sábado, 25 de agosto de 2018

viagem na rússia

Noutro dia mesmo li o excelente "Judeus errantes", de Joseph Roth. No último capítulo Roth falava da situação dos judeus na Rússia, observações fidedignas, recolhidas em uma viagem que ele havia feito à Rússia, no segundo semestre de 1926. Esta viagem foi planejada de forma a permitir que Roth enviasse matérias curtas que fossem publicadas em um jornal na Alemanha, à medida em que percorria o país. Posteriormente todo o material foi reunido, reescrito em livro e é agora também parte da boa coleção antagonista da editora Âyiné. Em "Viagem na Rússia" encontramos registros de um país em construção, que ainda se assombra com as rápidas transformações decorrentes da revolução de 1917. O jornalista que cruza a fronteira russa no equinócio de outono de 1926 voltará otimista em dezembro, mas Roth não teria como antecipar as metamorfoses ainda mais terríveis pelas quais passaria o povo e a sociedade russa nas décadas seguintes. Em 1926 a Rússia soviética ainda era um enigma para os europeus ocidentais. Viajar pelo país não era difícil, apesar da discreta vigilância. Roth parte de Paris, não antes de falar dos russos emigrados que ali viviam, russos que fugiram da revolução, quase todos arruinados, ainda iludidos com a possibilidade de uma volta que jamais se materializaria. Visita várias cidades, da fronteira até Moscou, de lá até Samara (no Volga), a Astracã (no Mar Cáspio), a Baku (onde hoje é o Azerbaijão). Vai a centros urbanos e também ao campo, conversa com gente poderosa (os novos burgueses, que enriqueciam com o programa econômico bolchevique daqueles tempos, o NEP) e com gente simples, em bares e estações de trem. Vai a museus, igrejas, redações de jornal. Cada capítulo trata de um assunto diferente, aborda algo curioso e intrigante sobre o país em transformação. Roth fala da agitação urbana e da força produtiva no campo, dos judeus e do antissemitismo, das práticas de engenharia social, da revolução sexual, das mudanças no papel da mulher na sociedade, no sentido religioso do povo, dos camponeses (mujiques, libertados da servidão dos tempos do Tsar). Vê as paradas militares comemorativas dos dez anos da revolução. No último artigo ele fala do uso da propaganda, da massificação da opinião pública, da censura. Acusa a imprensa soviética de parcial, de não ter independência e, sobretudo, conhecimento factual do mundo. Fala da esterilidade que resulta da censura. Sábio homem. Poucos anos depois Stalin concentraria em si todo o poder, organizaria os expurgos e massacres que definiriam a União Soviética por pelo menos mais trinta anos. Roth em breve estaria morto, deprimido e alcoolizado, talvez vendo o sem sentido do crepúsculo final da Europa daqueles tempos. Lembrei-me de quando, quase ainda adolescente, no final dos anos 1970, li os três poderosos volumes de Trotsky sobre a revolução russa. Aquela massa de informações ajudou-me um bocado, blindando-me de ser tão manipulável nos anos seguintes, imberbe aluno no IFUSP, algo abobalhado nos furiosos debates pela redemocratização do Brasil. Pena não ter conhecido o lirismo e a capacidade de síntese crítica de Joseph Roth naquela época. Vale! 
Registro #1317 (crônicas e ensaios #230) 
[início 19/08/2018 - fim: 22/08/2018]
"Viagem na Rússia", Joseph Roth, tradução de Alice Leal e Simone Pereira Gonçalves, Belo Horizonte: Editora Âyiné (coleção antagonista #18), 1a. edição (2017), brochura 10,5x15 cm., 168 págs., ISBN: 978-85-92649-23-4 [edição original: Reisen in Russland (Berlin: Verlag Die Schmiede) 1927]

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