quarta-feira, 8 de março de 2017

história do novo sobrenome

A narradora de "A amiga genial" termina sua história deixando o leitor em um suspense dos diabos. Ao final daquele volume não há como resistir a necessidade de saber qual seria a reação da protagonista (Raffaella) ao ver nos pés de um sujeito que ela abomina os sapatos que deu a seu marido, justamente na festa de seu casamento. O segundo volume da série, "História do novo sobrenome", explica os desdobramentos daquele choque e de muitos outros sucessos. Se no primeiro volume é a memória direta (porém traiçoeira) dos acontecimentos da infância e adolescência que trilha a história, nesse segundo volume a narradora (Elena) opta por um artifício literariamente conhecido e eficaz, o do fortuito acesso aos diários da pessoa sobre quem se escreve (Raffaella). A narrativa avança cronologicamente e as vidas paralelas de Elena e Raffaella se espelham continuamente. O livro navega em assuntos espinhosos: os conflitos sociais dos anos 1960; o papel e as lutas das mulheres italianas em uma sociedade abertamente machista; a descoberta do prazer e da sexualidade; a dificuldade de essencialmente entendermos as razões e o comportamento dos outros, por mais que os conheçamos; a impossibilidade de sermos fiéis ao mesmo tempo a nós mesmos e aos outros. A narradora em algum momento confessa não ter empatia por seu "eu" do passado (sabedoria prática que Proust já havia feito Elstir nos ensinar). A narradora descobre que a arte (a literatura, no caso) pode servir para que alguém se entenda, se descubra (descubra sua voz interior, entenda talvez até toda sua geração e país), ou seja, que todo homo sapiens sapiens sabe contar ao menos uma história universal, que é a sua. Descobrirá depois (já no terceiro volume) que inventar algo que tenha a potência da vida vivida é muito mais difícil que apenas apelar para a memória e que essas dificuldades cobram caro à autoestima de qualquer escritor. A narradora conta sobre seus anos de universidade e os aborrecimentos de sua amiga em um casamento condenado ao fracasso. Mas não são o suspense programado ou apenas a curiosidade provocada que sustentam o livro. O que realmente enfeitiça o leitor é a riqueza de detalhes dos processos mentais que a autora é capaz de emular. O fluxo de palavras e a consciência dos humores voláteis de cada personagem parecem reais, vívidos, convencem até o mais ranzinza dos leitores. A série napolitana é sim um único e caudaloso romance, dividido em volumes por razões comerciais, mercadológicas, editoriais. Como em todo Bildungsroman (romance de formação) vamos acompanhar as metamorfoses dos personagens principais e saber do destino deles, mas será a qualidade da narrativa que tornará a leitura sempre algo tão prazeroso. Vale. Vamos em frente.
[início: 05/02/2017 - fim 10/02/2017]
"História do novo sobrenome: juventude", Elena Ferrante, tradução de Maurício Santana Dias, Rio de Janeiro: Editora Globo (coleção Biblioteca Azul), 1a. edição (2016), brochura 14x21 cm., 472 págs., ISBN: 978-85-250-6122-5 [edição original: Storia del nuovo cognome (Roma: Edizione E/O) 2011]

2 comentários:

  1. Deve ser preciosismo, mas eu diria que Lila (Rafaella) é a antagonista, pois a protagonista é Lena (Elena) que narra a história. De fato, a autora escreve muito bem e sabe prender o leitor. Li os três livros de uma sentada e aguardo esperançosamente o quarto e último volume da tetralogia. Apesar de compreender que a autora situa adequadamente a história naquele tempo, dos anos 1960, onde fervilham ideias de comunismo, guerra fria, etc, todo esse asunto parece hoje ultrapassado, visto que vivemos uma época onde prevalece apenas o consumismo. De certo modo, eu espero que Ferrante fale disso no último volume, a decepção com certos ideais, além de fechar a história das duas amigas. Abraços

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  2. Olá. Concordo contigo. Vamos ver o que nos aguarda no último volume. Também estou curioso. Abraços.

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