sexta-feira, 28 de abril de 2017

veneza, um interior

Um ano ser ler ou reler Javier Marías é um ano perdido. Quando soube que a editora portuguesa Relógio D'água havia reeditado algo antigo do Marías não perdi tempo e logo encomendei o livro. Nele estão incluídos dois mimos, crônicas que falam de Veneza e dos venezianos. Ambas foram publicadas originalmente em jornal e depois reunidas em livros. A mais recente é "O que cada um leva consigo", que  foi publicada em 2009 na revista El País Semanal (e depois incluído na coletânea "Ni se les ocurra disparar"). Nela Marías fala dos cinco anos em que viveu em Veneza, dos livros que lá escreveu, de sua rotina e das amizades que fez. Fala sobretudo sobre o tempo, sobre como o espaço é o depositário do tempo, o suporte de nossas lembranças (como Proust já nos ensinou). Sempre um frasista cativante, Marías diz "que só se perde realmente aquilo que esquecemos ou rejeitamos, o que preferimos apagar e já não queremos conosco, o que não fica incorporado na vida que contamos a nós próprios". O texto mais antigo, "Veneza, um interior", é um longo ensaio, tão robusto e bem escrito quanto completo. Um paradoxo, pois milhares de páginas e imagens podem ser escritas sobre a cidade sem esgota-la, porém Marías alcança no familiarizar com ela, sem ser pedante ou detalhista. Foi publicado em capítulos no jornal El País, em 1988 (e depois incluída na coletânea "Pasiones pasadas"). Nele acompanhamos as deambulações e digressões de Marías, com calma, atenção, encantamento. Ele fala das gentes e das ilhas, da luz e da noite, dos pintores e arquitetos; conta causos curiosos, entretêm o leitor transportando-o em transe para as pedras daquela cidade flutuante. Ah!, um sujeito não pode nunca se cansar de Veneza. Procurando, encontrei algo que compartilho com os leitores curiosos: o texto completo de "Veneza, un interior", que pode ser acessado aqui. Bom divertimento. 
[início -  fim: 11/04/2017]
"Veneza, um interior", Javier Marías, tradução de José Bento (Venecia, un interior) e Manuel Alberto (Lo que uno lleva consigo), Lisboa: Relógio D'Água Editores, 1a. edição (2016), brochura 13x20 cm., 57 págs., ISBN: 978-989-641-685-0 [edição original: El País, 22, 23, 24, 25 e 26 de agosto de 1988; El País Semanal, 14 de junho de 2009]

segunda-feira, 24 de abril de 2017

o fantástico na ilha de santa catarina

Esse livro foi presente da Marta, amiga querida, que emigrou já há tantos anos de sua São João do Polêsine fundamental para Florianópolis, em Santa Catarina. Neste "O fantástico na Ilha de Santa Catarina" estão reunidos 24 contos baseados em narrativas tradicionais de antigos ilhéus, descendentes dos ainda mais antigos e primeiros imigrantes, açorianos portugueses, que lá chegaram, entre 1748 e 1756. Franklin Joaquim Cascaes, catarinense que viveu entre 1908 e 1983, foi um dos maiores defensores da cultura de origem portuguesa de seu tempo. Autodidata e professor de uma escola de aprendizes de ofício de Florianópolis, ele coletou por anos histórias populares, mantendo em seus registros a forma de linguagem e o vocabulário utilizado pelos descendentes dos açorianos. Ele compilou também tradições religiosas, danças e cantigas, mitos populares, narrativas folclóricas. Nas 24 narrativas reunidas neste livro encontramos histórias de bruxas, possessão demoníaca, seres fantásticos que assombravam as noites dos pescadores da ilha. São histórias que certamente sobreviveram ao serem contadas de uma geração a outra, de avós a netos, de padres aos fiéis, ao redor de fogueiras ou em salas mal iluminadas onde o povo se reunia num dia de chuva e tédio. Não há exatamente ensinamentos morais ou psicologia camuflada neles. Cascaes se preocupa antes em contar bem seus causos, sem interpretrá-los, nem inventando alguma função que eles poderiam ter na sociedade em que foram criados (devemos sempre lembrar, como Robert Graves nos ensinou, que os mitos por vezes também tem funções especificas numa sociedade primitiva, seja de propaganda política, de lenda moral ou de alegoria filosófica). Nas narrativas de Cascaes sempre há uma metamorfose, de mulheres (ah, sempre as mulheres) à serviço de lucífer que são flagradas conjurando ou praticando um mal para logo reconverterem-se a fé cristã, humilhadas em sua nudez. Elas são perdoadas rapidamente, tão inocente parece ser o mal que causaram durante seus transes. Na escuridão, solidão e ignorância, ou melhor, vamos dizer simplicidade, em que viviam, isolados por distâncias difíceis de serem vencidas, os ilhéus criavam explicações mágicas para quase tudo: o adoecer e eventual morte de uma criança, a solteirice de uma pessoa feia ou deformada, o desaparecimento de uma rede de pesca ou ferramenta, os ruídos e as sombras das noites, a mudança súbita do comportamento de um animal. Mas, como disse meu pai um dia: "depois que inventaram a luz elétrica, os fantasmas desapareceram". Deveria ser assim, mas o homo sapiens sapiens ainda parece precisar de explicações amalucadas, pensamentos mágicos, soluções artificiais para seus problemas. O livro incluiu ilustrações e desenhos do próprio Cascaes para cada uma das 24 narrativas. Livro muito interessante. Ah!, não posso esquecer de registrar também que quem fez as vezes de correios, lá de Florianópolis para Santa Maria, foi outro amigo querido, o Juca.Vale.
[início: 03/01/2017 - fim: 10/04/2017]
"O fantástico na Ilha de Santa Catarina", Franklin Cascaes, Florianópolis: Editora da UFSC (Coleção Repertório), 1a. edição (2015), brochura 13,5x19 cm., 271 págs., ISBN: 978-85-328-0607-9

quinta-feira, 20 de abril de 2017

romping through dracula

A série de livros "Romping through" homenageia autores irlandeses famosos. Depois do "Romping through Ulysses" e do "Romping through Dubliners" (ambos de James Joyce) eis que registro agora algo sobre "Romping through Dracula", homenagem deles ao irlandês Bram Stoker. Como nas demais, nesta plaquete introduz ao leitor a ideia global de seu livro mais famoso, "Dracula" e fornece uma curta biografia do autor. Os autores (a turma do "At it again!", grupo teatral irlandês que produz esquetes ao vivo durante as comemorações festivas dos Bloomsday de Dublin) dão sugestões de várias atividades que expandem a experiência da leitura. Cada episódio ou capítulo do livro ganha uma ilustração, uma citação e alguma informação paratextual, como dados sobre a geografia atual de Dublin e a localização de alguns dos marcos literários da cidade associados a Stoker, como o local onde nasceu e o Museu que leva seu nome, em Clontarf, ao norte de Dublin; a biblioteca pública onde fica a maior coleção de seus livros; o teatro que ele costumava frequentar quando disputava com Oscar Wilde a atenção de uma atriz (Florence Balcombe, com quem acabou por se casar); parques, bares e castelos. O livro inclui dois pequenos mapas da cidade, que permitem a experiência de flanar por ela, procurando cousas relacionadas ao Stoker. São sempre divertidos esses livrinhos. Cabe lembrar que o povo do "At it again!" produziu também plaquetes dedicadas a Oscar Wilde e a Jonathan Swift, sobre os quais em breve falarei aqui. Vale, ou melhor, Sláinte!
[início: 25/02/2017 - fim: 26/02/2017]
"Romping through Dracula", Maite López, Jessica Peel-Yates, Niall Laverty (ilustrações), James Moore, Dublin: At it Again! (1a. edição) 2016, brochura 10,5x15,5 cm., 61 págs., ISBN: 978-0-9576559-5-9

terça-feira, 18 de abril de 2017

as fantasias eletivas

Só fiquei conhecendo algo da existência desse livro quando soube que uma tradução dele saíra em espanhol recentemente. Schroeder conta uma história inventiva, que trata de como pessoas se encontram e se desencontram, de como as motivações e escolhas de cada um de nós interferem, mesmo que quase com insignificância, nas motivações e escolhas de todos os demais que nos cercam, todos os demais com quem interagimos. Num romance de Goethe as afinidades eram eletivas, ou melhor resumindo, as afinidades entre pessoas se davam como as afinidades químicas e físicas entre os elementos. Para Schroeder são as fantasias, e também os sonhos, frustrações e ilusões o que miseravelmente escolhemos e eventualmente compartilhamos. A história que se conta é a de Renê, solitário recepcionista noturno de um hotel de Balneário Camboriú (cidade do litoral catarinense quase sempre povoada por turistas argentinos) e de Copi, travesti argentino que tenta fazer michê com os clientes do hotel onde Renê trabalha. Destino e história são detalhes. Acompanhamos os estados psicológicos e os dramas dos dois personagens com a curiosidade de quem ainda não se embruteceu completamente. O livro inclui reproduções das fotografias que Copi fez e legou a Renê. A cada fotograma corresponde um pequeno texto que antes de falar do que está fixado pela luz conta a solidão, tristeza e dor de quem escreve. O narrador da história inclui também o que seriam as poesias completas de Copi, sete versos bisonhos, que apenas os olhos de alguém apaixonado como Renê poderia valorizar. O livro é pequeno, muito interessante e poético. Notavelmente bem escrito. Vale.
[início: 31/03/2017 - fim: 01/04/2017]
"As fantasias eletivas", Carlos Henrique Schroeder, Rio de Janeiro: editora Record, 5a. edição (2016), brochura 14x21 cm., 111 págs., ISBN: 978-85-01-04114-2 [edição original: 2014]

domingo, 16 de abril de 2017

ninféias negras

Não lia um romance policial há meses. Em março, no dia de meu aniversário, ganhei de um casal amigo e querido, o Koff e a Fleig, esse "Ninfeias negras", de Michel Bussi. O entusiasmo deles me contagiou a princípio, mas a solução - ou antes, a proposta - que o autor escolheu para seu livro, não me agradou muito. Bussi faz uso de uma técnica há muito conhecida e explorada, a de iniciar sua história indicando que alguém dentre um pequeno grupo de personagens será a vítima ou o criminoso. O leitor é arrastado pelas regras de composição das histórias policiais (como Umberto Eco já nos ensinou) e apenas paramos de ler o livro quando somos apresentados a seu desfecho. Bussi compõe sua história em Giverny, santuário impressionista que Monet mandou construir e que tornou-se uma espécie de Meca das artes plásticas francesa, que atrai turistas sem fim há décadas para dentro de seus domínios, como uma diligente aranha arrasta presas a sua teia. O resultado final me pareceu frouxo, talvez por ser engenhoso demais. Aquilo que apreciamos no livro parece ser apenas um bom truque de composição. Não é possível que eu adiante aqui qualquer detalhe da trama do livro. Os leitores curiosos que se envolverão com a narrativa merecem tentar antecipar a descoberta de quem é vítima e quem é criminoso. Que cada um aproveite em paz seu naco de alegrias. Há outras cousas do Bussi por aí. Vamos a ver se me impressionam mais. 
[início: 26/03/2017 - fim: 28/03/2017]
"Ninfeias negras", Michel Bussi, tradução de Fernanda Abreu, São Paulo: editora Arqueiro, 1a. edição (2017), brochura 16x23 cm., 352 págs., ISBN: 978-85-8041-632-9 [edição original: Nymphéas Noirs (Paris: Presses de la Cité) 2011]

sexta-feira, 14 de abril de 2017

pequena madrugada antes da meia-noite

Semanas atrás estive no sertão pernambucano, em Serra Talhada, em uma missão acadêmica. Foram dias de muito trabalho, mas como a viagem era longa levei vários livros para ler. Um deles foi o "Máquina zero", do Ricardo Aleixo, que já registrei aqui. Outro foi esse "Pequena madrugada antes da meia-noite", do Marco de Menezes. Como das maravilhas que encontrei no livro do Aleixo já falei, é hora de me dedicar a tentar descrever o outro fino da lavra do Menezes. Ele nos apresenta quatro séries de poemas, quatro como as estações e as principais direções de uma rosa dos ventos. Os poemas são variados em temática e forma. Alguns deles poderíamos chamar de aforismos ou mesmo de sintéticos haikus. Os conjuntos são: manchúria (13), goleiro-linha (17), nada retira no silêncio (14), gabardine (13). Em "manchúria" os poemas tratam de fragmentos de lembranças, memórias da fronteira e do campo, registros de uma criança que olha, mas tudo é calmo, não há arrependimento, culpa ou dor. "goleiro-linha" reúne coisas urbanas, viagens, desabafos, saudades entranhadas, a lembrança de um outro poeta, que já foi muito amigo, mas não parece ser mais. "nada retira do silêncio" faz com o leitor um jogo de luz e sombra, mostra um poeta que enfrenta o abismo, tateia a natureza viva dos insetos e plantas, observa objetos e ausências como natureza morta. "gabardine" é o conjunto mais invernal, mais fúnebre, onde um narrador fala da morte de um amigo, da depressão e do suicídio, de um passado que oprime mas acaba por libertar. Não há nada frouxo nos poemas de Menezes, não há poemas fáceis, malabarismos e jogos verbais que iludem o leitor. A única ilusão que Marco de Menezes cria é aquela onde acreditamos que até parece fácil fazer poesia, poetar, escrever versos e publicá-los. Evoé Marco, Evoé.
[início: 27/03/2017 -  fim: 11/04/2017]
"Pequena madrugada antes da meia-noite", Marco de Menezes, Porto Alegre: Modelo de Nuvem, 1a. edição (2016) brochura 12x18 cm., 104 págs., ISBN: 978-85-81743-46-2


quarta-feira, 12 de abril de 2017

máquina zero

São doze poemas. Quase todos curtos, quase todos hiper destilados, potentes e cortantes, férteis em propostas e associações. Ricardo Aleixo os publicou no início destes anos 2000 (e fez a capa, projetou, editou, fabbro que é). Os poemas têm títulos, títulos-valise: (i) Máquina zero; (ii) Labirinto; (iii) Confidência; (iv) Paupéria revisitada; (v) Teofagia; (vi) Antropofagia; (vii) Autofagia; (viii) Como realmente é; (ix) Dois exercícios de língua pária; (x) O Belomorte; (xi) Exercícios de lira maldizente e (xii) Anti-ode: Belorizonte. Nos curtíssimos primeiros sete o poeta (i) deambula por Berlin e vê as gentes (se perde e se acha, entre sons, imagens e ideias); (ii) caminha como um grego por uma cidade que conhece como a sola de seus pés (mas sabe que o homem que nunca se perde nunca se acha); (iii) empresta do Machado sarcasmo e palavras duras para um poeta rival; (iv) volta a tomar emprestado, desta vez uma ironia, do e.e. cummings, sobre as dificuldades da poesia original ser entendida e publicada; (v) engole hóstia e passado mineiro, como um Chronos mirim; (vi) flerta e repasta os modernos, Oswald à frente; (vii) como velho putanheiro, perde conas mas não a verve. Os três seguintes (oitavo, nono e décimo) mostram: (viii) como o poeta usa sua arte como chave, como ferramenta para entender melhor os mecanismos do mundo e atuar: no oitavo para continuar uma reflexão importante de onde a Wislawa parou (faz um bicho homem vomitar seu ódio, humanizando-o); (ix) como provocar um outro tipo de terrorista, aquele que parece colega e igualmente usa a palavra, mas em vão e com eivada mão; (x) como deixar vazar da memória um primo mentiroso, cheio de imaginação. O penúltimo poema (xi) é o mais longo, e aquele onde o poeta descreve o mundo das letras, da literatura, fala de como seu ofício é corrompido por maus artífices (ou canalhas mesmo), onde disserta ativista e crítico, torna-se muso de si mesmo, inspira-se na aridez e não se furta acusar, apontar erros. No último (xii) ele confronta duramente sua cidade, sua belo horizonte fundamental, com um rabo do olho longe, lá na Alexandria de Kaváfis. Li o livro várias vezes, umas tentando contar quantas vezes a ideia de ofício aparecia, noutras conferindo citações e associações, por vezes só apreciando as ilustrações (capa, duas ou três reproduções fotográficas, duas ou três pequenas vinhetas/retrancas) e os aforismos do verso da capa. "Máquina zero", o livro, parece uma coisa só, onde forma e texto se amalgamaram tão completamente que cada detalhe explica o todo reunido, enfeixado nele. O livro inclui ainda dois bons textos de apoio: um curto ensaio assinado por Sebastião Nunes e uma apresentação de Marçal Aquino. Ô beleza. Evoé Aleixo, Evoé.
[início: 28/03/2017 -  fim: 11/04/2017]
"Máquina zero", Ricardo Aleixo, Belo Horizonte: Scriptum Livros (coleção Zaúm), 1a. edição (2004) brochura 12x18 cm., 64 págs., ISBN: 85-89044-06-8

segunda-feira, 10 de abril de 2017

amora

Nos 33 contos reunidos em "Amora" encontramos histórias de mulheres que fazem sexo uma com as outras; sentem ciúmes; visitam tios e avós aos domingos; tem crises depressivas e vontade de caminhar; experimentam o preconceito da família; gozam de prazer; ouvem palavras veladas, que entendem mas fingem não entender; se matam ou se deixam morrer; lamentam a ausência e a noite; contam mentiras bobas; são descoladas e modernas, ninjas da cultura pop; enfrentam demônios e decepções amorosas; trocam cartas frívolas e cartas de amor; sonham e choram; mentem, traem maridos e namoradas; envelhecem juntas; sabem todas as gírias do bas-fond; roubam namoradas das amigas; viajam; se orientam e se desorientam; tomam vinho barato em copos de plástico; entram de penetra em festas; vão a universidade; trepam em banheiros; se divertem ansiosas, mas sem culpa; são ingênuas ou calculistas; consultam psicólogos; passam por metamorfoses bruscas; divagam em dias de chuva; planejam vinganças; amam ir a enterros e cemitérios; são venenosas; desmascaram falsos amigos; desconfiam umas das outras; são espirituosas; flertam com estranhos; se machucam e sabem machucar; falam e vivem o amor. Enfim, são histórias de mulheres. E ponto. Natalia Borges Polesso ganhou o prêmio Jabuti de contos ano passado com esse livro (meu exemplar comprei em outubro de 2015, na Feira do Livro de Porto Alegre, com direito até a uma dedicatória dela, mas só agora ele saiu de meus guardados). A capa, assinada pelo Samir Machado de Machado, e o projeto gráfico, assinado por Guilherme Smee, fazem jus ao bom texto da Natalia. Vale.
[início: 08/03/2017 - 10/03/2017]
"Amora", Natalia Borges Polesso, Porto Alegre: Não Editora, 1a. edição (2015), capa-dura 14,5x21 cm., 256 págs., ISBN: 978-85-61249-56-4

quinta-feira, 6 de abril de 2017

outras dezessete noites

Se eram os diálogos e a experimentação com a forma que chamavam a atenção em "Finalmente hoje", o livro anterior de Marcio Renato do Santos, o que encontramos em "Outras dezessete noites", seu livro mais recente, é a força do instantâneo, do registro quase fotográfico de uma cena banal, costumeira, exemplarmente humana. É notável sua capacidade de capturar em pequenos registros a potência de certos fenômenos urbanos, do inusitado de muitos comportamentos socialmente aceitos, de chamar nossa atenção para as epifanias do cotidiano. O olho do narrador perscruta  personagens, tira deles os pensamentos mais entranhados e fugidios. Marcio Renato não exatamente faz seus personagens produzirem um fluxo contínuo de consciência, mas o leitor, a cada conto, parece estar em ambientes onde uma miríade de vozes particulares ecoam, mas apenas umas poucas são inteligíveis e acabam fazendo sentido, para logo serem substituídas por outro conjunto delas, igualmente brutais e interessantes. Os personagens estão sempre prestes a tomar uma decisão, ou parecem que irão postergar ainda um tanto mais decisões que já deveriam ter tomado. Ao leitor, voyeur da misérias humanas, cabe uma surpresa a cada história, a cada noite. Há uma discreta conexão entre os contos, transições sutis, como aquelas que intuímos ao vermos de longe uns escolhos de um mesmo rochedo que afloram d'água, próximo a costa ou mesmo em alto mar. Acho que já falei o quanto os contos do Marcio Renato me lembram as cousas do Raymond Carver. Vamos ver para onde esse curitibano inquieto nos levará. 
[início: 16/03/2017 - fim: 17/03/2017]
"Outras dezessete noites", Marcio Renato dos Santos, Curitiba-PR: editora Tulipas Negras, 1a. edição (2017), brochura 14x21 cm., 124 págs., ISBN: 978-85-917171-4-9

terça-feira, 4 de abril de 2017

sobre a brevidade da vida

Os estoicos já nos ensinaram que não é necessário preocupar-se com os deuses, nem ter medo da morte, explicaram também que a dor pode ser suportada e que é possível encontrar a felicidade. Sêneca nasceu em Córdoba, morreu em Roma, viveu sempre próximo ao poder, no período dos Césares imperiais, e foi um estoico dos bons. Por quase dez anos viveu exilado, na montanhosa e verde Córsega. Neste período escreveu muito, inclusive esse pequeno ensaio moral, na forma de cartas,  sobre a natureza do tempo e das paixões humanas. Sou mais afeito ao hedonismo franco que aos rigores do estoicismo, porém, no dia 04 do mês passado, ao completar meus 56 anos, resolvi reler esse livro, um tanto para mitigar os aborrecimentos e dores da idade, outro para me alegrar com a sabedoria compartilhada nele. Se fosse possível resumir essa pequena joia em um único aforismo eu escolheria este: "Pequena é a parte da vida que vivemos, pois todo o restante não é vida, mas somente tempo". O que fazemos de fato nos anos que nos cabem a não ser perder tempo com uma miríade de atividades tolas? Porque toleramos o tempo desperdiçado com objetivos sem sentido, sem valor; aceitamos em nome de preceitos sociais ou morais o convívio com escravos mentais, que apenas nos oferecem tonterias?;  investimos tempo e dinheiro com bobagens, futilidades, ilusões e mentiras?. Uma verdadeira Citera espiritual é aquela onde organizamos nosso tempo apenas para a educação dos sentidos, a reflexão filosófica, a digressões pelos textos onde resta acumulada toda a fortuna e engenho já criado pelos homo sapiens sapiens. É pouco? Vamos ver o que alcançarei aprender no tempo que me resta. Vale.
[início/fim: 04/03/2017]
"Sobre a brevidade da vida", Sêneca, tradução de Lúcio Sá Rebello, Ellen Itanajara Neves Vranas e Gabriel Nocchi Macedo, Porto Alegre: LPeM (Coleção LPM Pocket Plus, v. 548), 1a. edição (2015), brochura 11x14, 96 págs., ISBN: 978-85-254-1512-7 [edição original: De brevitate vitae, 49AD]

sábado, 1 de abril de 2017

história de quem foge e de quem fica

Assim como havia feito no final de "A amiga genial', a narradora de "A história do novo sobrenome" termina deixando o leitor em suspense. Mas a transição do segundo para o terceiro volume não é imediata como na vez anterior. Elena resolve dizer ao leitor que ao ter notícia do desaparecimento de Raffaella e iniciar a tarefa de escrever sua história ela não a via já há cinco anos, estavam bem afastadas. Retornando ao momento no final de 1968, quando está numa recepção de lançamento de seu livro e reencontra um velho amigo, a narradora passa a descrever os destinos cruzados delas duas até meados dos anos 1970. Intrigas e reviravoltas, traições e surpresas, frustrações e culpas se acumulam. Elena também passa pela experiência de ser mãe, sobrepor à vida pessoal e aos planos privados os cuidados e responsabilidade para com os filhos. Assim como os personagens ganham com educação formal ou com maturidade, ferramentas para enxergarem melhor a realidade que vivem, a narradora parece ter expandido sua capacidade de reflexão e interpretação. Suas digressões, antes, suas sessões de autoanálise,  promovem o diálogo, a comunicação, buscam compreender e ser compreendido. Nem sabedoria prática nem inteligência bastam. Não é possível comparar o conhecimento livresco das coisas e a experiência real da vida vivida. Esse volume explora com mais profundidade o que talvez seja mesmo o que dá força ao livro: a condição feminina. Todas as mulheres do livro passam por metamorfoses, algumas previsíveis, outras surpreendentes. Encontramos também descrições interessantes sobre política italiana, luta de classes, as dificuldades da criação literária  e os mecanismos de poder nas universidades, mas todo o tempo a narrativa segue acumulando reflexões sobre mulheres e sociedade. Elena e Raffaela, assim como Narciso e sua imagem refletida nas águas, têm naturezas diferentes, pertencem a mundos diferentes. E eu, o leitor, assim como Marcel, personagem de Proust, que cada vez menos entendia o caráter do barão de Charlus, entendo cada vez menos o caráter de Elena. Vamos ver o que a autora guardou para o último volume. Vale. 
[início: 11/02/2017 - fim 19/02/2017]
"História de quem foge e de quem fica: tempo intermédio", Elena Ferrante, tradução de Maurício Santana Dias, Rio de Janeiro: Editora Globo (coleção Biblioteca Azul), 1a. edição (2016), brochura 14x21 cm., 416 págs., ISBN: 978-85-250-6250-5 [edição original: Storia di chi fugge e di chi resta (Roma: Edizione E/O) 2013]