sábado, 23 de abril de 2011

entremilênios

Após a maravilha de ler "Signâncias", livro em homenagem ao poeta Haroldo de Campos, morto em 2003, fui a meus guardados resgatar um livro de originais seus que teimava em não se deixar ler. Aos livros parece agradar estes jogos de preparação do espírito do leitor. Sobretudo a poesia não se deixa ler facilmente quando não estamos com o humor adequado, não afinados às suas vibrações, não comprometidos com seu projeto. Pois "Entremilênios" reúne inéditos da última fase da produção poética de Haroldo de Campos. Nos últimos anos de sua vida ele dedicou-se a muitos projetos de tradução, atividade onde também era um mestre, mas sempre investiu tempo e energia criativa em suas criações originais. Após sua morte, Carmem P. de Arruda Campos organizou o vasto material com o qual Haroldo trabalhava e já preparava para edição. Ele nos apresenta cinco conjuntos temáticos. O primeiro é de poemas de louvor a amigos (amigos ainda vivos e amigos já mortos). Neles ele registra com generosidade o prazer da companhia e da memória deles. Sua poesia emula retratos vívidos destas pessoas e de suas obras. No segundo conjunto o tom já é de cólera, de indignação, de dor, de horror. Haroldo parece aborrecido com seu tempo, com os ecos de caos e guerra que já dominavam a passagem do milênio. Sua musa o impele a distribuir açoites, vergastar o mal, travestido de sábio melancólico. O terceiro conjunto reúne sobretudo poemas de viagem, poemas de amor e de morte, poemas dedicados a cidades. Como um grego errante ele vaga e faz com que o leitor acredite que está lendo a produção do poeta no momento e no lugar mesmo da criação. O quarto conjunto reúne onze poemas inspirados na Ilíada (que ele traduziu por dez anos e publicou em 2002). Ele chama os poemas de "leituras" da Ilíada. Os editores tiveram o bom tino de incluir em facsímile uma das páginas originais destas leituras. Além de correções, acréscimos, interpolações, vê-se nestes originais notas de rodapé que remetem as fontes primárias do ofício. A poesia não se faz apenas da memória, mas de um palimpsesto de idéias e leituras alheias. O último conjunto reúne material que talvez pudesse se encaixar em alguns dos três primeiros, mas que encontraram uma outra unidade entre eles mesmos. O mundo grego, mediterrâneo, luminoso e estival, que atrai o olhar dos homens, percorre estes poemas. Li alguns destes últimos poemas em voz alta, como se fosse um daqueles sujeitos que nos barcos a remo marcavam a cadência das remadas com o som de tambores. Com isto adiei um tanto ao inevitável fim do livro. Pena, mas tenho muitas das coisas antigas dele para reler, talvez já seja o tempo. A edição da Perspectiva é muito bonita e delicada. Seguro que Haroldo gostaria de ter visto este livro pronto. Felizes somos nós que temos a chance de voltar a ele sempre que uma presença grega se fizer necessária em nossas vidas. [início 22/03/2011 - fim 09/04/2011]
"Entremilênios", Haroldo de Campos, São Paulo: editora Perspectiva (coleção Signos, 48), 1a. edição (2009), brochura 15x20,5 cm, 254 págs. ISBN: 978-85-273-0848-9

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