"Caro Michele" é uma poética dos sentimentos, mas é uma poética racional, onde a lógica vale mais que a fúria, as surpresas. A imaginação de Natália Ginzburg apresenta cenas da vida privada de uma família italiana do início dos anos 1970 (as histórias do livro acontecem num intervalo curto, pouco mais de dez meses). O leitor encontra aos poucos dezenas de nomes, uma contínua avalanche de personagens, mas todos eles gravitam de alguma forma Adriana, uma mulher ainda jovem, 43 anos, mãe de quatro filhas e um filho, o Michele do título, separada de seu marido, que o leitor descobrirá ser um artista plástico algo excêntrico. Ginzburg desenvolve sua história sobretudo através de cartas mas há vários capítulos onde alguém narra em terceira pessoa. Esse narrador nunca julga os atos que registra (em contraste com os signatários das cartas, sempre críticos e dispostos a desnudar virtudes e defeitos dos demais). As histórias enfeixadas por Adriana formam um mosaico esdrúxulo, onde sua atenção se divide entre os ecos do passado e o destino imediato daqueles que ela ama. Sua maior preocupação é entender o filho, sempre em movimento, sempre distante dela, indecifrável. Os capítulos evoluem rápidos, as cenas se acumulam, revelando serem irrelevantes quase depois de acontecidas (como na vida mesmo, onde o que parece importante num momento torna-se apenas uma lembrança tola logo depois). Ginzburg não se perde com descrições, não tergiversa, obriga seus personagens a serem frios, objetivos, diretos. O leitor sabe das motivações de Michele (ao contrário de Adriana e quase todos os demais personagens), sabe de sua participação nos processos de radicalização da política européia que se sucederam ao movimento estudantil do final dos anos 1960. Mais do que o destino de Michele o que me interessou no livro foi a vívida experiência do cotidiano de uma família de classe média italiana. Os personagens são muito sinceros, transparentes, nunca são hipócritas ou dissimulados com os demais. Nenhum aparenta ser conservador política, moral ou sexualmente. Seria assim mesmo o perfil médio daquela sociedade, ou será que Ginzburg focaliza apenas o que seria representativo do comportamento de uma família de esquerda? Talvez seja esse o caso. Belo livro. Vou garimpar mais coisas dela por aí. Também li dela "As pequenas virtudes" e "Léxico familiar".
[início: 17/11/2015 - fim: 19/11/2015]
"Caro Michele", Natália Ginzburg, tradução de Homero Freitas de Andrade, São Paulo: editora Cosac Naify, 1a. edição (2009), capa dura 16,5x22,5 cm., 186 págs., ISBN: 978-85-7503-704-1 [edição original: Caro Michele (Milano: Mondadori) 1975]
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