sábado, 3 de setembro de 2011

a máquina de fazer espanhóis

A Cosac Naify edita tão bem seus livros que em geral a primeira vontade é guardá-los, como objetos de culto ou decoração, mas logo lembramos que se trata de um livro, e a função daquele objeto é ser mesmo lido. É muito boa a ilustração da capa, uma imagem do Lourenço Mutarelli. Publicado no calor da última festa literária de Paraty, encontramos em "a máquina de fazer espanhóis" uma narrativa potente, um texto que surpreende o leitor, por sua inventividade e lirismo. O autor, valter hugo mãe, nasceu em Angola, tem quarenta anos, publicou quatro romances (já encomendei um outro seu, "o remorso de baltazar serapião"). Escreve um bocado, mas também se envolve em várias outras atividades artísticas, que vão da música às artes plásticas. Ele grafa todo o livro em caixa baixa. Não sei se os demais livros dele são assim, mas o efeito é curioso. Para o fluxo da narrativa é um achado, de tão simples, mas tão poderoso. Os dizeres dos personagens, o que é factual, a ação, as reviravoltas, brotam todos vívidos no texto, quase nos forçando a ler sempre em voz alta. Ao mesmo tempo há de se pensar que um leitor mais relaxado possa ter dificuldades em acompanhar todas as vozes que povoam seu livro. No início da história encontramos um senhor de seus oitenta e tantos anos que perde a mulher e passa a viver em uma casa de repouso, na companhia de uma centena de outros velhos. A certeza de seu amor e a separação abrupta, o calam e entorpecem. Alternam-se registros fragmentários de suas memórias (a vida com os pais, o casamento, os filhos, as decisões e escolhas) com o entendimento do que acontece na nova rotina. Com o tempo vem a vontade de interagir. Outros sujeitos, companheiros do mesmo destino funesto, dele se aproximam. É como se fossem todos alunos de uma escola infantil que, levados pelos pais nos primeiros dias de aula, demorassem a relaxar e franquear amizades. Tudo que há de intolerável nestes ambientes afloram no livro. Mas valter hugo mãe não precisa descrever os procedimentos médicos e os detalhes da rotina do lugar para alcançar este efeito. É exatamente o contrário. O lugar parece transparente. Só há os personagens e suas conversas. Apenas, vez por outra, o diretor do hospital ou algum agente externo (como uns policiais quando um incêndio suspeito acontece) interferem pontualmente na narrativa. Em geral, só sabemos o que o narrador, o senhor oitentão, fala e pensa, do que vê e sente. A velhice é sobretudo feia, o envelhicimento uma coisa intolerável, mas não se trata de um livro triste. Há nele muito humor e causos interessantes, poesia e ironia também. Interessantes os paralelos entre Esteves e Fernando Pessoa, Leopoldina e Teófilo Cubillas, Enrique e a Espanha, o Silva e a Europa. Claro, pode-se ler o livro como uma alegoria da história de Portugal (principalmente a história atribulada do século XX, da ditadura de Salazar e do terrível processo de descolonização), pois o autor pontua a narrativa com fatos políticos, embates sociais, eventos do futebol e das artes. Mas ao mesmo tempo o livro nos fala de um homem, que sofre e rememora, que mal verbaliza suas culpas mais entranhadas, que se assusta com os fantasmas que povoam suas noites. Como em todo homem há nele a potência das virtudes e também do mal. Por conta dessa ambiguidade "a máquina de fazer espanhóis" é um livro muito humano, muito rico em reflexões. Lembrei de dois livros ao ler este, como se os três fossem aparentados: "Leite derramado", do Chico Buarque (que não gostei muito), e "Homem lento", do J.M. Coetzee (que gostei bastante). E como não pensar no velho Guina, meu pai, senhor ruidoso e alegre, com seus oitenta e seis anos, ainda a me provocar reflexões e idéias, e não ficar feliz por ainda compartilhar o tempo e o espaço com ele? Hooray! Vamos a ver o que o outro livro do valter hugo mãe me conta. [início 21/08/2011 - fim 31/08/2011]
"a máquina de fazer espanhóis", valter hugo mãe, São Paulo: editora Cosac Naify, 1a. edição (2011), brochura 14x23 cm, 256 págs. ISBN:978-85-7503-813-0 [edição original: Alfaguara (Lisboa, Portugal) 2010]

3 comentários:

Julio Souto disse...

um título curioso...

vera maria disse...

Estou lendo e adorando o começo do livro, pensei também no Leite derramado, do Chico, que não consegui terminar de ler de jeito nenhum, achei muito ruim.
Descobri seu blog hoje e gostei muito, prazer,
clara lopez

carolina disse...

adorei este livro. concordei bastante com sua resenha. coloquei seu blog no meu feed. você lê muito! um abraço do RJ.