quarta-feira, 15 de agosto de 2018

pedras ensanguentadas

Esses volumes de Donna Leon editados em Portugal são mesmo interessantes. Acompanhamos as rotineiras investigações de crimes na Veneza do comissário Guido Brunetti, porém o leitor brasileiro delas ganha uma pátina de linguística, que brota da presença de uma miríade de palavras que não usamos rotineiramente aqui, mas que são correntes em Portugal. Se no volume "Provas manipuladas" havia só anotado um par delas, neste "Pedras ensanguentadas" marquei dezenas, numa festa para os sentidos e imaginação.  Como não se deliciar com a súbita presença de um "marimbou-se", um "algures", ou "prendas", ou ainda "vou ter com elas", "mo dizer", "cacifo", "cabedal", "comezaina", "perorações", "cariz", "tisana" e "ecrã", entre tantos outros vocábulos. Claro, o sujeito sabe que já leu essas palavras um dia, entende o sentido, ainda que por elipse, mas não são cousas que estamos sempre a ouvir. Pois neste volume Brunetti vê-se envolvido em um crime que parece banal, o assassinato de um vendedor ambulante (em italiano um neologismo ofensivo, "vu'cumprà") de origem africana, mas que se revela uma trama que ascende a questões de estado, a geopolítica europeia, a vis interesses econômicos e as guerras civis que grassam pela África. As pedras ensanguentadas do título são aquelas pedras que Ruskin um dia descreveu, aquelas que fizeram o jovem Marcel de Proust experimentar uma de suas epifanias fundamentais, mas também são diamantes, motivação mais que suficiente para que tribos rivais, acidentalmente reunidas em um mesmo país pelos europeus no século XIX, lutem até a quase extinção. Mais que investigar, Brunetti tem que atuar como refinado diplomata, travestir suas intenções o suficiente para avançar, para entender um caso que será oficialmente encerrado sem punição alguma. Em paralelo a essa narrativa de cobiça e morte, Donna Leon acrescenta reflexões sobre como, quando jovens, somos capazes de emitir opiniões contraditórias, agir sempre sem limites, sermos cruéis e amorosos ao mesmo tempo. Um bom e honesto volume esse. Vale! 
Registro #1309 (romance policial #74) 
[início: 04/08/2018 - fim: 08/08/2018]
"Pedras ensanguentadas (Brunetti #14)", Donna Leon, tradução de Carlos Pereira, Lisboa: Planeta Manuscrito (Grupo Planeta), 1a. edição (2010), brochura 15,5x23,5 cm., 286 págs., ISBN: 978-989-657-097-2 [edição original: Blood from a Stone (Zürich: Diogenes Verlag AG / Penguin Randon House Group) 2005]

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