Quando se trata de bons livros, não importa quantas vezes um sujeito volte a lê-los, o assombro sempre será diferente, o encantamento sempre se dará de uma forma distinta, as descobertas sempre serão diversas das anteriores. Shakespeare, o eterno Shakespeare, inventou seu Rei Lear há mais de quatrocentos anos e esse drama segue nos arrebatando. Charles Lamb e Harold Bloom já nos ensinaram que a leitura de Rei Lear é particularmente gratificante porque, em geral, as montagens e/ou adaptações ficam sempre aquém do texto, porque os atores e/os diretores são sempre derrotados pela potência da peça, por sua riqueza, por seu caráter quase mitológico, por sua tessitura poética que remete a de uma santa escritura. Se for este mesmo o caso, a tarefa do leitor agora ficou muito mais prazerosa, pois Lawrence Flores Pereira, respeitado e premiado professor e tradutor, que já nos havia proporcionado suas ótimas versões de Hamlet e de Otelo, acabou de publicar seu Rei Lear. Não me atrevo aqui a fazer um resumo da peça. Talvez, numa sinopse, seja só o caso de lembrar que há duas tramas intrincadas, dois enredos paralelos: o enredo principal é o de Lear, rei da Bretanha, que planeja dividir seu reino entre suas três filhas (Regan, Goneril e Cordélia), mas apenas provoca conflitos e destruição, morte e loucura; a segunda trama é a de Gloucester, um conde do reino bretão, que é enganado por seu filho bastardo (Edmund), renega seu filho natural (Edgard) e, a exemplo de Lear, produz a si e a todos os que o cercam, somente degradação, sofrimento, ruína, realçando o conflito e caos gerado por Lear. Um leitor romântico (ou um que não seja pelo menos um pouco niilista ou cínico) precisa emparedar seu coração, pois na peça quase todos os personagens sofrem demasiadamente. O espectador/leitor também sofre com eles, até o final, mesmo quando uns poucos dentre os virtuosos personagens sobrevivem e todos os maus, os completamente perversos, sejam derrubados. De certa forma a loucura de Lear é a loucura grandiloquente deste nosso século, onde a falta de sabedoria, a vocação para destruição e o desentendimento sobre o que seja amar são a verdadeira norma contemporânea, fazem parte de nosso triste cotidiano (seja no envolvimento real entre os homo sapiens, seja nas especulares relações sociais virtuais, no contínuo autoengano das redes, que apenas deixa aflorar nosso lado mais sombrio). A tradução de Lawrence - frente toda a complexidade da peça, que funde prosa e verso, canções e retórica, com ritmos diferentes - valoriza sempre o verso (instável, no original, nas palavras dele mesmo), oferecendo ao leitor um léxico rico e variado, com elementos eruditos e populares, soluções muito originais, criativas. Gostei muito de ler. Os usuais mimos da coleção Penguin Classics Companhia das
Letras estão presentes: (i) uma bela introdução, que ocupa um terço do volume, assinada por Lawrence e por Kathrin H. Rosenfield; (ii) duas notas breves que especificam as
fontes e o compromisso tradutório utilizado (vale lembrar que o projeto de tradução do Lawrence pode ser encontrado na Revista de Literatura e Linguística Eutomia
(ISSN 1982-6850); (iii) as referências
bibliográficas fundamentais; e, por fim, (iv) aquilo que sempre é uma festa para o leitor curioso, uma leitura à parte que todos devem fazer simultaneamente ou mesmo só após terminar o texto: extensas notas de tradução para cada uma das 26 cenas da peça, que ocupam
aproximadamente um quarto do volume, onde ora se argumenta sobre as
soluções adotadas na tradução de passagens específicas, ora se fala da
conveniência ou não de um determinado procedimento cênico, mas que
também oferece explicações sobre aquilo que é cifrado ou enigmático
demais no original, como certos antropônimos, topônimos, passagens que
fazem alusão a mitologia, história e sociologia. Só um detalhe besta, que acho ser um deslize que a Penguin/Companhia poderia ter evitado: o sumiço do Conde de Kent na lista de personagens (logo ele, que é o primeiro a falar na peça). Outro detalhe besta, mas bacana desta vez, é que achei muito curioso Lawrence ter utilizado nas passagens fantásticas e loucas dos discursos do Pobre Tom (Edgard) a palavra "Trasgo", resgatando-a do folclore português (da província do norte de Portugal, Trás-os-montes), quando quer identificar os demônios que se ocupam deste pobre personagem. Acontece que "Trasgo" foi incorporado notavelmente pelos tradutores de Harry Potter para o português, já há vinte anos, quando precisaram identificar aquilo que J.K. Rowling chamou de "Trolls" em seu livro (é uma bobagem, mas pareceu-me um fortuito encontro entre registros eruditos e populares, tão presentes na peça). Finalizo reproduzindo aqui duas citações marcantes da peça, que parecem tão adequadas para os nossos dias, dias povoados por vazio e estupidez: "When we are born, we cry that we are come to this great stage of fools" e "Nothing will come of nothing.” ("Quando nascemos, choramos por aportar / A esse vasto palco de loucos." e "Mas nada virá de nada."), nas versões de Lawrence. Livro para se ler com atenção, esforço e disciplina. Vale muito a pena. Evoé Lawrence, Evoé! Vale!
Registro #1578 (drama #23)
[início: 22/07/2020 - fim: 29/09/2020]
"Rei Lear", William Shakespeare, tradução de Lawrence Flores
Pereira, São Paulo: editora Schwarcz: Penguin Classics Companhia das
Letras, 1a. edição (2020), brochura 13x20 cm., 320 págs., ISBN:
978-85-8285-111-1 [edição original: His True Chronicle Historie of the Life and Death of King Lear and His Three Daughters. With the Unfortunate Life of Edgar, Sonne and Heire to the Earle of Gloster, and His Sullen and Assumed Humor of Tom of Bedlam (London) first quarto, 1608; second
quarto, 1619; The Tragedie of King Leat (London: Isaac Jaggard and Edward Blount) first folio, 1623; Foakes, R.A. (ed,), Arden Shakespeare, Third Series (London: Bloomsbury), 1997]
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