Nunca havia lido nada de Donna Leon, mas conhecia algo de sua fama, dos mais de vinte romances policiais que já havia escrito, dos prêmios que havia recebido (ela ganhou o Pepe Carvalho, dedicado exatamente à literatura policial, em 2015). Quando vi a capa deste "Nada como ter amigos influentes", justamente num dia em que planejava uma viagem de volta à Veneza, não tive dúvidas que estava na hora de conhecer sua prosa. Trata-se mesmo de um bom romance policial. Claro, preciso ler mais cousas dela para entender melhor psicologia, manias e método de seu protagonista, o Comissário Guido Brunetti, mas esta primeira incursão agradou-me bastante. Assim como o Montalbano de Andrea Camilleri, Brunetti é o tipo de sujeito que combina um entendimento prático de como funciona a complexa sociedade italiana, sobretudo nas diferentes concepções de justiça partilhadas pelos cidadãos, e de como opera a psiquê daqueles que usualmente cometem crimes, sobretudo os crimes menos notórios, de difícil condenação. Não se trata de uma narrativa onde se espelha o mundo contemporâneo, os sucessos dos dias que correm. Ao menos neste volume o comissário Brunetti fala de uma Veneza dos tempos anteriores a implantação do Euro como moeda corrente (a edição original é de 2000). Ele é casado com uma professora universitária, fato curioso, pois sabe-se que professores e policiais têm ao menos uma coisa importante em comum, já que ambos
convivem com a decadência, os primeiros da capacidade de cognição das novas
gerações, os últimos da moral pública praticada por quase todos atualmente. Brunetti também tem dois filhos adolescentes, mas eles pouco influenciaram a trama deste volume. O medo, ou antes, a ignorância sobre a AIDS, serve de chave para a solução de um dos problemas apresentados na história. Já o entendimento da engrenagem da corrupção institucionalizada e o uso da violência, nunca novidade para os italianos, ajuda a solucionar outro. As descrições da sociedade veneziana, o zêlo por seus segredos centenários e o cabotinismo da população parecem exemplificar muito daquilo que encontrei no bom guia histórico sobre Veneza, que li há tempos, assinado por Jan Morris. Donna Leon usa um artifício típico dos romances policiais clássicos, que é o de alternar a investigação sobre duas histórias, dois crimes, para no desfecho do livro fazer com que seu protagonista apresente a solução dos enigmas quase simultaneamente. Assim como nas histórias de Camilleri o comissário Brunetti tem em seus ajudantes personagens bem interessantes: uma secretaria diligente, Elettra; um braço direito sempre pronto para o combate, Vianello; um médico-legista sarcástico, Bocchese; um promotor venal, Patta; um jornalista que o ajuda quando necessário. As duas histórias que se alternam tratam de drogas (o vício em heroína) e da corrupção que brota dos problemas financeiros dos indivíduos. É certo. Vou procurar mais livros desta senhora.
[início: 19/06/2017 - fim: 21/06/2017]
"Nada como ter amigos influentes (Brunetti #9)", Donna Leon, tradução de Carlos Eugênio Marcondes de Moura, São Paulo: editora Schwarcz (Grupo Companhia das Letras), 1a. edição (2017), brochura 13x21 cm., 261 págs., ISBN: 978-85-359-2915-7 [edição original: Friends in High Places (New York: Penguin Books) 2000]
Boa tarde, Agnaldo. Acompanho há algum tempo seus excelentes comentários, inicialmente a partir das resenhas que você fez de alguns livros de Camilleri (Montalbano) e de Carofiglio (Guerrieri), dois autores que aprecio muito. Coincidiu, desta vez, poder ler um comentário seu sobre o mesmo livro que terminei de ler justamente hoje. Mas, ao contrário de você, eu já li todos os outros oito livros de Donna Leon/Brunetti publicados no Brasil pela Companhia das Letras entre 2000 ("Morte no teatro La Fenice", o primeiro) e 2012 ("Remédios mortais", o oitavo). Gostei de todos e comprei este "Nada como ter amigos influentes" logo após o lançamento. O livro, como você bem observa, foi escrito dezessete anos atrás, em 2000, refletindo uma realidade bastante remota, quando a lira ainda era a moeda italiana mas a corrupção já estava presente (e não creio tenha desaparecido com a lira). De lá para cá, Donna Leon lançou mais quinze livros (todos de Brunetti), praticamente um por ano, de forma que, pelo retrospecto, teremos que esperar muito para vê-los publicados aqui no Brasil. Para minha tristeza, ela, que mora em Veneza há quase 40 anos, nunca permitiu que seus livros fossem publicados em italiano, provavelmente para poder criticar à vontade a sociedade veneziana/italiana. Sendo assim,ao contrário dos livros do Comissário Montalbano e do Avvocato Guerrieri, que consigo comprar nas edições originais italianas, eu, por não saber o inglês, fico dependendo da Companhia das Letras. Ainda bem que esta mesma editora, dentro de sua série policial, publica outros ótimos autores,como (o seu preferido) Manuel Vázquez Montalbán, Leonardo Padura, Lawrence Block, Fred Vargas e os brasileiros Garcia Roza e Tony Bellotto.
ResponderExcluirVoltando ao livro: também gosto de Brunetti e também já havia notado semelhanças com Montalbano, assim como o Delegado Espinosa de Garcia Roza me faz lembrar do Mario Conde de Padura. Finalizando, um detalhe importante: por ser veneziano de nascimento e mesmo morando há muitos anos no Brasil, acompanhar as andanças de Brunetti pelas "calli, fondamente, campi e ponti di Venezia é certamente un piacere in più". Abraços e parabéns pelos seus comentários.
o deixou um novo comentário sobre a sua postagem "nada como ter amigos influentes":
ExcluirOlá meu caro, como vais? Bacana saber destas informações todas. Não sabia que ela proibia traduções para o italiano. Comprei o livro por acaso, como disse no registro no blog, e realmente gostei da trama. Vou seguir tuas indicações e comprar alguns dos livros já editados pela companhia das letras. Assim como você sou um entusiasta do detetive Carvalho. Como quase todo mundo fora da Itália conheci o Camilleri e seu Montalbano por indicação do Manolo Vázquez Montalbán, de quem li não apenas os livros policiais mas quase toda a obra periodística, política e sobre gastronomia. Grande abraço e grato pelas palavras gentis sobre o blog. Já que você é veneziano sugiro a você o pequeno livrinho sobre Veneza do Javier Marías (que li em português de Portugal): http://guinamedici.blogspot.com.br/2017/04/veneza-um-interior.html e um outro pequeno livro (esse brasileiro) escrito pelo Sartre sobre Veneza: http://guinamedici.blogspot.com.br/search/label/Jean-Paul%20Sartre
Grande abraço.
Olá meu caro, como vais? Bacana saber destas informações todas. Não sabia que ela proibia traduções para o italiano. Comprei o livro por acaso, como disse no registro no blog, e realmente gostei da trama. Vou seguir tuas indicações e comprar alguns dos livros já editados pela companhia das letras. Assim como você sou um entusiasta do detetive Carvalho. Como quase todo mundo fora da Itália conheci o Camilleri e seu Montalbano por indicação do Manolo Vázquez Montalbán, de quem li não apenas os livros policiais mas quase toda a obra periodística, política e sobre gastronomia. Grande abraço e grato pelas palavras gentis sobre o blog. Já que você é veneziano sugiro a você o pequeno livrinho sobre Veneza do Javier Marías (que li em português de Portugal): http://guinamedici.blogspot.com.br/2017/04/veneza-um-interior.html e um outro pequeno livro (esse brasileiro) escrito pelo Sartre sobre Veneza: http://guinamedici.blogspot.com.br/search/label/Jean-Paul%20Sartre
ResponderExcluirGrande abraço.