, mais eram inéditos neste lado do Atlântico. As histórias são mesmo crias de seu senhor, um angolano neto de carioca, que viaja muito e conhece bem o Brasil, onde inclusive fundou uma editora, a língua geral. Os vinte contos assim reunidos são simples, lê-se sem se preocupar muito com tramas paralelas, psicologismos, ilações vagas. Aqueles escritos em Angola falam de alguma forma de violência, principalmente durante a guerra de independência e são mesmo ferozes; os brasileiros já são mais experimentais, brincam com a língua, rendem homenagens a sítios, lugares, livros e até pessoas, como Richard Burton (não o ator!) e Clarice Lispector; os demais são mais enigmáticos, com algo de Borges e de Fernando Pessoa (uma presença segura em vários contos). Algumas histórias são engraçadas (para não dizer que são só brincadeiras literárias do autor, embirro), como uma em que ele descreve como seriam os infernos de Borges e Garcia Marques ou outra onde um anjo se traveste de um Fernando Pessoa bêbado. Certamente é um bom lugar para se começar a conhecer a obra deste curioso autor.
Manual prático de levitação, José Eduardo Agualusa, Editora Gryphus, 1a. edição (2005) brochura 14x21cm, 153 pág., ISBN: 84-751-0098-X