Um bom escritor sempre tem a última palavra. Mario Vargas Llosa inventa em seu mais recente romance, "Cinco esquinas", uma sátira divertida sobre o Peru dos anos Fujimori. Seus personagens são reais ou ao menos compartilham o mesmo nome de pessoas reais, mas a narrativa segue as regras da ficção, afinal mesmo a realidade precisa ser algo inventada. A história é conhecida. Em 1990 Vargas Llosa decide concorrer a presidência de seu país, tem a maior fração de votos num primeiro turno mas perde por uma grande margem para Alberto Fujimori no segundo. As advertências que fez durante a campanha se confirmam. Durante dez anos Fujimori torna-se um ditador de fato, destrói a economia, implanta com seu braço direito Vladimiro Montesinos um aparato de repressão sanguinário e corrompe completamente o Peru. Julgado e condenado por vários crimes, cumpre até hoje sua pena de vinte e cinco anos de prisão (pelo menos ficamos sabendo que no Peru existe uma sistema judiciário que funciona). Enquanto isso, em meio a tantos sucessos, Vargas Llosa seguiu sua vida, escreveu vários livros e ganhou vários prêmios, entre eles o Nobel de literatura de 2010. O que se conta em "Cinco esquinas" é rocambolesco, lembra muito um folhetim, uma alegoria sobre um país distante e fantástico, uma sarcástica história de detetives. Ele se esforça por apresentar os diferentes matizes da miséria ética e a degradação de toda a sociedade peruana daquele tempo, mas não há rancor, o tom nunca é panfletário, a violência poucas vezes deixa de ser apenas um conceito terrível que se prefere evitar. Com a exceção de Juan Peineta, um velho recitador de versos, todos os demais personagens do livro são desprezíveis, ou mesquinhos, ou alienados, ou corruptos, ou oportunistas ou simplesmente maus (e há dezenas deles, alguns que apenas acompanhamos por um parágrafo, onde eles nos ajudam a elucidar alguma cousa boba da trama, afinal somos o detetive escondido no livro). Claro, estamos lidando com um autor que domina completamente o seu ofício. Os diálogos são muito bem escritos e as várias técnicas narrativas utilizadas surpreendem pela inventividade. Há uma generosa cota de erotismo em "Cinco esquinas", o sujeito sabe excitar, sem insultar, o leitor (o resultado literário das descrições de sexo sempre é um bom teste para avaliar o quão talentoso é um escritor). O romance não é nem de longe o mais espetacular de Vargas Llosa que já li, mas inegavelmente ele deixa-se ler quase de uma vez só sem aborrecimentos. Vargas Llosa nunca perde o ritmo e a capacidade de surpreender o leitor. Ele utiliza a história do livro, que é parte da história de seu país, sobretudo para enfatizar o nefasto comportamento daqueles
jornalistas que, corrompidos pelo poder ou simplesmente vocacionados
para o sórdido, achincalham e mentem, usam seus espaços em jornais e
revistas, rádios e programas de televisão para destruir qualquer um que
se oponha aos desejos de uma pessoa poderosa, de um tiranete de plantão. Funciona durante algum tempo e o custo social é sempre alto, mas acabamos por enxergar cada ator do cenário político de um país, inclusive dentre os jornalistas, sem os véus do embuste e da impostura. Nem é preciso dizer que qualquer brasileiro minimamente inteligente já cansou desse tipo de canalha. Vale.
[início: 02/08/2016 - fim: 03/08/2016]
"Cinco esquinas", Mario Vargas Llosa, Madrid: Alfaguara (Grupo Santillana de ediciones / Penguin Random House Grupo Editorial), 1a.
edição (2016), brochura 15x24 cm, 318 págs. ISBN: 978-84-204-1896-4
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