Terminei essas "Lições de literatura russa" de Vladimir Nabokov ainda em outubro deste ano, mas decidi deixar para escrever um registro de minha leitura apenas agora, no final de ano, em meu balanço. Talvez seja porque eu tenha lido coisas interessantes de Nabokov nesse ano; ou por conta de uma bela história da Rússia que li e que me impressionou ou apenas porque já terminei um ano de leituras com um livro russo (em 2011 finalizei o ano com uma resenha de um livro de Joseph Brodsky). Um crítico literário para Nabokov é "um sacerdote das opiniões médias dos leitores de cada tempo". Ele tem reservas ao ato da crítica ligeira (afinal qualquer charlatão pode emitir o juízo que quiser sobre um determinado assunto e imaginar-se tão fundamentalmente crítico quanto qualquer especialista ou erudito de fato, normalmente mais cuidadoso sobre o que fala e escreve). Entretanto o que é apresentado nessas lições não é simples crítica, mas sim notas de aula progressiva e recorrentemente utilizadas por ele em sua prática como professor universitário (por quase duas décadas, de 1941 a 1959, sobretudo no Wellesley College, em Massachusetts, e na Cornell University, em Ithaca, New York). O trabalho de compilação e organização das notas é assinado por Fredson Bowers (um acadêmico). Segundo Bowers os originais incluíam tanto textos manuscritos quanto material datilografado, além de fichas e quadros sinópticos, de forma que o material revela "estágios muito diferentes de preparação e polimento". Nessa compilação Nabokov fala especificamente de literatura russa, explica a seus alunos como ler adequadamente Fiódor Dostoiévski, Nikolai Gógol, Maksim Górki, Anton Tchekhov, Liev Tosltói e Ivan Turguêniev (são, respectivamente, 48, 60, 34, 58, 110 e 40 páginas dedicadas a cada um destes autores). Uma pessoa que conheça bem as narrativas de cada um dos autores estudados aproveitará melhor as notas, muito embora o texto seja envolvente o suficiente para encantar qualquer leitor, mesmo o mais completo neófito dos assuntos russos. Há generosas transcrições das traduções de Nabokov dos originais analisados (ele desconfiava particularmente das traduções do russo para o inglês disponíveis naquela época: "traduções abomináveis" dizia). Um terço do livro é de traduções dos originais. Aprendi um bocado, mas o fato de ter lido pouco os russos certamente me fez perder muitas associações e ênfases. De qualquer forma Nabokov oferece ao leitor longas descrições sobre técnicas narrativas e sobre os fundamentos da construção de um romance, explica também os compromissos inerentes a esse ofício tão singular e atávico, que enfeitiça e destrói todo aquele cuja vaidade é maior que seu talento, disciplina ou esforço. Segundo ele, por exemplo, um escritor nunca deve ser ventríloquo de clichês jornalísticos de cunho fascista ou socialista (sorte dele não ter conhecido a literatura brasileira contemporânea), nem, tampouco, se impressionar com eventuais sucessos ou fracassos, de crítica ou público. Ele é implacável com Dostoiévski (para ele um escritor medíocre) e bastante generoso com Gógol, Tosltói e Tchekhov. Algo da biografia dos escritores que analisa é oferecido ao estudante/leitor, mas trata-se de algo secundário, o importante nas lições sempre é o que ele tem a dizer sobre a força inerente aos textos produzidos por eles. Nabokov oferece também muito de sua habilidade em interpretar como se comportam os seres humanos, sua descrição de como nos escondemos de nós mesmos quase sempre, através de mecanismos como hipocrisia, sarcasmo, mentira ou auto-ilusão. Transcrever as seminais frases de Nabokov rouba algo do prazer do leitor de descobri-las por si só durante a leitura, mas deixo aqui uma única, que exemplifica bem o absoluto de suas convicções: "É difícil evitar o lenitivo da ironia e o luxo do desprezo ao examinar a imundície em que mãos submissas, tentáculos obedientes comandados pelo polvo inchado do Estado, conseguiram transformar em meu país essa coisa ardente e fantasticamente livre que é a literatura. Além disso, aprendi a valorizar minha repugnância por saber que, me mantendo tão indignado, preservo o que posso do espírito da literatura russa. Depois do direto de criar, o direito de criticar é a maior dádiva que podem oferecer a liberdade de pensamento e a de expressão." Considerando que isso foi escrito há mais de sessenta anos só nos resta reconhecer que o fascismo e o totalitarismo nunca dormem. Grande livro. E há outros livros dele com esse tipo de notas de aula, livros dedicados a James Joyce, Miguel de Cervantes, literatura em geral, Alexander Pushkin e Nikolai Gogol. Vou procurá-los, seguro que sim.
[início: 27/09/2014 - fim: 08/10/2014]
"Lições de literatura russa", Vladimir Nabokov, tradução de Jorio Dauster, edição/introdução/notas de Fredson Bowers, São Paulo: Três estrelas, 1a. edição (2014), brochura 16x23 cm., 399 págs., ISBN: 978-85-65339-30-8 [edição original: Lectures on Russian literature (New York: Harcourt Brace Jovanovich / Houghton Mifflin Harcourt Publishing Company) 1981]
Balanço final [21.12.2014]
Hoje é o solstício de verão em nosso hemisfério (é o dia mais longo do ano, marca o início do verão, o dia com mais luz). Por uma coincidência bizarra ficamos 15 horas sem luz, num apagão dos diabos. E é o dia de nascimento de Frank Zappa. Evoé Zappa! Vamos a ver. É certo que 2014 foi um bom ano de leituras. Investi um
tanto mais em não ficção do que faço usualmente (foi uma sugestão das boas de don Renato Cohen). Li coisas interessantes sobre viagens
e cidades (livros sobre Veneza, Rússia, Alemanha, Berlin, Curitiba, Porto Alegre, Cuba, Salvador e Recife). Li umas biografias curiosas (de Lucian Freud, Proust e James Joyce). Li um bom livro sobre Javier Marías (assinado por Gareth Wood) e li o último e soberbo livro dele (Así empieza lo malo). Li mais dois bons livros do Natsume Soseki, três do Mempo Giardinelli e quatro Vila-Matas. Participei de um projeto bacana, um livro de
resenhas de autores contemporâneos, editado pela Dublinense (e organizado por
Léa Masina, Rafael Bán Jacobsen, Daniela Langer e Rodrigo Rosp). Foram 102 registros de leitura ao longo do ano, bem
perto da média dos dois anos anteriores, mas um tanto abaixo da média
histórica, iniciada em 2007, que era de 114 livros por ano. Foram 25 de crônicas e ensaios; 15 romances; 13 de
contos; 12 de
poesia; 10 de perfis, biografias, memórias e relatos; 7 novelas; 5 infanto-juvenis; 4 de histórias em quadrinhos, graphic novels, cartuns ou mangás; 3 de fotografias; 2 de gastronomia; 1 único romance
policial; 1 de turismo e 1 de mini-contos. Pode-se também dividir essas leituras em 35 de ficção e 36 de não-ficção, além de 12 de poesias e 19 divertimentos (não se deve ler nunca nada sem alegria, claro). Mantive a média de leituras de originais em inglês e em espanhol (7% e 30% do total dos livros do ano, respectivamente). Completei 900 resenhas em 2014 e certamente chegarei ao número mágico de 1000 antes do final de 2015. Além do livros o ano propiciou muitas alegrias. Doña Natália
passou para o quarto ano de psicologia. Doña Helga trabalhou e viajou bastante
pelo mundo da arte. Estivemos juntos em Berlin, caminhamos e nos divertimos à beça. Estive no Hora H, homenagem ao Haroldo de Campos na gloriosa Casa das Rosas (que comemorou 10 anos, evoé!). Participei de uma festa das boas, a dos 70 anos do Frank
Missell, onde reencontrei com ele e com tantos bons amigos. Tive a chance de ir
a São Paulo e reencontrar Oscar e Péricles; Toninho e Fernando; Renato e Luiz,
Marcos, Samuel e Heloísa, Jackie e todo o povo de Samber, todavia me perdi da Sibele e da Beth, do Aníbal e do Parreira (vamos a ver se os encontro em 2015). Revi o Jesus González em Madrid, mas me perdi do Manolo e da Cris. Em Santa Maria recebi a visita de Frank e Fernando (e que boas conversas tivemos). Organizei com os amigos da CESMA e do Ponto de Cinema o vigésimo primeiro Bloomsday em Santa Maria. Conheci don Abdon Grilo, um sujeito surpreendente, que mantém um blog cheio de maravilhas sobre o Ulysses de James Joyce. Clara terminou o ensino fundamental. Victória terminou a pré-escola (e já sabe escrever seu nome sem medo). No ano que vem faremos festa pelos 90 anos de meu
pai, don Papandreos Severinovich. Certamente será algo a se comemorar prá valer.
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Adorei seu Blog .... Literatura em uma visão pessoal !! Desde 1994 anoto em um caderno todos os livros que leio. Comecei a uns dois anos atrás a anotar os filmes que vejo, mas antes de anotar, tanta coisa já foi feita .... Vou voltar mais vezes !! Saudações de Floripa.
ResponderExcluirO Pondé recomendou este livro!
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