Bom. É covardia eu tentar comparar este livro com o anterior que resenhei. Este é mesmo um tremendo livro, daqueles que te fazem parar e pensar na vida, a se imaginar em um mundo diferente, mas ainda demasiadamente humano. Seminal. Há dois registros principais na história: um nos remete a própria biografia de Le Clézio, o sujeito que ganhou o prênio Nobel de literatura de 2008, o segundo registro é a invenção de Le Clézio, sua ficção. Qualquer um de nós, quando quer contar a história de um antepassado qualquer observa rapidamente que há muitas lacunas, datas contraditórias, movimentos que não se entendem muito bem. Em geral linearizamos tudo e escolhemos a versão mais épica e redentora, mas nobre e memorárvel afinal de contas. Le Clézio teve um tio-avô que em um determinado momento desapareceu em uma ilha do oceano Índico em meio a uma quarentena sanitária devido a uma epidemia, cousa comum naqueles tempos. Seus avós nunca souberam ao certo o que foi feito dele, mas contavam sua história. Na ficção de Le Clézio somos levados a acompanhar sucessos algo parecidos. Um jovem casal e um irmão mais jovem tomam o rumo das terras de seus pais (de novo aquela idéia de que devemos voltar para o lugar onde fomos concebidos, que Le Clézio explora nos outros livros dele que já resenhei aqui). Este lugar, este território, é a Ilha Maurício, um importante centro de produção de açucar para o império Inglês do final do século XIX. O avô deles é um poderoso plantador, que importa centenas de "cules", trabalhadores livres, chineses e hindus, trazidos da Índia e das demais possessões britânicas em substituição ao trabalho escravo. Ao chegarem perto da grande Ilha Maurício o navio se descobre infectado por tifo e todos os passageiros, tanto os modestos "cules" quanto os abastados europeus devem ficar em uma pequena ilha por um período de descontaminação. No início a maioria dos passageiros acredita tratar-se de um período curto, mas logo se percebe que o período de confinamento será grande. A pequena ilhota onde estão confinados, Plate, faz parte de um arquipélago próximo a um ilha chamada Gabriel, que por sua vez está localizada a pouco mais de 3Km da grande Ilha Maurício. Todo o conjunto de ilhas é inacessível sem ajuda externa. Estabelece-se um rígido controle dos viventes, os progressivamente mais doentes são isolados e depois, sabe-se num choque, levados a uma ilhota ainda menor, Coin de Mire, para deixarem-se morrer e serem incinerados. Os dois irmãos, Jacques - que é médico - e León, não são acometidos pela doença, mas Suzanne, mulher de Jacques, sim. Lentamente delira e definha. Os demais europeus que os acompanhavam no navio, um casal de botânicos, alguns comerciantes, exploradores, também caem doentes. O pior do ser humano aflora neste isolamento. A crueldade, o despotismo, o fanatismo. Enquanto padecem nestas ilhas, os dois irmãos pensam no avô e nas ricas terras a que eles deveriam ter direito, mas que foram deles usurpadas. A impotência é total, os dias se arrastam, as piras funerárias são varridas pelas ondas, o branco dos ossos calcinados deixa linhas sutis no duro basalto da praia. León aprende a perambular pelas ilhas, toma contato mais próximo com os "cules", que morrem aos montes, em silêncio, passivamente. Ele se envolve e por fim se apaixona por uma garota hindu, Suryavati, cuja mãe, da mesma forma que sua avó antes dela, foi levada por Shitar, a fria morte. Suzanne melhora de saúde ajudada por Suryavati. Após meses de privação, temor e morte, a doença arrefece e aos sobreviventes é permitido finalmente se deslocar para seu destino final. Léon opta por misturar-se com os "cules", deixando apenas Jacques e Suzanne embarcarem no grande navio de resgate. O quê será feito dele? A história nos é contada por um neto deste casal de sobreviventes, que viaja a grande Ilha Maurício para conhecer a última descendente do nobre plantador, Archambau, senhor da vida e da morte de milhares de trabalhadores. Encontra um mundo totalmente modificado. Há coisas demais neste livro para citar em uma curta resenha. Vale a pena navegar por ele, acompanhar os tantos destinos que se cruzam na pequena ilha Plate (que aliás é hoje a sede de belíssimos empreendimentos turísticos no Índico). Há coisas memoráveis neste livro. Um barqueiro, Mari, quase cego (um Caronte, como não), que os leva de Plate e Coin de Mire. A memória de uma noite Montparnasse, onde o pequeno Jacques viu o tonitroaente Rimbaud ameaçar um taberneiro. E a memória de um dia escaldante em Aden, logo no início do romance, onde o jovem médico Jacques é chamado para atender um francês que morre lentamente em um catre de Aden (de novo Rimbaud, mas agora em seu leito de morte). Li boa parte deste livro próximo ao mar, caminhando sem ritmo pela praia de Capão da Canoa, sentido de perto o vento salgado e o rumor bravio do mar. Depois li uma parte em um restaurante santamariense, onde ouvi na mesa do lado: "(...) tenho um pouco de sangue italiano!, diz um sujeito. Sangue bom, sangue bom!, replica um senhor." Que patético. A quarentena é mesmo um livro poderoso. Bom divertimento. [início 22/01/2009 - fim 25/01/2009]
"A quarentena", J.M.G. Le Clézio, tradução de Maria Lúcia Machado, editora Companhia das Letras (1a. edição) 1997, brochura 14x21, 363 págs. ISBN: 978-85-7164-705-4
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