sexta-feira, 8 de abril de 2011

ó

Ó, de Nuno Ramos, é um livro que cobra tempo e atenção do leitor, mas o recompensa generosamente. São 18 textos que podemos chamar displicentemente de contos ou de poemas em prosa, mas que carregam também algo da história de nosso tempo, de memória, de ensaio erudito e de invenção. Li em uma entrevista que ele chama este seu trabalho de "um misto de poesia com ensaios amalucados", algo entre a poesia e o pensamento. Há personagens e um narrador, mas o que enfeixa e é perene nos contos são as manifestações corpóreas dos seres humanos (como se ele pretendesse registrar com palavras o corpo físico mais que a alma das gentes, especialmente aquilo que existe nelas de pré-verbal, de pré-linguístico). Ou ainda, vamos a ver, como se ele pretendesse fazer um "o corpo fala" poético. Cada conto tem uma "teoria", um pensamento central: teorias da linguagem, do teatro lento, do comportamento em grupo, dos sonhos, do erotismo, do corpo orgânico, do estranhamento e do envelhecimento. Mas os contos não são monotemáticos. Eles se fragmentam em outras histórias, que dialogam, se complementam. Há histórias que incluem fragmentos de sonhos, que se não são terríveis, impressionam pela vivacidade. Além dos contos ele inclui sete textos em itálico chamados de "ó" (primeiro, segundo e assim por diante). Estes textos são mais enigmáticos, funcionam como cantos elegíacos, mas não sabemos elegíacos em relação a quem ou ao quê (ao corpo talvez). É como se houvesse uma "radiação de fundo" preenchendo todo o texto, radiação que vaza nestes "ós". Idéias que não se condensaram em textos, ainda vagam pelo ar. Gostei das metáforas que ele cria e das imagens fortes que ele provoca. Identificar cada um de nós como "herdeiros, proprietários, de um corpo cuja escritura foi lavrada com medo e tédio" é algo que obriga o leitor a pensar com o que faz, com o que se envolve, que planos tem, que sonhos tem. Este "Ó" e "O vidraceiro cego", que terminei de ler semanas atrás, são dois bons livros mas o "Ó" me parece mais poderoso, mais fundamental. [início 20/10/2010 - fim 20/03/2011]
"Ó", Nuno Ramos, São Paulo: editora Iluminuras, 1a. edição (2008), brochura 13,5x18 cm, 285 págs. ISBN: 978-85-7321-290-7

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