Demorei para conseguir este livro, mas com engenho e alguma arte ele se juntou a meus guardados, vindo de Alicante, vejam só. Bueno. O escritor holandês Cees Nooteboom tinha já seus cinquenta e muitos anos quando ganhou uma bolsa da agência alemã de intercâmbio acadêmico DAAD para passar um ano sabático em Berlin, cidade ainda dividida no final dos anos 1980. Já um escritor respeitado, tanto por sua poesia quanto pelos relatos de viagens e narrativas longas que publicou, ele deveria, em contrapartida à bolsa, fazer uma série de conferências, tanto na Alemanha Ocidental (RFA, a república federal) quanto na Alemanha Oriental (RDA, a república democrática). Quis a fortuna que o início da queda do muro de Berlin acontecesse exatamente no meio de seu período de estadia por lá (foi no 09 de novembro de 1989, não é tanto tempo assim, mas como o mundo parece ter mudado!) Para ele, um viajante por natureza, bom observador da paisagem natural mas também da alma humana, do comportamento humano, esta foi uma experiência importante e seminal. Foi como se a própria Clio, a musa da história, o acompanhasse naqueles meses agitados, convidando-o a desfrutar das transformações radicais pelo qual passaram não apenas o povo das duas alemanhas, mas o de toda a Europa, de todo o mundo. Lembro-me que Katya estava lá e pegou um pedaço do muro. Será que ela ainda o tem? O livro começa com um prólogo, escrito ainda em 1963. Nooteboom tem 30 anos e vai a Berlin Oriental para cobrir como jornalista um congresso dos partidos socialistas do mundo. O controle de entrada e saída é muito restrito, redundante, a atmosfera tensa. Já aquela época ele consegue registrar muito bem as sutilezas do modo de pensar e agir dos delegados. Quem seria o brasileiro que tinha assento lá naqueles dias? Talvez algum dos patetas que atualmente governam o Brasil e que teimam em impingir um stanilismo albanês nesta freguesia. Bueno. "O olho não se engana", nos ensina Nooteboom, há que se respeitar o valor das coisas que vemos e também as que intuímos, não podemos apenas confiar em nossos ouvidos, mais sensíveis as adulações, as chantagens, à corrupção. As crônicas do livro foram reunidas em dois conjuntos e publicadas em revistas no período compreendido entre 18 de março de 1989, quando de sua chegada ao já conturbado país, até 30 de junho de 1990, quando sai da Alemanha e já não acompanha in loco os acontecimentos, as discussões e a futurologia que contaminava a todos. Os dois conjuntos de crônicas são separados por dois intermezzos (ah, como é bom a um escritor também saber um pouco de música, de composição, de regência). Neles ele descreve a região e a história de Munique, cidade emblemática dos sonhos românticos de união alemã (que afinal deu-se muito tardiamente, quase no final do século XIX). Nas crônicas anteriores a queda do muro ele descreve seus limites, a forma como tudo na cidade parece condenado ao imobilismo. Todos espiam todos, delatam todos, a Alemanha Oriental é o paraíso dos stanilistas mais furibundos. As crônicas posteriores a queda descrevem o imobilismo que se torna caos, talvez um caos determinístico (para usar uma metáfora da ciência), onde tudo - valores, privilégios, procedimentos, rotinas, comportamentos, regras, direitos, deveres - se agitam, se transformam rapidamente, mas seus efeitos ainda podem ser interpretados racionalmente. Há coisas curiosas observadas por ele: um dia um sujeito é um líder irresoluto, no dia seguinte já é um cadáver político, condenado pelas circunstâncias; os autóctones perguntam aos extrangeiros a opinião deles como se fossem oráculos, Sibilas, mas Nooteboom sabe-se mais uma Cassandra vulgar. Além de continuar com as palestras e conferências boa parte de seus últimos meses por lá foram utilizados para viagens longas, até os novos limites da nova Alemanha. Nooteboom é um jornalista senhor de seus meios, mas também "el viajero", o sujeito que sabe desfrutar da paisagem, de descobrir coisas novas, irrelevantes que sejam. Nestas viagens verificamos como há valor no conhecimento das línguas, na familiaridade com a história das gentes e dos lugares. Suas reflexões me parecem pertinentes ainda hoje, mais de vinte anos após a queda do muro. A Alemanha tornou-se o país mais rico e influente da Europa (realidade que americanos, russos e os demais europeus sempre anteciparam e temeram). Um leitor curioso, interessado neste tema, certamente muito aprenderá com as palavras e as metáforas (sempre poderosas) de Cees Nooteboom. Encontrarei novamente algo deste grande sujeito, deste grande poeta, deste grande holandês errante? Veremos. [início 31/08/2010 - fim 30/10/2010]
"La desaparición del muro: crónicas alemanas", Cees Nooteboom, tradução de María del Carmen Bartolomé Corrochano e Pieter J. van de Paverd, ediciones Península, 1a. edição (1992), brochura 13,5x19,5 cm, 208 págs. ISBN: 978-84-2973-403-4
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