Lembro-me bem da forte impressão que tive ao terminar a leitura de "Boyhood" (1975) e "Youth" (2002). O primeiro li logo que soube da existência de J.M. Coetzee, ganhador do Nobel de 2003, era uma edição já antiga da Best Seller. Já o segundo li assim que publicado pela Companhia das Letras em 2005. Lembro-me que dei ele de presente para a Cristina Polo, mas ela ficou preocupada com o ar sombrio do livro. Não são exatamente livros fáceis. Eles se inserem no que usualmente se chama "romances de formação". Neles Coetzee descreve o que ele chamou de "cenas da vida provinciana" de um garoto de ascendência boer na Africa do Sul que emigra posteriormente para a Inglaterra. Os paralelos com a vida do próprio Coetzee são óbvios, mas ele escreve sem se trair e sem deixar o leitor se interessar mais pelo escritor Coetzee que pelo personagem John. "Boyhood" lembra o "Retrato do artista quando jovem", claro, com descrições de sofrimento e ritos de passagem juvenis (portanto algo cerebrais demais) de um narrador que vive em uma terra inóspita, que conta suas preocupações com a mãe, o pai, a literatura, o desejo sexual, a presença incômoda e visível do apartheid. No final ele mostra seu caminho: "se ele não lembrar os livros e a existência de sua tia Anne, grande leitora, quem lembrará?" Já em "Youth" o narrador termina o nível superior ainda na Africa do Sul e emigra para a Inglaterra para trabalhar. Ele é matemático, mas como gostava das aulas de literatura e línguas, pretende ser afinal um poeta. Começa um mestrado em literatura. Os anos 1960 na Inglaterra são um parque de diversão para os sentidos, mas ele tem uma vida de imigrante dura e limitada, trabalha como programador para a IBM, um destino impessoal e inglorioso demais para quem se pretendia um poeta inovador. Seus relacionamentos afetivos são conturbados e insatisfatórios. "Summertime" é uma continuação óbvia destes dois romances. Lançado em 2009 foi finalista do prestigioso Booker Prize. Aquele que nós leitores podemos imaginar como o sujeito "John" dos romances anteriores alcançou alguma fama como escritor, mas já é morto. Um escritor pretende fazer uma biografia deste "John" e organiza entrevistas com pessoas que estiveram próximas a ele no período de cinco ou seis anos posteriores a emigração de volta à Africa do Sul após sua temporada londrina: uma amante de sua Africa do Sul natal, uma vizinha na verdade; uma prima africanner, sua amiga de infância; uma brasileira, forçada pelas filhas para contratá-lo a dar aulas de inglês a elas; um professor de inglês da Universidade do Cabo, com quem John disputou uma posição acadêmica; uma outra colega acadêmica, professora de francês na universidade, que também foi amante de John. Cada uma das entrevistas é escrita em um estilo diferente. Ora são quase transcrições literais das conversas, ora são textos já algo ficcionalizados para comporem um livro. Algumas são mais intelecutalizadas, outras mais diretas e objetivas. São quase exercícios literários. Os entrevistados e o entrevistador falam dos livros que John publica (onde parte do material ficcional é baseado na vida e no relacionamento dos entrevistados). São os livros que J.M. Coetzee publicou nos anos 1970 e 1980 (Dusklands, In the Heart of the Country, Waiting for the Barbarians, Foe). É um livro curioso, denso, mas bastante bem humorado (comparado com os dois primeiros). Aprendemos que Coetzee é um bom crítico de sua produção (afinal ele nunca deixou de ser um professor universitário). Os paralelos com sua vida são evidentes, mas o personagem John é apenas o veículo para o autor refletir sobre a vida, sobre as transformações por que passa, sobre as distintas percepções que cada um faz de si mesmo e dos outros com quem convive. No final o biógrafo nos mostra os últimos apontamentos de seu biografado, trechos fragmentários de romances que ele tensionava escrever, material para uso posterior em suas experiências ficcionais. A personagem brasileira é curiosa. Ela fugiu do Brasil por conta do golpe militar de 1960, emigrou para Angola e tentou a sorte posteriormente na Africa do Sul com o marido e duas filhas. O marido é morto em um assalto banal e ela tem grandes dificuldades em manter-se no país para onde emigrou. As dificuldades desta personagem lembram um tanto as dificuldades dos emigrantes africanos e latino-americanos na Europa deste cruel século XXI. Ao mesmo tempo a personagem brasileira é a única que incisivamente manifesta pouco apreço pelo personagem que está sendo biografado (pois ele acreditava que ele poderia assediar sexualmente suas filhas). Apesar desta personagem fazer o papel de vilã me parece que Coetzee a retrata como uma heroína a seu modo, uma mulher que consegue resistir às vicissitudes com determinação e força moral. Haverá espaço para uma continuação? Coetzee poderia inventar que alguém encontra por acaso romances não publicados daquele "John" morto precocemente, romances que seriam os do Coetzee nos anos 1990 e 2000. Já veremos o que este instigante escritor nos reserva para o futuro. [início 06/10/2009 - fim 19/10/2009]
"Summertime", J.M. Coetzee, editora Harvill Secker (1a. edição) 2009, capa-dura 14,5x22, 266 págs., ISBN: 978-1-846-55318-9
Che, Guina, adorei "Boyhood", mas "Summertime"... cansou minha beleza. Não entendi bem se você gostou ou não. Abraço d'além-mar!
ResponderExcluirolá dani, que tal?
ResponderExcluirabraços paulistas. cá estou com a cabeça plugada neste caldeirão de estímulos.
os 3 livros da série são mesmo diferentes. o "youth" e o "boyhood" são mais impactantes.
o "summertime" eu gostei menos, mas ainda assim fico impressionado como ele inventa um futuro possível para o personagem daqueles dois outros livros.
abraços fortes