"Quatro soldados" é um romance que enfeixa quatro histórias que até poderiam se defender sozinhas, mas que ficam bem juntas. Samir Machado de Machado oferece narrativas que são difíceis de classificar, pois há em todas elas algo de romance policial, deduções detetivescas, episódios de horror, aventura e história. De qualquer forma nelas encontramos entretenimento honesto, que lemos descompromissados, com puro deleite. Samir deve ter investido um bom tempo em pesquisas para dar verossimilhança ao livro, mas o que há de factual nele não o torna um romance histórico aborrecido, antes o contrário, pois sua narrativa está repleta de jogos eruditos, citações (algumas literárias, outras contemporâneas, num flerte com o anacronismo do qual ele acaba se safando bem), além de genuínas invenções, que tem algo de amalucadas, mas que se encaixam realmente muito bem entre si. Os quatro soldados do título são todos jovens oficiais da cavalaria do império português em terras da América do Sul: Licurgo, Antônio Coluna, Silvério e sujeito conhecido como Andaluz (pela ordem: um alferes, um capitão, um tenente e um desertor). As histórias acontecem nos anos seguintes ao Tratado de Madrid e da guerra guaranítica, em meados dos anos 1750. O narrador é um dos quatro jovens (eu até gostaria de explicitar qual deles é, mas aí este registro de leitura estragaria algo do prazer dos eventuais futuros leitores dele). As histórias em si são movimentadas. Na primeira deles ("mas para trazer a espada") Licurgo tem pouco mais de 16 anos, descobre e é aprisionado numa espécie de labirinto perdido no campo gaúcho, na região de Rio Pardo, de onde é resgatado por Coluna. O ritmo segue o manual de uma "a jornada do herói" clássica. Em algum momento descobrimos uma antiga relação que existe entre Licurgo e Coluna. Na segunda parte (tudo o que alvoroça a quietude das coisas) Licurgo já tem 18 anos e é designado para uma missão na região de Laguna. Lá conhece Andaluz, um sujeito muito sofisticado, leitor prolífico e contrabandista de livros (numa época onde o acesso aos livros era controlado com rigor pelo poder português). Na terceira parte (a escuridão secreta do coração da terra) Antônio Coluna é designado para fazer a segurança de uma família de estancieiros que pretendem se fixar na região sul do pampa gaúcho. O grupo é emboscado por um habilidoso sujeito, Silvério, que tenta fazer com que os ataques sejam atribuídos aos índios da região. Na última história (a vila das cabeças cortadas) encontramos novamente o Andaluz, envolvido na investigação da morte de um padre visitador, na região de Laguna. Durante a investigação ele conhece Silvério, cuja montaria desapareceu no mesmo dia em que o padre foi morto. Os dois trabalham juntos algo a contragosto, mas conseguem descobrir as circunstâncias da morte do padre. As quatro histórias falam um bocado dos hábitos de leitura dos personagens (e, com alguma liberdade, dos brasileiros daquele tempo), sobre a gastronomia daqueles dias e do senso de honra daquelas pessoas. Samir toma bastante cuidado com o acerto dos registros de fala dos personagens. A edição é bem feita, cheia de detalhes, inclusive usando uma família tipográfica digital que remete a um folheto impresso em meados dos anos 1740, quando não era permitido a instalação de tipografias no Brasil. A fonte é conhecida como Isidora, o nome do impressor do tal folheto. Samir conta algo disto no blog sobrecapas (há outros curiosos comentários sobre o livro em posts do blog do samir). Certamente esses quatro personagens poderiam continuar suas aventuras
vezes sem fim, como um quarteto de heróis gaudérios do século XVIII, mas
isso só seu criador saberia dizer. Enfim, bom livro, divertido.
[início: 29/08/2013 - fim: 01/09/2013]
"Quatro Soldados", Samir Machado de Machado, Porto Alegre: editora Não-Editora, 1a. edição (2013), brochura 14x21 cm., 320 págs., ISBN: 978-85-61-249-47-2
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