Ronai Rocha é um sujeito industrioso. Quem o conhece sabe de sua obsessão com a precisão das cousas, de sua paciência em entender e se fazer entender, em bem ouvir e contar, em tentar dirimir tons cinzas e equívocos em discussões, mesmo que neste processo acrescente um bocado de outros tons cinzas e pertinentes dúvidas em seus interlocutores. "Escola partida" é seu livro mais recente, publicado agora no início deste já inesquecível 2020. Já registrei aqui algo sobre "Ensino de filosofia e currículo", de 2015, mas não registrei, ai de mim, algo sobre seu livro anterior, o seminal "Quando ninguém educa". Paciência. "Escola partida" é curto, pouco mais de 150 páginas, mas não se trata de um livro que se possa ler sem pensarmos com calma, refletirmos sobre os enunciados e proposições. Ronai apresenta ao leitor reflexões sobre o debate que gravita o movimento "Escola sem partido". Não se trata de um panfleto que poderia ser usado para condenar in totum o movimento em si (nem, tampouco, de forma especular, ser usado para enaltecê-lo, por mais absurdo que fosse fazer uma coisa destas). Ronai procura entender a gênese do desconforto que levou um grupo, em 2003, a propor restrições à atividade docente, condenando práticas que os prosélitos deste grupo entendem como não compatíveis com a docência. Em que pese o fato deste movimento não ter alcançado praticamente nenhuma vitória no campo jurídico, que implicasse em condenação e/ou controle dos educadores, a existência do movimento e a repercussão das teses por eles defendidas afeta todos os atores do sistema educacional brasileiro. Em seis capítulos sintéticos Ronai Rocha: (i) conta a história do movimento escola sem partido brasileiro; (ii) descreve versões mais antigas deste debate, recuperando sobretudo a atuação de Max Weber no contexto do incentivo ou condenação que professores universitários alemães faziam em relação a participação dos estudantes na primeira grande guerra mundial, há mais de cem anos; (iii) fala algo sobre a história da educação no Brasil, seus vetustos dilemas e conflitos; (iv) provoca o leitor a acompanhar o que ele chama de "exercício de pensamento de risco", que implica em aceitar as consequências indesejáveis que boas intenções, voluntarismo e hipóteses fracas geram; (v) discute sobre as falácias usualmente repetidas por educadores de todos os matizes, ou sobre coisas que sabemos explicar mas não justificar, ou sobre a fragilidade de certos conceitos - quase sempre palavras vazias quando malabaristas de paradoxos as manipulam sem pudor; (vi) conclui falando da impossibilidade de aceitarmos um "código de deveres dos professores", ou de um "código de ética profissional docente", como advogam os entusiastas do movimento escola sem partido; todavia, ao mesmo tempo, ele conclui falando da necessidade de oxigenação dos educadores que atuam nas escolas, da necessidade de preservá-las das amarguras desnecessárias decorrentes das batalhas políticas que dão-se naturalmente nos demais espaços da sociedade (amarguras desnecessárias são palavras de Hannah Arendt, perene presença e condutora de boa parte do texto de Ronai). Enfim, ou a escola é preservada como um espaço de confiança - para estudantes, professores, pais, gestores, reguladores, avaliadores, etc e tal - ou a escola é nada (palavras minhas essas, claro, bem menos otimista que o Ronai sobre a possibilidade de pactos desta natureza serem efetivos em um país tão primitivo e tosco como o Brasil). Eu poderia tentar falar mais sobre esse notável livro. Falar sobre o conceito de "segundas pessoas", de Annette Baier; sobre o modelo aristotélico hierárquico em espiral: força, poder e autoridade; sobre Cecília Meireles, outra serena guia de Ronai pelos escolhos da história da educação no Brasil e sobre seu aforismo: "A escola tem de ser o território mais neutro do mundo..."; sobre a "atmosfera sebastianista e autoindulgente" que brota do desejo de modificar toda a sociedade antes de modificar apenas as práticas escolares, visando um mínimo de letramento, capacidade de compreensão, de entendimento básico da matemática; falar sobre o saboroso conceito de maoismo tropical utilizado por ele. Mas "Escola partida" não é o tipo de livro que se preste a ter frases ou capítulos pinçados em uma curta resenha como essa minha. Acredito ser algo que merece uma leitura completa, pois cada leitor é quem deve responder sobre o "Que fazer?" com a educação brasileira. Para quem quer realmente entender os aspectos técnicos do livro do Ronai recomendo muito o ensaio de Vítor Costa, leitor de primeira hora. Grande Ronai, grande livro. Evoé! Vale!
Registro #1509 (didático #13) [início: 17/03/2020 - fim: 29/03/2020]
"Escola partida: Ética e política na sala de aula", Ronai Pires da Rocha, São Paulo: editora Contexto, 1a. edição (2020), brochura 16x23 cm., 160 págs., ISBN: 978-85-520-0177-5
Caríssimo Aguinaldo, muito obrigado pela resenha! Que meu livro tenha sido lido por ti, com tal sensibilidade e cuidado, faz com que eu sinta que o trabalho que tive ao escrevê-lo tenha sentido! Minha manhã de quarentena ficou iluminada pelo teu texto! Abração!
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