Há três anos, quando li "A infância de Jesus", não tinha ideia que esse livro do Coetzee seria o primeiro de uma nova trilogia (como aquela dos bons "Boyhood", "Youth" e "Summertime"). Lembro do espanto com a proposta, algo amalucada, sobre Novílla, uma cidade onde os habitantes, vindos de um lugar inominado, do qual nada lembram, começam uma nova vida. Como numa espécie de repovoamento da Terra pós dilúvio, eles chegam até Novílla de barco, concebidos imaculadamente, sem parentescos entre si, ganham novos nomes e ocupações. A organização social dali parece ser como o sonho de um velho comunista que vê seus projetos utópicos consagrados. Todos falam espanhol. Pensei no livro como uma alegoria, um contido e mágico realismo, um enigmático romance de fantasia, onde encontramos releituras de
passagens bíblicas e literárias (algo do "Don Quijote" e de alguns contos
de fada, algo do "Cândido" e do "Admirável Mundo Novo"). Coetzee faz seus personagens discutirem temas filosóficos importantes (a natureza do mal, a
origem da cognição, a lei do terceiro excluído). Apesar da estranheza o leitor fica preso ao destino daqueles personagens bizarros, cujos nomes parecem definir sua vocação. No início deste 2016 Coetzee publicou a continuação de sua história, um volume intitulado "The Schooldays of Jesus". Entende-se melhor o primeiro livro, mas novos enigmas são apresentados. Trata-se de um romance onde a ênfase continua na discussão de temas metafísicos, desta vez sobre a teoria dos números, a harmonia das esferas de Pitágoras, a húbris grega. O volume anterior termina com a fuga de Inés, Simón e Davíd de Novílla (devido as dificuldades de Davíd adaptar-se ao sistema escolar da cidade). Eles rumam para Estrella, uma cidade menor, mais rural que urbana, onde temporariamente trabalham numa fazenda, coletando frutas. A questão escolar de Davíd ainda precisa ser solucionada. As proprietárias da fazenda onde Inés e Simón trabalham se oferecem para zelar pelos estudos de Davíd (são as três graças, ou as três parcas, gregas. Inicialmente ele é apresentado a um engenheiro que lhe dá noções básicas de matemática, mas ele é um aluno difícil e esse tutor sugere que ele entre para uma das academias da cidade (além das escolas convencionais Estrella tem três "academias": uma dedicada ao "canto", outra a "dança" e uma terceira ao "átomo"). A narrativa prossegue, cheia de desvios, acumulando personagens e histórias curtas (que discutem a natureza das paixões humanas, teoria musical; o
aprendizado de técnicas de escrita como o ato de criar vida; definições
para amor, ego e liberdade; as
relações entre crime e castigo, o livre-arbítrio e o poder do estado). Com o tempo Davíd aprende a "dançar números", uma forma de conexão pura entre os homens e as estrelas. O livro termina com Davíd em transe, girando continuamente com um dervixe, experimentando algum tipo de contato com as esferas celestes, vendo estrelas como um Tycho Brahe, acoplado ao transcendental. A cada capítulo um leitor obcecado com associações (como eu) encontra diversos temas estimulantes. Mas este mar de associações intoxicou-me, ou melhor, intoxiquei-me sozinho tentando fazer associações. Talvez o inusitado dos nomes e atos dos personagens seja um tropo proposital de Coetzee, produzidos para induzir o leitor a buscar pistas falsas. Talvez o certo seja ignorar essa compulsão por entender o que há de criptografado na narrativa (se é que tais associações realmente existem, afinal não há Jesus algum na história e o simples paralelo bíblico aos sucessos do livro é algo óbvio demais). Talvez devamos aceitar apenas o que diz e faz Simón, o narrador, o personagem que ordena o caos de ideias e paixões dos demais, que guia o leitor pelas ilhas serpeantes das digressões de Coetzee, que predica como um profeta e acompanha diálogos como um filósofo. Definitivamente, enredo e venturas dos muitos personagens parecem ser apenas distração, cenografia, truques de um mágico habilidoso. Contar histórias é fácil, filosofar é difícil. O que verdadeiramente estimula, desafia e ilumina os homo sapiens sapiens é a filosofia, parece nos lembrar, professoral, Coetzee). Vamos ver como ele apresentará os novos sucessos de Simón, Inés e Davíd no último volume da trilogia. Daí, talvez, possamos entender mais. Vale. Em tempo: esse é o último registro de leitura do ano. Antes do solstício farei um balanço dos livros lidos no ano.
[início: 23/11/2016 - fim: 01/12/2016]
[início: 23/11/2016 - fim: 01/12/2016]
"The Schooldays of Jesus", J.M. Coetzee, London: Harvill Secker / Vintage (Penguin Random House UK), 1a. edição (206). brochura 13,5x21,5 cm., 260 págs., ISBN: 978-1-911-21536-3
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Balanço final: 21/12/2016 [solstício de verão]
Esse foi um ano bastante complicado, terrível, aborrecido, pesado, dominado pela estupidez reinante deste desgraçado país, repleto de pequenos dissabores que conseguiram ofuscar as poucas alegrias que vivi (seria hipocrisia não ficar satisfeito com os sucessos de Helga e Natália, ou com a saúde dos gatos, ou com as descobertas no novo apartamento). De qualquer forma, assim como num dia disse Flaubert, meu coração está transformado em uma necrópole. Arre! Vamos em frente. Ao finalizar 2016 alcancei o décimo ano de registros deste
“Livros que eu li”. Se 2015 foi o ano de uma maioria folgada de romances, esse 2016 foi o ano dos
livros de crônicas, dos livros de ensaios, dos livros de não-ficção. Fiz 111 registros de leitura, bem
próximo da média dos dez anos do blog. Foram 30 de crônicas e ensaios (27% do
total); 20 romances (18%); 11 de histórias em quadrinhos, graphic novels,
cartuns ou mangás; 10 de poesia; 8 de contos; 7 de perfis, biografias, memórias
e relatos; 4 novelas; 4 dedicados ao público infanto-juvenil; 4 livros de arte;
3 romances policiais; 2 de gastronomia; 2 coleções de aforismos; 2 de turismo e
apenas um dos seguintes quatro gêneros: didáticos; catálogos; divulgação
científica e música (o adorável livrinho de canções irlandesas do Robert Gogan, joyceano dos bons que conheci em Dublin). Aliás li um bocado de coisas relacionadas a Joyce e a Irlanda: o fenomenal guia de leitura do Ulysses assinado pelo Caetano Galindo; três ou quatro guias literários de Dublin; a biografia do tradutor argentino do Ulysses, Salas Subirat; o livro dedicado a cerveja Guinness; os poemas reunidos em Pomes Pennyeach; o belo The Ondt and the Gracehoper (parte do Finnegans Wake); a divertida versão em mangá do Ulysses; e o bom livro da catarinense Dirce Waltrick do Amarante sobre os tradutores brasileiros de Joyce. Li três livros do romeno Cartarescu, sempre uma surpresa; três do bom holandês Nooteboom (inclusive um comemorativo dos 500 anos de morte do Bosch) e três do argentino Giardinelli. Gostei muito do catálogo de uma exposição que não vi, a "Rastros", do piauiense Weaver Lima. Li com calma várias coletâneas de poesias: a do Mautner, a da Szymborska, a do Marco de Menezes, da Cristina Macedo, do Ricardo Freire, entre outros. Consegui ler um Javier Marías (suas notas de aula dedicadas ao Quijote, neste quarto centenário da morte de Cervantes), e dei sorte, pois um ano sem ler Javier Marías é um ano perdido. Não cumpri várias promessas (não terminei o Tristram Shandy, nem o Quijote, nem os contos do Tolstói, nem os ensaios do Haroldo de Campos compilados pelo Marcelo Tápia, nem os poemas do Waly Salomão). Não consegui terminar de organizar o livro do Abdon Grillo. Organizei um Bloomsday em homenagem ao Antônio Houaiss (por conta dos 50 anos de sua tradução do Ulysses). Enfim, consegui manter minha cota de livros em inglês (11% do total) e em espanhol (24% do total); alcancei ultrapassar os 300 registros de romances, os 200 registros de livros de ensaios e os 125 de coletâneas de contos; tive a sorte de encontrar algum descanso com a leitura de mais de cem escritores diferentes, companheiros de viagem neste 2016. Logo veremos os sucessos de 2017. Vale. E viva a dona Vic.
Li o A Infância de Jesus, não gostei, achei fraco, entediante, sem sentido, sem objetivo. Parece que esse segundo volume dá no mesmo. Abraços.
ResponderExcluirPois é. VAmos esperar o terceiro. ABRAÇÃO véio.
ResponderExcluirParabéns imensa quantidade de livros lidos.
ResponderExcluirEm lugar de "Consegui ler um Javier Marías (suas notas de aula dedicadas ao Quijote, neste quarto centenário de sua morte)", não seria melhor "neste quarto centenário da morte de Cervantes"?
Abrçaos
Tchê, vou corrigir. Grato pela atenção. Abraço
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