domingo, 27 de novembro de 2016

yo, otro libro egocéntrico

Foi Sílvia, amiga querida, que lá de sua atrevida Barcelona sugeriu a Helga que comprasse algo do Juanjo Sáez. Juanjo é um quadrinista, roteirista e ilustrador espanhol, ou melhor, catalão (não podemos confundir essas cousas quando falamos de um legítimo barcelonês). Começou em seu ofício com fanzines e revistas alternativas, de arte e cultura. Posteriormente manteve colaborações com jornais e revistas de grande circulação. Desde do início dos anos 2000 publicou quase uma dezena de volumes de antologias de seus cartuns e histórias em quadrinhos (para ele mesmo, que assina uma introdução, trata-se de uma forma de fixar em livro coisas que desapareceriam com os jornais e também uma forma de organizar-se mentalmente). O traço é curioso. Seus personagens não tem olhos, nariz ou boca. Só nos momentos em que experimentam uma forte emoção é que ganham traços de alguma parte da anatomia de seus rostos. Em compensação seus personagens falam, muito, tem opinião sobre tudo, refletem sobre si e o mundo. As histórias reunidas em "Yo, el otro libro egocéntrino" foram publicadas originalmente nos anos 1990 e 2000 (o livro é de 2010). O livro oferece justamente o que o título promete. São histórias centradas no autor, que sempre é um personagem em suas histórias. Ele também faz uso de um alter ego que policia suas ideias, critica continuamente suas escolhas, reclama de sua timidez e inação. Parece uma brincadeira contínua com o shakespeariano fantasma do pai do Hamlet. Como todo bom cartunista ele abusa da ironia e do sarcasmo, nunca edulcora a vida e o comportamento dos homens (nem tampouco utiliza seu traço para fazer proselitismo político, explicitando alguma servidão mental e política a algum grupo - cousa que muitos de seus congêneres brasileiros se orgulham em fazer). Enfim, gostei. Grato Sílvia pela lembrança. Vamos a ver se a encontro (e encontro mais coisas do Juanjo) numa próxima viagem à Espanha. Em tempo (1): Juanjo coloca no Facebook e no Twitter um bocado de ilustrações bacanas. Em tempo (2): Conceitualmente, o estilo de Juanjo lembra as coisas do Angeli, apesar do Angeli não ser nada verborrágico e utilizar-se mais da força de seu traço comparativamente a seu texto. Sei lá. Talvez um teórico dos quadrinhos um dia possa me explicar se essa associação tem algum valor. Vale. 
[início: 06/11/2016 - fim: 15/11/2016]
"Yo: El otro libro egocéntrico", Juanjo Sáez, Barcelona: Reservoir Books (Random House Mondadori), 1a. edição (2010), capa-dura 24,5x16,5 cm., 232 págs., ISBN: 978-84-897-2230-4

terça-feira, 22 de novembro de 2016

written in my heart

Como já contei em um outro registro, no início de 2015 aventurei-me por Dublin, com cópias anotadas das páginas do "The Ulysses Guide" debaixo do braço. Esforcei-me para não perder nenhum dos lugares bacanas da cidade relacionados à James Joyce e seu Ulysses. Foi divertido. Mesmo o mais severo dos especialistas em Joyce reconhece que o livro de Robert Nicholson é preciso e completo, muito útil, mas não é o tipo de guia que um turista pode carregar facilmente em uma viagem longa. Recentemente foi publicado um novo livro com referências joyceanas, um guia mais moderno, compacto, com informações igualmente precisas, porém mais objetivas, sintéticas: "Written in my heart". A diagramação e os roteiros sugeridos são mais simples de seguir. Enquanto no livro do Nicholson os roteiros seguem mais ou menos a ordem dos dezoito capítulos do Ulysses e os passeios de Leopold Bloom e Stephen Deadalus, neste novo nove roteiros são distribuídos geograficamente pela cidade. São roteiros longos, que cobram tempo do flâneur, mas quem vai a Dublin com pressa? Mark Traynor e Emily Carson, dois experientes jovens dublinenses, ligados ao James Joyce Centre, acompanham o leitor pelas ruas da cidade, fazendo referência aos edifícios, parques, pubs, hotéis e monumentos que são ou citados nos livros de Joyce ou foram frequentados por ele e pessoas de seu círculo de amizade. Esses pontos de referência são identificados em mapas por meio de ilustrações estilizadas (assinadas por uma jovem designer, Fuchsia Macaree). O texto inclui citações curtas dos livros de Joyce, associadas a cada um dos pontos de parada. Para facilitar a vida do leitor cada um dos nove roteiros se distingue dos demais pela cor. Mesmo em uma época em que aplicativos para smarphones oferecem bons serviços de localização e referência às cousas do Joyce (há o Digital Dubliners, o Walking Ulysses e o bom mapa do Daniel Gray), esse livro me parece uma boa alternativa, principalmente para quem não conhece muito das referências literárias de Dublin. Ô beleza. 
[início: 14/11/2016 - fim 16/11/2016]
"Written in my heart: Walks through James Joyce's Dublin", Mark Traynor, Emily Carson, ilustrações de Fuchsia Macaree, Dublin: The O'Brien Press, 1a. edição (2016), brochura 13x19,5 cm., 96 págs., ISBN: 978-1-84717-820-6

domingo, 20 de novembro de 2016

homens elegantes

Ao finalizar a leitura de “Homens elegantes”, romance mais recente de Samir Machado de Machado, escrevi numa rede social que se tratava do romance mais “camp” que eu já havia lido, acrescentando pouco depois que era uma narrativa que merecia leitura por bons e variados motivos. De fato “Homens elegantes” é um romance divertido; exagerado; repleto de amalucadas e criativas citações; povoado de personagens extravagantes; recheado com uma miríade de informações (aquele tipo de informações que quanto mais irrelevantes e tolas, mais saborosas são, pois fazem festa nos sentidos do leitor). O que Samir Machado oferece é um jogo, onde cabe ao leitor descobrir até qual camada de entendimento ou associação é capaz de alcançar. Na mais superficial das camadas o que temos é a paródia de um romance histórico (que se passa na segunda metade do século XVIII). Nele acompanhamos os sucessos de um jovem oficial brasileiro que é enviado à Inglaterra para descobrir a origem de um contrabando muito peculiar, o de livros pornográficos. Portugal é um capricho inglês, portanto os ingleses são o único aliado confiável. O que parecia apenas contrabando revela-se uma bizarra conspiração que envolve interesses cruzados dos serviços secretos de várias nações europeias. Os planos mirabolantes do vilão da história envolve associar sodomia a terremotos (como o que havia destruído Lisboa em 1755), alardear o fim dos tempos, influir nos planos jacobitas na tomada do trono inglês, provocar insurreições separatistas em cidades brasileiras para facilitar que o Brasil fosse tomado de Portugal pela coroa espanhola. A chave de leitura do livro é mesmo o humor, mas as digressões de Samir Machado oferecem ideias interessantes ao leitor. Apesar de ser um livro longo para o padrão das edições brasileiras, ele deixa-se ler rapidamente. O ritmo é continuamente acelerado. O intervalo entre a chegada do protagonista a Londres e o desfecho do livro, numa curiosa batalha naval no estuário do Tâmisa, é de apenas poucas semanas (como sempre acontece num romance ou filme de aventuras ou espionagem). Mas há tempo de sobra para o narrador explorar a geografia de Londres, visitar bordeis e teatros, seduzir e ser seduzido, mostrar suas habilidades de espadachim e sua invulgar cultura. O que mais positivamente me surpreendeu no livro é a forma como Samir Machado trata do homossexualismo e da cultura LGBT, com total desembaraço, sem afetação ou hipocrisia. O protagonista da história e praticamente todos os demais personagens relevantes são abertamente gays e interagem homoeroticamente sempre que uma brecha na narrativa permite. O livro também é um manual de mundanidade, onde aprendemos algo da linguagem dos leques; dos passos de danças de salão; das gírias e procedimentos de sedução gays; de etiqueta, vestuário, esgrima e moda; das variedades de chá e as técnicas de seu preparo; de atores shakespearianos; do valor da tipografia e do design na produção de livros; da arte da confeitaria; dos problemas de tradução e autoria nas obras de ficção; de receitas de drinks; de teoria musical e de óperas; dos jogos de cartas e das trapaças possíveis; da literatura de entretenimento; de religião e milenarismo; de geopolítica e historiografia; das piadas típicas do humor judaico; da tecnologia da impressão, edição e distribuição de livros. Todos esses mimos são incorporados naturalmente à trama. De resto, saber quantas citações contemporâneas de cinema, literatura e música, da cultura pop e dos games, do universo gay ou sobre a sociedade brasileira estão entranhadas no livro, só o Samir Machado poderá um dia responder. Muito original (mas como a ficção pode competir com a realidade quando temos notícia de que há quinze dias um padre acusou gays pela cólera divina que provocou um terremoto no centro da Itália?) Enfim. Bem escrito, "Homens elegantes" parece ter sido produzido à medida para ser filmado ou por um Baz Luhrmann (numa versão light) ou um John Waters (numa versão hardcore). Logo veremos. 
[início: 30/10/2016 - fim: 05/11/2016]
"Homens Elegantes", Samir Machado de Machado, Rio de Janeiro: editora Rocco, 1a. edição (2016), brochura 16x23 cm., 574 págs., ISBN: 978-85-325-3040-0

sábado, 19 de novembro de 2016

onde está mimi?

O Byrata das histórias gaudérias e de dinossauros eu já conheço muito bem. Não conhecia seus livros diretamente dedicados ao público infanto-juvenil, como esta historieta sobre uma gata chamada Mimi que sumiu. E essa gata existiu mesmo. Era a mascote da família Byrata, ali na Vale Machado, perto do Colégio Manoel Ribas, de Santa Maria. Num dia de verão desapareceu, virou um sopro, uma memória e também uma dor. Elaborar perdas, vivenciar o luto, assimilar a morte, sempre é algo que fazemos cada um a seu modo e a seu tempo. Byrata optou por registrar as buscas que ele e seus outros mascotes fizeram para encontrar Mimi. Acompanhamos os esforços de um cachorro chamado Toco e de um gato chamado Morcego em lembrar seu dono do sumiço da gata e até esperamos um final feliz, mas como sua gata é agora também um personagem que segue as leis da ficção literária, ficará para sempre na condição do final do livro: perdida sim, provavelmente morta, mas talvez até viva, porquê não?, em outra casa, com outra família, vivendo outras e novas aventuras. Lembra aquele gato famoso da física, o gato de Schrödinger, sempre paradoxalmente vivo-morto dentro de uma caixa  (enquanto a deixamos fechada, sem abrir), nunca apenas vivo ou apenas morto. Claro, vale lembrar que as leis da mecânica quântica não funcionam no mundo macroscópico, o nosso, dos homens e dos gatos, mas o símile de Schrödinger tem essa singular função didática. Grande Byrata. Sua Mimi sempre viverá na memória, na sua, na dos teus e de nós, os leitores deste lírico livrinho. Abraços. 
[início-fim: 10/11/2016]
"Onde está Mimi?: A história de uma gatinha que sumiu", Byrata (Jorge Ubiratã da Silva Lopes), Santa Maria/RS: editora Rio das Letras, 1a. edição (2016), brochura 20x20 cm, 24 págs., ISBN: 978-85-65172-24-0

sexta-feira, 18 de novembro de 2016

ulisses

Já havia lido essa versão mangá do Ulysses numa tradução para o inglês (publiquei um registro da divertida experiência num já distante março de 2013). Recentemente a LPM publicou a versão brasileira. Os desenhos são exatamente os mesmos. A tradução para o português não me parece ter se utilizado de material de nenhuma das três traduções já consagradas do livro (a do Antônio Houaiss, a da Bernardina Pinheiro e a do Caetano Galindo). Continuo achando o que já escrevi naquele antigo registro. O resultado não é ruim, mas obviamente condensado demais para que um sujeito possa dizer que conhece o Ulysses de Joyce (muito embora neste curioso início de século XXI talvez seja possível afirmar que leu-se o Ulysses deste jeito). Apenas algumas passagens emblemáticas de cada um dos 18 capítulos do livro são apresentadas. Algumas soluções são realmente interessantes, outras algo equivocadas, literais ou frouxas demais, sem nada das sutilezas de Joyce (traduzir o "Mrkgnao! the cat said loudly" por "Miaaau", é uma bobagem). Falta muito do humor de Joyce no livro (claro, o mangá oferece alguma graça, mas nada que se compare ao que Joyce faz). É sempre divertido ver Bloom, Molly, Stephen e tantos outros personagens com aqueles olhos enormes característicos dos mangás japoneses. Após esta familiarização talvez um jovem leitor se anime e algum dia enfrente o original (ou uma cinco traduções disponíveis para o português, afinal além das três citadas lá em cima, há duas outras publicadas em Portugal, a do João Palma-Ferreira e a do Jorge Vaz de Carvalho). Os prazeres que o Ulysses oferece nunca se esgotam, já se sabe. E haverá muito mais Joyce por aqui antes do final do ano. Vale.
[início: 28/10/2016 - fim: 16/11/2016]
"Ulisses", James Joyce, tradução de Drik Sada, Porto Alegre: LPM (coleção Pocket Mangá, v. 1220), 1a. edição (2016), brochura 105,x17,5 cm., 400 págs., ISBN: 978-85-254-3413-5 [edição original: Ulysses (Tokyo: Kazuki / East Press) 2013]

quinta-feira, 17 de novembro de 2016

gigantes invioláveis

Karen Wolf produziu esse pequeno livro para divulgar, sobretudo ao público infantil, aquilo que está escrito num dos artigos da constituição federal, o quinto, aquele que que trata dos direitos e garantias fundamentais dos brasileiros (e dos estrangeiros residentes no país). Ele inventou cinco personagens (uma gata, uma papagaia, uma ursa, uma formiga e uma elefanta) para representar os cinco direitos fundamentais descritos nesse artigo da constituição (o direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade). As ilustrações foram produzidas em cores fortes, quentes, são antropomórficas e divertidas. Os textos são curtos e objetivos, afirmam didaticamente o que cada um dos cinco direitos significa, numa linguagem simples, porém precisa. Um adulto que se dispor a ler esse livro para as crianças (e que tenha alguma imaginação ou tino) saberá seguir a ideia básica de Karen, que é a de facilitar o acesso a informação, de forma a permitir que todos, pouco importando a idade, tenham alguma noção destas garantias constitucionais. Claro, é preciso ser um tanto otimista para acreditar que sua oferta seja bem acolhida pela sociedade brasileira, a meu juízo praticamente afogada num mar de hipocrisia e desinformação, quase toda ela escravizada mentalmente por velhas ideologias e práticas das mais condenáveis. Mas o projeto de Karen, mais que otimista, nasce da certeza que as futuras gerações de brasileiros podem sim ser capazes de transformar nosso país em um lugar melhor e mais digno. Parabéns minha cara. Longa vida aos "Gigantes invioláveis". Que eles cresçam e encontrem sempre um lugar nos corações e mentes de todos os brasileiros. Mesmo sendo o cínico incorrigível que sou rendo-me a seus esforços e entendo o grande valor de sua iniciativa. Vale.
[início - fim: 15/10/2016]
"Gigantes invioláveis", Karen Emília Antoniazzi Wolf, ilustrações de Isadora Forner Stefanello e Tiago Forner Stefanello, Santa Maria: Stefanello Studio, 1a. edição (2016), brochura 20x19,5 cm., 33 págs., sem ISBN

quarta-feira, 16 de novembro de 2016

a casa cai

Apesar de ser bem escrito esse romance não empolga. Acompanhamos os sucessos do protagonista antes com tédio do que com curiosidade. Marcelo Backes conta a história de um sujeito que herda do pai alguns apartamentos no Rio de Janeiro e precisa administrar simultaneamente três tarefas: o início de um relacionamento amoroso, a reforma de um dos apartamentos que herdou e conhecer algo de seu pai, por meio dos surpreendentes guardados que encontra num cofre. Para dar alguma verossimilhança aos atos de seu anacrônico personagem principal ele o cria como um ex-seminarista, um sujeito que abandonou sua talvez claudicante vocação religiosa após a notícia da morte do pai. Sendo alguém que viveu desde a infância uma vida de contemplação e distanciamento das cousas do mundo, o sujeito descobre-se neófito de tudo que tenha a ver com a mundanidade, com a vida prática, com o século XXI. Só de um tolo assim, que parece renascer com a morte do pai, podemos aceitar a inaptidão tanto para tarefas simples, como sacar dinheiro em um caixa automático de banco ou tomar um ônibus, quanto com as mais complexas, como entender a psique de seu pai ou de como relacionar-se com várias mulheres simultaneamente. O sujeito não é um imbecil, um lorpa. Trata-se de alguém culto, que obteve uma formação singular nos tempos de seminário e é capaz de fazer associações curiosas entre as situações banais que experimenta com temas filosóficos, música e artes plásticas. Mas o leitor já sabe desde o início do livro que aquele tipo de personagem nem por sorte merece um destino bom. Backes interpola aos três grandes capítulos nos quais conta a história de seu ex-seminarista duas pequenas passagens. Nestas sabemos algo de como o pai do sujeito fez sua fortuna, nos anos 1960, por meio de especulação imobiliária e diversos atos de corrupção; e também algo dos dias de seminário do protagonista. São as peças mais interessantes de seu livro. É pouco.
[início: 31/10/2016 - fim: 08/11/2016]
"A casa cai", Marcelo Backes, São Paulo: editora Schwarcz (Companhia das Letras), 1a. edição (2014), brochura 14x21 cm., 425 págs., ISBN: 978-85-359-2487-9

quarta-feira, 9 de novembro de 2016

guinness

Esse é o centésimo registro de leitura do ano (e o milésimo centésimo décimo quarto desde janeiro de 2007). Haverá apenas uns poucos mais até o 31 de dezembro e aí a primeira década deste blog estará encerrada. Bueno. Para comemorar escrevo sobre "Guinness", livro que acompanhou-me solidário, por semanas de alegrias e aborrecimentos, de calor e frio, desde a época do Bloomsday deste ano. O livro me fez lembrar que assim como o Mercat de la Boqueria é a catedral dos sentidos daqueles que visitam Barcelona, a gigantesca sede da cervejaria Guinness é a catedral dos sentidos daqueles que visitam Dublin. Antes mesmo de cruzar o umbral da St. James's Gate o visitante sabe que está sobre o efeito de algum tipo de encantamento, pois conhecerá onde começou a aventura da produção de uma das mais celebradas cervejas do mundo. O autor, Bill Yenne, dedicou vários anos à produção deste livro, tendo tido acesso aos centenários arquivos de produção da cervejaria e a entrevistas com seu atual mestre cervejeiro. Em capítulos curtos ele conta uma miríade de histórias, desde a mais importante, que é a de como um jovem empresário de Kildare, Arthur Guinness, mudou-se para Dublin e em 1759 começou a produzir suas cervejas escuras e amargas até aquela que dá conta de quantas pessoas visitam as instalações da cervejaria por ano (trata-se do maior destino turístico atual da Irlanda em número absoluto de visitantes). Os capítulos são tematicamente equilibrados, falam da história da companhia; da técnica de produção de cervejas; da política, economia e cultura irlandesa dos 250 anos de existência da cervejaria; dos investimentos em pubs e fábricas; das contínuas inovações tecnológicas; da química do processo de fermentação das cervejas; da associação do nome da companhia ao famoso livro de recordes; dos agressivos investimentos em design e marketing; da expansão da marca pelos cinco continentes; das vendas e lucratividade da companhia; das sucessões familiares e de como após duzentos e cinquenta anos a Guinness tornou-se parte do maior conglomerado do setor de bebidas do mundo, a Diageo. Claro, nada substitui o prazer de degustar uma Guinness, mas o sujeito aprende um bocado lendo esse livro, principalmente sobre as técnicas de produção e as diferenças entre a Guinness (que é do tipo stout) e as demais cervejas escuras de alta fermentação. Acho que não é necessário mais do que isso para deixar o sujeito de bom humor. Sláinte. 
[início: 16/06/2016 - fim: 08/11/2016]
"Guinness: The 250-year quest for the perfect pint", Bill Yenne, Hoboken / New Jersey: John Wiley and Sons, 1a. edição (2007), capa-dura 16x23,5 cm., 250 págs., ISBN: 978-0-470-12052-1

sábado, 5 de novembro de 2016

morte súbita

A ideia do livro é amalucada e parecia promissora, mas o resultado obtido por mexicano Álvaro Enrigue neste seu "Morte súbita" não funcionou comigo. Somos apresentados a uma improvável partida de tênis entre o poeta espanhol Francisco de Quevedo e o pintor italiano Michelangelo Caravaggio (que acontece na Piazza Navonna de Roma, em 1599). Os marcadores de pontos dos dois jogadores não são menos ilustres: Galileu Galilei marca os de seu compatriota italiano, enquanto que o terceiro Duque de Osuna, don Pedro Téllez-Girón, marca os de seu amigo Quevedo. A bem da verdade a partida de tênis é apenas um artifício utilizado por Enrigue para falar dos embates entre a reforma protestante e a contrarreforma católica no século XVI e seus desdobramentos, nas artes, na política e na sociedade, que eventualmente culminarão naquilo que pode ser entendido como o início da modernidade. Enrigue nos faz acompanhar o destino de alguns objetos icônicos: de uma bola de tênis feita em parte com os cabelos de Ana Bolena (uma das mulheres do rei inglês Henrique VIII); de um escapulário que teria sido dado ao explorador Cortés por sua mulher asteca, Malinche; de um manto real do imperador asteca Montezuma, joia da arte plumária asteca, que acaba se tornando parte das vestes cerimoniais de um importante bispo católico; dos quadros produzidos por Caravaggio e sua revolucionária técnica. Além de contar algo dos muitos jogos dos astecas que inspiraram as regras do tênis moderno, ele detalha as regras do bizarro jogo quinhentista (conhecido como pallacorda) em que ele colocou Caravaggio e Quevedo (o resultado do jogo o título já antecipa, só se decide por morte súbita, um ponto final). Seu livro é fragmentado em dezenas de pequenas histórias, algumas curiosas, outras irrelevantes, outras ainda certamente inventadas por ele para adaptar os destinos cruzados dos personagens que aparecem nas demais. Todas estão de alguma forma estão relacionadas a uma mais importante, a trágica história da destruição das civilizações pré-colombianas pelos europeus. Lembrei dos bons ensaios de Carlos Fuentes, que li no início dos anos 1990, reunidos em "O espelho enterrado" e, claro, do bom livro de Andrea Camilleri em que ele fala dos sucessos da vida de Caravaggio, "El color del sol". Interessante esse livro do Álvaro Enrigue, mas artificial demais para o meu gosto. Vale. 
[início: 09/10/2016 - 21/20/2016]
"Morte súbita", Álvaro Enrigue, tradução de Sérgio Molina, São Paulo: editora Schwarcz (Companhia das Letras), 1a. edição (2016), brochura 14x21 cm., 296 págs., ISBN: 978-85-359-2715-3

quinta-feira, 3 de novembro de 2016

os cientistas da minha formação

A ideia é boa: contar a história dos cientistas que forjaram a formação de um outro cientista, mas Mario Novello, sempre incorrigível, faz o leitor entender já nos primeiros parágrafos que ele falará sempre mais de si do que qualquer outro indivíduo, tenha esse mais mérito, precedência ou tino, pouco importa. É pena. Não que o Novello não seja um físico importante, cujo mérito não mereça consideração e registro. É óbvio que trata-se de alguém que formou dezenas de bons estudantes, publicou centenas de artigos e é respeitado de fato por uma parte considerável da comunidade acadêmica, brasileira e internacional. Mas aquilo que ele mesmo promete na introdução: "Não é minha intenção aproveitar-me deles como um meio de falar de mim", nunca é alcançado. Claro, Cesar Lattes, José Leite Lopes, Jayme Tiomno e Mario Schenberg, percorrem alguns capítulos do livro, são citados ali e acolá, ora com uma discreta reverência ora com vistoso desdém, mas fazem parte da narrativa. Porém, o que o livro de fato faz é descrever as contribuições de Novello nas várias questões da física que o interessaram em sua exitosa carreira: a origem das massas das partículas elementares; a violação das simetrias fundamentais; as ondas gravitacionais; o problema cosmológico; a relação entre a cosmologia e a física das altas energias; a formação das galáxias e a variação das leis da física no universo. Um sujeito curioso nestes temas aprenderá um bocado. Mas tanto o Lattes quanto o Leite Lopes, o Tiomno e Schenberg (e de resto o próprio CBPF, Centro Brasileiro de Pesquisas Físicas) são apenas coadjuvantes da trama, aparecem como indivíduos que em alguma época e de alguma forma se interessaram pelos problemas discutidos por Novello. Há uma inegável repetição de histórias (Novello antecipa já na introdução que escreve de memória e não tem a intenção de que os fatos tenham acontecido exatamente como ele os descreve). A edição, algo frouxa, mistura textos produzidos para outros fins e em outras épocas com coisas mais recentes, não respeitando ordem temática ou cronológica. Isso acaba resultando numa espécie de recorte de artigos mal acabado. O rosário de registros de sua precedência na previsão de fatos científicos que mereceram ou prêmios Nobel de Física ou outras distinções tão notáveis quanto, cansam o leitor, mesmo aquele mais crédulo ou neófito. Oká. A bem da verdade aprende-se um bocado com a leitura deste "Os cientistas de minha formação", mas ele poderia ter tirado os nomes e a menção dos quatro grandes físicos de sua narrativa sem prejuízo algum a seus argumentos e história de vida acadêmica. Como um amigo meu lembrou-me noutro dia, esse tipo de registro historiográfico é similar àquele de Garry Kasparov em sua série de livros "My great predecessors". O xadrez parece ter começado em 1963, quando ele nasceu. Paciência. Autoconfiança pode ser tudo na vida de um sujeito. Vale.
[início: 21/10/2016 - fim: 31/10/2016]
"Os cientistas de minha formação", Mário Novello, São Paulo: LF Editorial / Editora Livraria da Física, 1a. edição (2016), capa-dura, 16x23 cm., 212 págs., ISBN: 978-85- 7861-391-4

quarta-feira, 2 de novembro de 2016

absolutamente nada

Só conhecia o Robert Walser da jornada infernal de "Jakob von Guten", que  atormentou-me por meses. Já as narrativas de Robert Walser reunidas neste "Absolutamente nada" por Sergio Tellaroli são igualmente tensas, talvez até um bocado mais enigmáticas. Parecem registros de sonhos amalucados, trechos de divagações de difícil entendimento, mas ao mesmo tempo são cheias de vigor e beleza, algo musicais, sempre irônicas, que estimulam o leitor a mil associações e tentativas de compreensão. Registro aqui o livro como de contos, mas as narrativas tem várias vocações distintas. Algumas se deixam ler mesmo como contos, invenções, mas há ensaios filosóficos, esquetes teatrais, discursos, reflexões irônicas sobre a vida e o destino de todos nós, os homo sapiens sapiens. São 41 histórias, produzidas originalmente para jornais e revistas, publicadas entre 1907 e 1929, e reunidas em livro ainda durante sua vida (ele morreu em 1956). As histórias são em geral curtas. Dependendo do tema podemos apenas vagamente inferir se ele está sendo brincalhão ou tentando mesmo apresentar um tema árido com palavras ora simples ora rebuscadas, como se fosse um bufão que apresentasse um seminário formal ou tese. Alguns descrições de caráter lembram coisas do Elias Canetti (como por exemplo aquela série de perfis bizarros traduzida no Brasil por "O todo ouvidos"). Outras parecem transcrições dos diários de homens loucos (ou de um cientista que estudasse homens loucos). Talvez, mais apropriadamente, seja apenas o resultado engenhoso de um autor realmente criativo, inventivo como poucos. Vale.
[início: 15/08/2016 - 21/10/2016]
"Absolutamente nada e outras histórias", Robert Walser, tradução de Sérgio Tellaroli, São Paulo: editora 34, 1a. edição (2014), brochura 14x21 cm., 168 págs., ISBN: 978-85-7326-583-5 [edição original: Sämtliche Werke in Einzelausgaben in zwanzig Bänden, Jochen Greven (org.) (Zürich/Frankfurt: Suhrkamp) 1985-86, after Select Stories / Christopher Middleton (org.) (New York: Farrar, Straus & Giroux) 1982]