domingo, 21 de dezembro de 2014

lições de literatura russa

Terminei essas "Lições de literatura russa" de Vladimir Nabokov ainda em outubro deste ano, mas decidi deixar para escrever um registro de minha leitura apenas agora, no final de ano, em meu balanço. Talvez seja porque eu tenha lido coisas interessantes de Nabokov nesse ano; ou por conta de uma bela história da Rússia que li e que me impressionou ou apenas porque já terminei um ano de leituras com um livro russo (em 2011 finalizei o ano com uma resenha de um livro de Joseph Brodsky). Um crítico literário para Nabokov é "um sacerdote das opiniões médias dos leitores de cada tempo". Ele tem reservas ao ato da crítica ligeira (afinal qualquer charlatão pode emitir o juízo que quiser sobre um determinado assunto e imaginar-se tão fundamentalmente crítico quanto qualquer especialista ou erudito de fato, normalmente mais cuidadoso sobre o que fala e escreve). Entretanto o que é apresentado nessas lições não é simples crítica, mas sim notas de aula progressiva e recorrentemente utilizadas por ele em sua prática como professor universitário (por quase duas décadas, de 1941 a 1959, sobretudo no Wellesley College, em Massachusetts, e na Cornell University, em Ithaca, New York). O trabalho de compilação e organização das notas é assinado por Fredson Bowers (um acadêmico). Segundo Bowers os originais incluíam tanto textos manuscritos quanto material datilografado, além de fichas e quadros sinópticos, de forma que o material revela "estágios muito diferentes de preparação e polimento". Nessa compilação Nabokov fala especificamente de literatura russa, explica a seus alunos como ler adequadamente Fiódor Dostoiévski, Nikolai Gógol, Maksim Górki, Anton Tchekhov, Liev Tosltói e Ivan Turguêniev (são, respectivamente, 48, 60, 34, 58, 110 e 40 páginas dedicadas a cada um destes autores). Uma pessoa que conheça bem as narrativas de cada um dos autores estudados aproveitará melhor as notas, muito embora o texto seja envolvente o suficiente para encantar qualquer leitor, mesmo o mais completo neófito dos assuntos russos. Há generosas transcrições das traduções de Nabokov dos originais analisados (ele desconfiava particularmente das traduções do russo para o inglês disponíveis naquela época: "traduções abomináveis" dizia). Um terço do livro é de traduções dos originais. Aprendi um bocado, mas o fato de ter lido pouco os russos certamente me fez perder muitas associações e ênfases. De qualquer forma Nabokov oferece ao leitor longas descrições sobre técnicas narrativas e sobre os fundamentos da construção de um romance, explica também os  compromissos inerentes a esse ofício tão singular e atávico, que enfeitiça e destrói todo aquele cuja vaidade é maior que seu talento, disciplina ou esforço. Segundo ele, por exemplo, um escritor nunca deve ser ventríloquo de clichês jornalísticos de cunho fascista ou socialista (sorte dele não ter conhecido a literatura brasileira contemporânea), nem, tampouco, se impressionar com eventuais sucessos ou fracassos, de crítica ou público. Ele é implacável com Dostoiévski (para ele um escritor medíocre) e bastante generoso com Gógol, Tosltói e Tchekhov. Algo da biografia dos escritores que analisa é oferecido ao estudante/leitor, mas trata-se de algo secundário, o importante nas lições sempre é o que ele tem a dizer sobre a força inerente aos textos produzidos por eles. Nabokov oferece também muito de sua habilidade em interpretar como se comportam os seres humanos, sua descrição de como nos escondemos de nós mesmos quase sempre, através de mecanismos como hipocrisia, sarcasmo, mentira ou auto-ilusão. Transcrever as seminais frases de Nabokov rouba algo do prazer  do leitor de descobri-las por si só durante a leitura, mas deixo aqui uma única, que exemplifica bem o absoluto de suas convicções: "É difícil evitar o lenitivo da ironia e o luxo do desprezo ao examinar a imundície em que mãos submissas, tentáculos obedientes comandados pelo polvo inchado do Estado, conseguiram transformar em meu país essa coisa ardente e fantasticamente livre que é a literatura. Além disso, aprendi a valorizar minha repugnância por saber que, me mantendo tão indignado, preservo o que posso do espírito da literatura russa. Depois do direto de criar, o direito de criticar é a maior dádiva que podem oferecer a liberdade de pensamento e a de expressão." Considerando que isso foi escrito há mais de sessenta anos só nos resta reconhecer que o fascismo e o totalitarismo nunca dormem. Grande livro. E há outros livros dele com esse tipo de notas de aula, livros dedicados a James Joyce, Miguel de Cervantes, literatura em geral, Alexander Pushkin e Nikolai Gogol. Vou procurá-los, seguro que sim.
[início: 27/09/2014 - fim: 08/10/2014]
"Lições de literatura russa", Vladimir Nabokov, tradução de Jorio Dauster, edição/introdução/notas de Fredson Bowers, São Paulo: Três estrelas, 1a. edição (2014), brochura 16x23 cm., 399 págs., ISBN: 978-85-65339-30-8 [edição original: Lectures on Russian literature (New York: Harcourt Brace Jovanovich / Houghton Mifflin Harcourt Publishing Company) 1981]
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Balanço final [21.12.2014]
Hoje é o solstício de verão em nosso hemisfério (é o dia mais longo do ano, marca o início do verão, o dia com mais luz). Por uma coincidência bizarra ficamos 15 horas sem luz, num apagão dos diabos. E é o dia de nascimento de Frank Zappa. Evoé Zappa! Vamos a ver. É certo que 2014 foi um bom ano de leituras. Investi um tanto mais em não ficção do que faço usualmente (foi uma sugestão das boas de don Renato Cohen). Li coisas interessantes sobre viagens e cidades (livros sobre Veneza, Rússia, Alemanha, Berlin, Curitiba, Porto Alegre, Cuba, Salvador e Recife). Li umas biografias curiosas (de Lucian Freud, Proust e  James Joyce). Li um bom livro sobre Javier Marías (assinado por Gareth Wood) e li o último e soberbo livro dele (Así empieza lo malo). Li mais dois bons livros do Natsume Soseki, três do Mempo Giardinelli e quatro Vila-Matas. Participei de um projeto bacana, um livro de resenhas de autores contemporâneos, editado pela Dublinense (e organizado por Léa Masina, Rafael Bán Jacobsen, Daniela Langer e Rodrigo Rosp). Foram 102 registros de leitura ao longo do ano, bem perto da média dos dois anos anteriores, mas um tanto abaixo da média histórica, iniciada em 2007, que era de 114 livros por ano. Foram 25 de crônicas e ensaios; 15 romances; 13 de contos; 12 de poesia; 10 de perfis, biografias, memórias e relatos; 7 novelas; 5 infanto-juvenis; 4 de histórias em quadrinhos, graphic novels, cartuns ou mangás; 3 de fotografias; 2 de gastronomia; 1 único romance policial; 1 de turismo e 1 de mini-contos. Pode-se também dividir essas leituras em 35 de ficção e 36 de não-ficção, além de 12 de poesias e 19 divertimentos (não se deve ler nunca nada sem alegria, claro). Mantive a média de leituras de originais em inglês e em espanhol (7% e 30% do total dos livros do ano, respectivamente). Completei 900 resenhas em 2014 e certamente chegarei ao número mágico de 1000 antes do final de 2015. Além do livros o ano propiciou muitas alegrias. Doña Natália passou para o quarto ano de psicologia. Doña Helga trabalhou e viajou bastante pelo mundo da arte. Estivemos juntos em Berlin, caminhamos e nos divertimos à beça. Estive no Hora H, homenagem ao Haroldo de Campos na gloriosa Casa das Rosas (que comemorou 10 anos, evoé!). Participei de uma festa das boas, a dos 70 anos do Frank Missell, onde reencontrei com ele e com tantos bons amigos. Tive a chance de ir a São Paulo e reencontrar Oscar e Péricles; Toninho e Fernando; Renato e Luiz, Marcos, Samuel e Heloísa, Jackie e todo o povo de Samber, todavia me perdi da Sibele e da Beth, do Aníbal e do Parreira (vamos a ver se os encontro em 2015). Revi o Jesus González em Madrid, mas me perdi do Manolo e da Cris. Em Santa Maria recebi a visita de Frank e Fernando (e que boas conversas tivemos). Organizei com os amigos da CESMA e do Ponto de Cinema o vigésimo primeiro Bloomsday em Santa Maria. Conheci don Abdon Grilo, um sujeito surpreendente, que mantém um blog cheio de maravilhas sobre o Ulysses de James Joyce. Clara terminou o ensino fundamental. Victória terminou a pré-escola (e já sabe escrever seu nome sem medo). No ano que vem faremos festa pelos 90 anos de meu pai, don Papandreos Severinovich. Certamente será algo a se comemorar prá valer.
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quarta-feira, 17 de dezembro de 2014

las huellas dispersas

Neste volume não há textos inéditos. Todos podem ser encontrados nos demais livros de Javier Marías, principalmente aqueles onde estão compilados seus artigos escritos para jornais e revistas. Todavia trata-se de um livro que propicia algo precioso, a imersão nas narrativas de Marías diretamente relacionados a seu Ciclo de Oxford, ou seja, ao conjunto de romances: "Todas las almas", "Negra espalada del tiempo" e "Tu rostro mañana". A organização e apresentação do livro é assinada por Inés Blanca, uma conhecida especialista na obra de Marías, que nos informa que a primeira pessoa a investigar esses volumes como um conjunto foi José María Pozuelo Yvancos (no "Figuraciones del yo in la narrativa"). São cinquenta e sete textos, organizados tematicamente. Em "Los que sí han cruzado el mundo" encontramos 17 narrativas de Marías dedicadas a personagens reais que foram incorporados de alguma forma à sua ficção (ele é um mestre neste tipo de aproveitamento); em "Un país de novela" 5 textos que falam de sua experiência em viver na Inglaterra; em "Reino de redonda" 4 textos onde ele explica o acaso de sua investidura como rei Xavier I (da ilha de Redonda). A parte mais interessante do livro é a seção "El autor ante sus libros", onde encontramos 11 ensaios nos quais Marías explica um tanto de seu ofício como escritor, seu método de trabalho, a gênese de suas histórias (especificamente das três citadas acima). Na seção "Los tiempos y sus hechos" estão reunidas 11 crônicas sobre os aborrecimentos decorrentes da versão cinematográfica de "Todas las almas" e também alguns textos sobre política, história e economia do período que começa na queda do muro de Berlim (1989) e termina com o ataque às torres gêmeas em Nova Iorque (2001), temas que dão fundamento os romances desse ciclo. Na seção "El autor se asocia y callejea" Marías fala de sebos e antiquários, de sociedades e festividades literárias. O volume se encerra com dois contos (já incluídos no "Mientras ellas duermen") e diversos apêndices, de procedência e estilos variados, quase todos produzidos por terceiros (há resenhas e apresentações de Ángeles García, Eduardo Mendoza e Cabrera Infante por exemplo), além de uma lista atualizada da aristocracia do reino de Redonda, dos ganhadores do prêmio literário de mesmo nome concebido por Marías e algumas entrevistas. O texto mais antigo é de 1985, o mais recente de 2013. O leitor que já tenha experimentado aqueles três romances aproveita melhor esse livro, mas ler Javier Marías nunca aborrece ninguém, mesmo um eventual, porém curioso, neófito. Vale.
[início: 15/11/2014 - fim: 25/11/2014]
"Las huellas dispersas", Javier Marías, organização de Inés Blanca, Barcelona: Debolsillo (Penguin Random House Grupo Editorial), 1a. edição (2013), brochura 12,5x19 cm., 388 págs., ISBN: 978-84-9032-781-4

quinta-feira, 11 de dezembro de 2014

así empieza lo malo

Se eu recebesse esse livro sem título ou nome do autor identificado na capa bastaria ler uns poucos parágrafos para que descobrisse que se trata de um legítimo Javier Marías. Seu estilo é inconfundível, mas certamente difícil de ser reproduzido, copiado ou emulado. Seus narradores nunca nos apresentam invenções lineares, cronológicas, fáceis de ler, mas sim uma história que parece banal, mas a qual é, aos poucos, acrescentado um novo aspecto de um determinado assunto, uma história que recebe camadas novas de sentidos e sugestões, de possibilidades e sutilezas, de associações e detalhes, que fazem com que o leitor eventualmente acabe por organizar e entender como uma totalidade argumentativa, um bloco conceitual, uma epifania dos diabos, um diamante literário, uma magia (javiermariesca). Mesmo quando seus narradores parecem ter esgotado uma via de argumentação, exaurido um caminho rico em digressões, eis que percebemos que estávamos (o narrador e nós mesmos, afortunados leitores) enganados, pois havia ainda um último aspecto que deveria ser ali investigado e discutido, que ainda seria possível extrair dali alguma nova maravilha. Javier Marías cria personagens que identificamos de alguma forma com aqueles seus que já conhecemos de outros livros, uma ilusão similar aquela produzida pelos atores de cinema - mais frequentemente atores de antigamente, dos anos 1940, 1950 e 1960- que se especializaram em um determinado tipo de papel (de vilão, sedutor ou atlético, de ingênuo, moral ou ladino, de pérfido, cômico ou misterioso) e nos faziam automaticamente associar ao personagem interpretado por ele num determinado filme todas as características que já conhecíamos do mesmo sujeito quando ele havia interpretado um outro papel num outro filme. De forma similar, quando um grande diretor de cinema, um Hitchcock por exemplo, criava cada um de seus filmes com personagens distintos, adaptados às circunstâncias das diferentes histórias, criava também personas que sabíamos imediatamente aparentadas entre si, como se fossem arquétipos de homo sapiens sapiens, de modelos de seres humanos, de padrões esquemáticos do comportamento humano. Pouco importava se os atores que interpretavam os papéis fossem James Stewart, Cary Grant ou Sean Connery, Kin Novak, Grace Kelly ou Tippi Hedren, assim que os víamos em cena sabíamos que eram atores em um filme de Hitchcock. Com Javier Marías não é diferente (não por acaso o cinema tem um papel importante na maioria de seus livros, desde o primeiro deles, o divertido "Los dominios del lobo", de 1971. Começamos a ler "Así empieza lo malo" e seu personagem principal, Juan de Vere, parece alguém que tem o mesmo estofo do Jacobo Deza do Ciclo de Oxford: "Todas las almas", "Negra espalada del tiempo" e "Tu rostro mañana". É como se fosse um experimentado ator que é contratado para interpretar um papel diferente (em um livro diferente) de Marías. Juan é o jovem assistente de um diretor de cinema, Eduardo Muriel. Produz para ele versões em inglês de cartas, documentos e roteiros cinematográficos. Esse Muriel é casado com uma mulher muito bonita, Beatriz Noguera, mãe de três filhos. Nos meses em que fica hospedado na casa dos Muriel (os meses de verão de 1980, meses da icônica movida madrilenha) ele acaba se envolvendo numa questão que remete ao início do relacionamento de Eduardo e Beatriz, nos anos da guerra civil espanhola, uma questão que será protagonizada, vivenciada e absorvida por Juan de Vere completamente, que o modificará completamente. O narrador (Juan de Vere) conta sua história retrospectivamente. Ele é no livro um narrador de quase 60 anos que lembra dos acontecimentos de quando tinha pouco mais de 20 anos, ou seja, ele fala de uma encarnação que mal conhece ou respeita. Marías utiliza esse intervalo enorme de tempo (desde os anos de guerra civil espanhola, passando pelos anos da movida madrilenha - de redemocratização, pós-morte do ditador Franco, até chegar aos anos de incerteza que conhecemos todos, os anos de Zapatero e Rajoy, de Obama e Putin) para refletir sobre aquilo que cada indivíduo precisa saber discernir o mais rapidamente possível na vida - para que não sofra muitos aborrecimentos -, ou seja, precisa descobrir logo as sutilezas dentre aquilo que dizemos ser e que se sabe de nós, na vida mundana, social; ou daquilo que somos só para nós mesmos e não compartilhamos com mais ninguém, nem o mais cúmplice dos atores de nossos círculos de amizade, nem para um padre ou psicólogo, nem para um diário ou texto de ficção; e daquilo que gostaríamos de ser psicológica e socialmente falando, enfim, aquilo que projetamos como meta ambicionada para nossa vida futura. Nem Marías (nem o narrador) contam uma história fechada, factual, precisa, definitiva. O que Marías faz é conduzir o narrador por situações que possibilitam que o leitor se identifique com algumas questão e se posicione, que reflita sobre o que faria caso estivesse nas situações descritas como vivenciadas por cada um dos protagonistas de sua história. O livro começa e termina com uma metáfora náutico literária, começa com a presença das brumas por onde cruza um navio baleeiro antes de possibilitar a visão de sua presa, como a névoa que antecede a visão de Moby Dick pela tripulação do "Pequod" pela primeira vez. A epifania final, o entendimento final do narrador sobre sua condição (que é especular àquela vivida por Eduardo Muriel trinta anos antes) repete a sensação de estarmos a cruzar um mar de névoas e incertezas, de opacidade e dúvidas. Nunca ninguém sabe a extensão e implicações definitivas de tudo o que verbalizamos nessa vida.  Javier Marías discute como pequenos gestos, acasos e circunstâncias podem provocar transformações definitivas em nossas vidas. Ele fala do neoconservadorismo espanhol, de como a política e a religião estão entranhadas naquela sociedade. Ele fala das diferenças entre a sociedade espanhola e alemã, dizendo que essa última discutiu e absorveu seu passado condenável de uma forma muito mais razoável e saudável que a primeira, que ainda prefere conviver com seus fantasmas despóticos e/ou criminosos, como numa cumplicidade algo amalucada entre prisioneiros e verdugos. Ele fala uma vez mais sobre o poder da linguagem, das construções mentais que verbalizamos (voluntariamente ou através de atos falhos), da força da língua como a ferramenta que mais nos condena e ou que mais eficientemente pode nos salvar. Ele fala dos tempos da guerra civil espanhola, retomando questões já discutidas em vários de seus livros, onde percebe-se que pouco importa o que foi factual, verdadeiro ou real, mas sim o que foi historicamente construído (por força do poder, do despotismo, do ardil, da mentira, da hipocrisia ou até mesmo do acaso), pois é isso que acaba sendo majoritariamente aceito como válido. Qualquer brasileiro intelectualmente honesto deveria ser capaz de entender isso. Uma pessoa inescrupulosa sempre poderá construir para si um passado socialmente aceito (e economicamente vantajoso), desde que disponha dos meios e das oportunidade para fazê-lo. Ao mesmo tempo, trata-se de um romance doméstico, leve (digamos assim), pois os temas principais e os vários personagens podem ser confundidos/espelhados às vivências ou a pessoas reais, conhecidas e próximas de Javier Marías. A construção do protagonista da história, Eduardo Muriel, deve muito a biografia do tio de Marías, o cineasta Jesús Franco; o divertido Francisco Rico - já metamorfoseado como personagem nos livros de Marías diversas vezes - não é outro que o respeitado acadêmico Francisco Rico, da Real Academia Española, dileto amigo de Marías; e a esses pode-se acrescentar a menção explícita (entre pessoas reais e personagens bem inventados) de Peter Wheller, Dr. Arranz, Miguel Deverne e Flavia Manóia (seus personagens em outros livros) ou de Juan Benet, Vidal Secanell, Fernando Savater e Carmen Zapater (que são/foram amigos de Marías). Deve-se acrescentar também a essas minhas ilações a vívida inspiração no livro de vários acontecimentos da vida de sua mãe (Dolores Franco) e de seu pai (Julián Marías). Confundir essa estratégia com autoficção é uma bobagem, esse termo não dá a real dimensão do valor da prosa de Javier Marías e da qualidade de suas invenções. Javier Marías produziu uma vez mais um romance poderoso, que se desfruta completamente, nunca aborrece ou entedia. Pouco importa a trama, que é simples e não vou detalhar aqui para não afastar do leitor o prazer de suas próprias interpretações e descobertas. Para mim o que enfeitiça é a forma como camadas contínuas de entendimento vão brotando da trama, fazendo-nos aceitar verdades que não exatamente se contradizem, mas que são incompatíveis uma com as outras. Trata-se de um romance que reflete sobretudo sobre nossa incapacidade de tomar decisões (e conviver satisfatoriamente com aquelas que já tomamos). Esse tema, claro, remete ao "Hamlet", de Shakespere, pois Hamlet é um sujeito que simplesmente não consegue agir para viabilizar a decisão que tem tomada desde o início da peça (vingar a morte de seu pai). Cabe registrar que o título do livro brota de uma cena do terceiro ato de "Hamlet": "I do repent; but heaven hath pleas'd it so / To punish me with this, and this with me, / That I must be their scourge and minister. / I will bestow him, and will answer well / The death I gave him. So again good night. / I must be cruel only to be kind. / Thus bad begins and worse remains behind.". Ao menos como proposta inicial podemos pensar que deve ser feito previamente algum mal para que algum bem eventualmente possa florescer (ao menos para que algo muito pior fique no passado de nossas vidas). Por fim, uma última associação: "Así empieza lo malo" deve também algo ao Dante da "Divina Comédia", pois Javier Marías parece querer povoar sua literatura com menções ainda que elípticas e veladas àqueles viventes que praticaram ou praticam o mal, a todos aqueles que prejudicaram a ele, seus parentes, amigos, a seu país (sua guia pelo inferno não é outra que uma versão balzaquiana da Beatrice dantesca - não consigo escolher um bom Virgílio no livro). Li e reli esse livro como quem tateia um mapa do tesouro. "Así empieza lo malo" foi publicado há pouco mais de dois meses, no último 23 de setembro. Comprei a versão eletrônica do livro naquele dia mesmo e só quando já havia lido quase metade do livro - umas boas 250 páginas - foi que o volume físico chegou até mim. Um mês demorado de espera para algo que deveria levar uns poucos dias: Os correios brasileiros já foram uma instituição eficiente e confiável, paciência. Já com o livro físico nas mãos recomecei a leitura do início pois meu método de leitura implica em contínuas marcações nas páginas, anotações mil, registro de dúvidas. Rabisco coisas nas páginas que nem o mais eficiente dos e-readers alcançaria emular para mim. Terminei de ler o livro ainda em Brasília, durante uma missão de trabalho, há exatamente um mês, mas fiquei assombrado por ele, a consultá-lo e relê-lo, a percorrer algumas passagens como quem quer extrair delas algo mais que faça a alma um grande bem. Neste mês javiermarianesco li também "Las huellas dispersas", uma coleção de textos dele relacionados a seu Ciclo de Oxford (já mencionados acima, no início desse registro). Esses textos, sobretudo as entrevistas feitas com Marías transcritas nele, me ajudaram muito a entender melhor suas obsessões, sua inspiração e seu método. Haverá tempo neste ano para registrar algo sobre esse livro também. Essa é a centésima resenha do ano. Cousa boa. Ave Marías!
[início: 23/09/2014 - fim: 11/11/2014]
"Así empieza lo malo", Javier Marías, Madrid: Alfaguara (Grupo Santillana de ediciones / Penguin Random House Grupo Editorial), 1a. edição (2014), brochura 15x24 cm, 534 págs. ISBN: 978-84-204-1627-4

segunda-feira, 8 de dezembro de 2014

afirma pereira

Afirma Pereira é um romance muito bom. O narrador de Tabucchi começa o livro com a descrição de como um personagem surgiu como um fantasma em sua vida e fez-lhe lembrar de um jornalista português exilado em Paris que ele havia conhecido nos anos 1940. O narrador passa a contar o que soube de sua história. Pereira é um jornalista de meia idade, viúvo, católico, algo acima do peso, experimentado repórter policial, recém contratado por um pequeno jornal vespertino de Lisboa como responsável pelo caderno de cultura. Pereira traduz e edita sobretudo contos franceses. A história se passa no verão de 1938. Os dias são da ditadura salazarista, às vésperas da segunda grande guerra. Na vizinha Espanha a guerra civil está quase no fim, com as forças do ditador Franco já sobrepujando as do governo republicano com o apoio explícito dos governos italiano e alemão (além do apoio discreto do ditador português). Pereira é um jornalista que parece ser sempre o último a saber das coisas. As informações que tem sempre são de segunda mão, recebidas de um garçom, de seus médicos, de seu padre confessor e amigo, de seu chefe na redação, de uma secretária (que ele sabe trabalhar para a polícia política de seu país). Entusiasmado com um texto sobre a morte publicado em uma revista ele resolve convidar seu autor, um jovem chamado Monteiro Rossi, a escrever obituários de escritores famosos para seu caderno de cultura. Os necrológicos que Rossi escreve são sempre panfletários, libertários, algo impossível de ser editado num país onde a censura prévia da imprensa é norma. Pereira descarta as contribuições de Rossi, mas, algo paternal, continua a pagar pelos trabalhos e a dar conselhos ao jovem. Pereira lentamente percebe que Rossi deve estar envolvido com algum tipo de atividade clandestina contrária ao regime. Esgotado fisicamente Pereira resolve passar alguns dias em uma clínica de repouso junto ao mar. Lá ele conhece um jovem médico, de formação francesa, com quem discute uma provável origem psicológica de sua exaustão. Pereira volta a Lisboa e reencontra o agora foragido Rossi, acolhendo-o em seu apartamento. Contar mais sobre o livro é estragar o prazer de um eventual leitor. É mesmo uma pequena jóia, repleto de ironias e metáforas. Trata-se de um livro que pode ser transportado para qualquer tempo e lugar. A corrupta Itália de Berlusconi parece merecer muitas das ironias, já que Tabucchi publica seu livro em 1994, nos tempos de ascensão de Berlusconi como primeiro-ministro italiano. É um livro que nos faz lembrar do valor intrínseco da democracia e liberdade, que nos faz resistir, nos ensina a dizer não, simplesmente não, a qualquer tentativa de dominação, de controle social, censura ou opressão. Nos dias que correm muitos brasileiros parecem estar seduzidos com a idéia de viabilizar regimes de exceção, tanto de esquerda quanto de direita, mas esquecem, tolos e canalhas que são, que a tortura e a morte nunca escolhem ideologias, destroem sim tudo e a todos que tocam.
[início: 06/11/2014 - fim: 05/12/2014]
"Afirma Pereira: um testemunho", Antonio Tabucchi, tradução de Roberta Barni, São Paulo: editora CosacNaify, 1a. edição (2013), brochura 13x19 cm., 160 págs., ISBN: 978-85-405-0517-9 [edição original: Sostiene Pereira (Milano: Feltrinelli editore) 1994]

domingo, 7 de dezembro de 2014

o portal

Com "O portal", publicado originalmente em 1910, Natsume Soseki encerra uma trilogia que começa com "Sanshiro" e passa por "E depois", já resenhados aqui. Esses três romances não têm personagens compartilhados mas os temas discutidos são similares. Soseki discute o papel dos indivíduos numa sociedade em rápida transformação. Em "Sanshiro" acompanhamos um sujeito simples que sai do campo para a capital para estudar numa universidade. No admirável mundo novo que se apresenta, através das novas amizades e dos desafios a que se submete, a mundanidade e a hipocrisia tanto fascinam quanto assustam, deixando-o imobilizado (nunca é fácil administrar emoção e razão, responsabilidades públicas e o desejo). Em "E depois" um outro sujeito, membro de uma família rica e poderosa, forma-se numa universidade mas não se decide sobre qual carreira seguir. Descobrir-se apaixonado pela mulher de um amigo apenas reforça sua imobilidade, sua incapacidade de agir e avançar, de assumir um papel honrado na sociedade. A narrativa de "O portal" é um tanto mais amarga que a dos dois romances que o antecedem. Somos apresentados a um casal de meia idade, Sosuke e Oyone, que passam por dificuldades financeiras, tem problemas recorrentes de saúde, vivem apenas um para o outro. A exclusão da sociedade de ambos parece auto imposta, mesmo considerando-se as rígidas convenções morais da sociedade japonesa do início do século XX. Sosuke pertencia a uma família abastada que proporcionou sua ida para a universidade, mas se afasta dos estudos e cai em desgraça após se envolver e casar-se com Oyone, a irmã mais nova de um colega que já estava prometida em casamento. A repentina morte do pai e sua inabilidade natural para os negócios (antes sua recusa em pensar nos problemas, deixando sempre que o pior aconteça, ao ponto de ter sido enganado por um de seus tios) acabam por obrigá-lo a receber em casa seu irmão mais novo (Koroku). Ele parece incapaz de impedir que também o irmão abandone seus estudos universitários. A presença do irmão perturba a rotina do casal e as dificuldades financeiras se agravam. Oyone e Sosuke lamentam o fato de não terem filhos. Quando tudo parece sem solução, pois Sosuke precisa encontrar um jeito de fazer com seu irmão volte para a universidade e se formar, para não tornar-se um quase pária como ele, Sosuke parte em busca de ajuda em um mosteiro Zen budista. Seus dias ali lhe fazem bem, mas é por puro acaso, através da ajuda de um vizinho que afeiçoou-se a ele, que seus problemas são de fato resolvidos. Assim como nos demais romances da trilogia o final é aberto, podemos ser otimistas ou não sobre o destino dos personagens (Soseki parece especular sobre as possíveis metamorfoses pelas quais passa a sociedade japonesa, que enriquece, passa por rápida industrialização e militarização). Soseki tem um estilo interessante. Lê-se o livro e parece que quase nada factual de verdadeira importância acontece, até que de repente nos damos conta das complexas repercussões dos conflitos que seus personagens experimentam e aqueles conflitos nos absorvem. Soseki não moraliza a discussão, nem se utiliza de um narrador que descreva a psicologia dos personagens, mas a tensão alcançada por ele é notável. Ainda prefiro seu livro de estréia ("Eu sou um gato"), mas nenhum livro dele que já li é ruim. Soseki sempre alcança provocar reflexões poderosas a partir de suas histórias. Vale.
"O portal", Natsume Soseki, tradução de Fernando Garcia, São Paulo: editora Estação Liberdade (1a. edição) 2014, brochura 16x23, 240 págs. ISBN: 978-85-7448-241-5 [edição original: Mon () Tokyo, 1910]

quarta-feira, 3 de dezembro de 2014

9 historias de amor

Mempo Giardinelli tem uma imaginação dos diabos. Dele já li uma novela incrível ("Luna Caliente") e duas séries de contos bastante boas ("Luminoso Amarillo" e "La noche del tren"). Suas nove histórias de amor reunidas aqui são também histórias de dor, histórias onde a memória do vivido e o desejo do que poderia alternativamente ser experimentado se fundem (e se confundem). Três das nove histórias foram pensadas/iniciadas há mais de 20 anos (uma há quase quarenta), coisas dos tempos anteriores ao exílio mexicano de Mempo, mas só recentemente, pois o livro é de 2009, ganharam a forma final oferecida ao leitor.  Em "Jurita" acompanhamos um amor impedido por diferenças religiosas, que não se consuma, mas que consome a existência dos amantes; em "Appassionata número cero" um casal se habitua a estar junto, mas não oficializam sua relação, por medo de se perderem num casamento; em "Willie" um menino é acolhido por uma família como se fosse um anjo bom, pronto para os ajudar a superar uma crise; em "Allá bailan, aquí lloran" uma mulher vela seu marido morto e escolhe partir com ele na morte a participar dos festejos de são João; em "Martita on my mind" um professor universitário conta os sucessos de uma paixão turbulenta por uma colega bem mais jovem e imprevisível; em "El seguimento" um sujeito sobrevive a um acidente vascular cerebral e tem sua rotina vigiada pela mulher, mas a morte parece ser especialmente cruel no destino que reserva a ambos; em "Semper Fidelis" uma garota ama em segredo e se perde no tempo; em "Para toda a eternidad" um filho propicia o reencontro sexual dos pais mortos enterrando-os na mesma cova, enlaçados; em "La doble tragedia del Teatro Petruzzelli", uma versão modernizada da história de Romeu e Julieta, dois amantes fazem da luxúria o estopim da queima de um teatro onde trabalhavam. Nas histórias de Mempo o fantástico não sobrepuja o que é factual e verossímil nos atos humanos, por mais amalucados e imprevisíveis que esses atos sejam. O amor quase sempre é um fardo, uma dor, antes que algo bom, uma delícia. Mesmo amargo, talvez ele esteja certo em os descrever assim. 
[início: 09/10/2014 - fim: 06/11/2014]
"9 historias de amor", Mempo Giardinelli, Buenos Aires: Ediciones B (grupo Zeta), 1a. edição (2009), brochura 13x22 cm., 160 págs., ISBN: 978-987-627-129-5

segunda-feira, 1 de dezembro de 2014

michael kohlhaas

"Michael Kohlhaas" é a versão romanceada dos atribulados últimos anos de um sujeito (Hans Kohlhaas) que viveu na Saxônia em meados do século XVI (à época a Saxônia fazia parte do Sacro Império Romano-Germânico). Ele foi contemporâneo de Martinho Lutero e, portanto, da reforma protestante da igreja católica. Heinrich von Kleist escreve seu romance no início do século XIX, mais de 250 anos após os sucessos vividos por Kohlhaas, ou seja, trata-se de uma história que tem mais de 450 anos. Kohlhaas era um criador e comerciante de cavalos que tornou-se o líder popular em uma revolta cuja motivação foi bastante banal: sua busca violenta por reparação - sobretudo moral, mais que financeira - após ter sido espoliado ao cruzar a fronteira das terras de um nobre e ter perdido dois de seus melhores cavalos. Ludibriado basicamente pelo preposto daquele nobre (um castelão algo simplório) Kohlhaas é continuamente enganado pelos atores do complexo sistema judiciário do Sacro Império Romano-Germânico (como todos eles são parentes ou contraparentes, utilizam-se dos mais variados artifícios para retardar qualquer resposta a sua petição). A perda dos cavalos, a morte da esposa, a desonra e a certeza da cumplicidade dos poderosos da região faz com que ele perceba que todos seus aborrecimentos decorrentes daquele logro inicial jamais serão reparados. Ele passa então a saquear e incendiar cidades, alcançando com sua milícia uma série de vitórias contra os exércitos regulares que tentam contê-lo. A descrição de Henrich von Kleist enfatiza a ingenuidade de Kohlhaas e sua ilusão com a possibilidade das leis públicas poderem de fato reparar seus danos. O próprio Lutero é convocado para dissuadi-lo e consegue a promessa de Kohlhaas de esgotar todas os níveis de recursos jurídicos do Império antes de continuar a incendiar cidades (a igreja - mesmo a igreja reformista - sempre faz algum tipo de serviço sujo para o poder estabelecido). Assim, uma vez mais enganado, Kohlhaas se afasta de seus comandados e coloca-se sob a proteção daqueles que por fim o condenarão. O livro seria apenas o registro dos atos cavalheirescos de um líder revolucionário ingênuo demais para merecer o sucesso até que Kleist acrescenta/inventa algo realmente poderoso. Ele faz com que os príncipes eleitores de Brandemburgo (Berlim) e da Saxônia (Dresden) - que são os sujeitos responsáveis pelo último recurso jurídico do caso, Kohlhaas (já condenado, prestes a ser decapitado) e uma cigana/vidente se encontrem num determinado ponto do livro. Com esse artifício von Kleist enriquece Kohlhaas como personagem pois ele passa a controlar não as ações bélicas como fazia antes de ser aprisionado, mas a psicologia do crime que está sendo cometido contra ele, a burla das leis que o condena, o arremedo de justiça que justifica sua morte. Ao lermos "Michael Kohlhaas" aprendemos que as leis existem (sempre existiram e existirão de alguma forma) mas as leis nunca foram/são/serão interpretadas da mesma forma se os sujeitos que buscam nelas conforto ou reparo pertencem a esferas de poder, representatividade e origem diferentes. A ilusão com o valor absoluto das leis é sempre destruidora. Assim como "A briga dos dois Ivans", "A lição do mestre" e "O colóquio dos cachorros", já resenhados aqui, esse pequeno livro faz parte de uma coleção de histórias curtas (A arte da novela, da Grua Livros, originalmente produzidas pela Melville House Publishing).
[início: 01/11/2014 - fim: 03/11/2014]
"Michael Kohlhaas: Aus einer alten Chronik", Heinrich von Kleist, tradução de Marcelo Rondinelli, São Paulo: Grua livros, 1a. edição (2014), brochura 13x18 cm., 155 págs., ISBN: 978-85-61578-37-4 [edição original: parcialmente publicado em jornais Phöbus(Dresden) 1808 / primeira versão em livro: Erzählungen (Berlin) 1810]