Sempre generosa, foi Sibele, amiga querida, quem emprestou-me esse livro. Quando conversávamos sobre "Sangue, ossos e manteiga" pensei que se tratava de uma versão feminina dos livros do Anthony Bourdain, principalmente seu "Cozinha confidencial", mas ao terminá-lo sei que é algo diferente (acho que a Sibele já sabia disto quando me emprestou o livro e deve ter se divertido com minhas tentativas de entendê-lo antes de sequer abri-lo). Não é um livro de gastronomia, mas sim um livro de memórias, um livro onde Gabrielle Hamilton registra (e ficcionaliza) suas experiências, sua vida. Mas quem diabos é Gabrielle Hamilton? Ficamos sabendo que ela é proprietária, além de chef, de um pequeno restaurante em New York, aberto no final de 1999. Aos poucos alcançou respeito e admiração, primeiro de sua clientela, depois de seus colegas cozinheiros, a despeito de não ter uma formação clássica em culinária, não ter frequentado escolas especializadas, não fazer parte de uma turma de amigos cozinheiros descolados. Claro, há um bocado de digressões sobre culinária, sobre hábitos de consumo, sobre a realidade da vida nos restaurantes (nada glamuroso, já se sabe). Gabrielle Hamilton sabe contar causos sem ser caricata. O que há de factual em sua vida pode ser resumido mais ou menos assim: nasce na segunda metade dos anos 1960, em uma família de classe média (baixa); os pais - uma francesa que gostava de cozinhar e um pai artista que gostava de sonhar - se divorciam quando Gabrielle tem uns 12 anos; termina o ensino médio e vai para New York; trabalha em um bar de yuppies no início dos anos 1980, ganha uma fortuna e gasta tudo em drogas; é demitida, quase presa, entra para uma faculdade - de letras, feminista e marxista - em Massachusetts, onde fica seus três anos de graduação; resolve viajar, passa uma temporada como mochileira, na Europa e na Ásia, frequentemente passando fome; de volta aos Estados Unidos passa a trabalhar em buffets e empresas de catering; resolve fazer um curso de pós-graduação em escrita criativa; volta a New York e a trabalhar com comida, como free-lancer; no final dos anos 1990, quase por acaso, resolve abrir um restaurante; apesar de só mencionar namoradas até metade do livro eis que se casa com um médico italiano; o casamento não é convencional, não parece que é exatamente amor o que os une; de qualquer forma Gabrielle Hamilton faz sucesso com seu restaurante; tem dois filhos, viaja periodicamente à Itália, para visitar a mãe de seu marido, com quem se identifica. O fato do livro não ser escrito linearmente, mas avançar e retroceder no tempo, como se ela tentasse demonstrar causas e consequencias em sua vida é a grande força do livro (ela sabe escrever bem e dosar o tom do que é confecional - e poderia soar piegas). "Sangue, ossos e manteiga" deve muito a dois autores: Max Weber ("A ética protestante e o espírito do capitalismo" deve ser o livro de cabeceira de Hamilton) e Sigmund Freud (se eu levasse a sério o que há de pajelanças na psicanálise diria que a vida de Hamilton tem facetas que mereceriam legiões de analistas, por décadas, para interpretá-las). Mas minha intuição me diz (mas não tenho paciência para comprovar) que o livro está mal traduzido. O texto é movimentado, ligeiro, mas frequentemente há umas construções totalmente obscuras, como se o tradutor não tivesse o tino de fazer entender o que se dizia no texto original. De qualquer forma nenhum leitor pode dizer que não se aprende um bocado, e não tem horas de prazer, ao se envolver com as aventuras de Gabrielle Hamilton.
[início 21/10/2012 - fim: 01/11/2012]
"Sangue, ossos & manteiga: a educação involuntária de uma chef relutante", Gabrielle Hamilton,
tradução de Lucas Murtinho, Rio de Janeiro: editora Rocco, 1a.
edição (2011), brochura 14x21 cm, 381 págs.
ISBN: 978-85-325-2704-2 [edição original: Blood, bones & butter: The inadvertent education of a reluctant chef (New York: Random House) 2011]
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