quarta-feira, 8 de agosto de 2018

sin brunetti

O título original deste livro ("On Venice: Music, People and Books") explica melhor que encontramos nele: ensaios sobre música (sobretudo erudita), pessoas (que vivem em Veneza) e livros (que Donna Leon leu, por prazer ou por encargo). O "Brunetti" do título desta edição espanhola é um óbvio chamariz para os leitores aficionados de seu famoso personagem. Paciência. São cinquenta e dois relatos, a grande maioria publicados em jornais ou revistas (a edição original é de 2005, mas o livro não dá indicações de quando exatamente os artigos foram escritos e publicados). Todos os relatos são curtos, crônicas de encomenda talvez, digressões não muito extensivas acerca de algo específico, objetivo (ela não dá saltos aleatórios, não muda de tema rapidamente, nem tenta mostrar sua bem provável vasta erudição). Para ser mais detalhista que o título original cabe registrar que o livro é de fato dividido em seis conjuntos. Vamos a ver. Os doze ensaios reunidos em "Sobre Veneza" são de reflexões panorâmicas da cidade, onde ela fala da história mais remota e também da contemporânea, dos problemas contemporâneos. A cronologia acompanha a de sua familiarização com os costumes do lugar, desde a primeira visita, turista deslumbrada como qualquer outra, até os eventuais dias nos quais o tédio se superpõe ao encantamento. "Sobre a música" reúne seis críticas profissionais sobre apresentações líricas, montagens que ela cobriu profissionalmente ou entrevistas com cantores líricos e diretores. Trata-se de um trabalho acurado, coisa de melômano, especialista. Enfim, como quase todo escritor Donna Leon deve ter sido obrigada a fazer trabalhos deste tipo antes de poder viver apenas dos direitos literários de sua obra. "De humanos e animais" é o conjunto menos interessante. São onze ensaios legítimos, ou seja, uma forma de prospecção d verdades e conceitos, mas os exemplos que ela utiliza e o sarcasmo discreto que recai sobre os indivíduos sobre os quais digressa são frouxos e nada específicos de Veneza, poderiam ser ditos de qualquer lugar. "Dos homens" enfeixa onze ensaios sobre as relações entre homens e mulheres. Não há neles um feminismo militante, explícito, de almanaque, porém as posições firmes e os argumentos sólidos demonstram que ela sabe defender-se e defender seu sexo, sem malabarismos retóricos. Sua descrição dos dias em que foi professora em uma universidade saudita deveria ser lida por qualquer mulher que tenha a pretensão de falar sobre a condição humana, como um todo, e da condição da mulher na sociedade, em particular. Nos seis relatos reunidos em "Sobre os Estados Unidos da América" sabemos algo das razões que a levaram a um auto exílio europeu, apesar de nunca ter renunciado a cidadania americana. Trata-se de um rosário de críticas, aos políticos, aos americanos "médios", ou seja, a ignorância média dos americanos, à mídia, ao sistema de saúde, ao mercado editorial. Por fim, em "Sobre os livros" Donna Leon dá seis lições práticas de como um neófito pode aventurar-se ao mundo da criação literária, especificamente a construção de romances policiais. Não são exatamente aulas de escrita criativa, antes são reparos que antecipam os erros mais comuns que um jovem escritor comete, sugestões para o aperfeiçoamento da técnica e da necessária obsessão para bem exercer este ofício. O quê acrescentar? Donna Leon é obviamente uma mulher muito inteligente e muito prática, que antes de inventar mundos, criar suas histórias de detetive, viveu (e vive) algo pleno, viajou pelo mundo, deu aulas (no Irã, na China, na Arábia Saudita, nos EUA, na Itália), conheceu pessoas, leu muito, estudou com disciplina, conversou com amigos, amou e foi amada. O Brasil, ai de nós, aparece rapidamente em uma das crônicas, quando ela escarnece de um livro qualquer comparando-o a um roteiro de novelas brasileiras, encerrando a crítica dizendo algo do tipo: "qualificar este livro de barato, sórdido, é coroar e louvar sua autora". Muito divertido. Vale! 
Registro #1305 (crônicas e ensaios #228) 
[início: 13/04/2018 - fim: 16/04/2018]
"Sin Brunetti", Donna Leon, tradução de Ana Maria de la Fuente, Barcelona: Seix Barral / Biblioteca Formentor (Editora Planeta S.A.), 4a. edição (2014), brochura 13,5x23 cm., 261 págs., ISBN: 978-84-322-2800-1 [edicão original: On Venice: Music, People and Books (Zürich: Diogenes Verlag AG) 2005]

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