terça-feira, 17 de março de 2020

mnemomáquina

Ronaldo Bressane oferece ao leitor em seu romance de estreia, Mnemomáquina, uma narrativa esquiva, onde eventos fantásticos se superpõem como em um palimpsesto, futuro e passado se fundem e personagens amalucados contam fragmentos de uma história (história que se não serve como alegoria definitiva de nada real ou contemporâneo, paradoxalmente provoca tantas associações quanto a imaginação do leitor dispuser-se a aceitar). Por vezes imaginei um homem dentro de um computador, com suas memórias fragmentárias disputando espaço com fragmentos de jogos, programas, aplicativos, planilhas, arquivos, filmes, ou simplesmente um homem de ressaca, que acorda ainda em um bar. Em uma São Paulo pós-apocalíptica, provavelmente em 2054, seu quinto centenário, parcialmente submersa pelas águas do mar, corporações disputam o controle das emoções dos indivíduos, operam mecanismos de segregação, alienação e dominação (mais ou menos como acontece hoje em dia, porém de forma mais dramática, teatral, operística). A vida segue, as pessoas já adaptadas ao arquipélago de prédios cujas garagens e andares mais baixos estão alagados, conformados à realidade do mundo aquático em que vivem. Quase todos os personagens ou têm poderes psíquicos, telepáticos, potencializados ou deprimidos por drogas, ou são agentes secretos de corporações que disputam um eventual poder supremo, global, ou são mutantes, seres geneticamente modificados, clones de alguém, cujas memórias são duplicadas em corpos/capas distintas (algo que lembra “Altered Carbon”, livro de Richard K. Morgan de 2002, que virou uma série recentemente). Uma revolução de zumbis e/ou segregados se aproxima e essa revolução (ou série de atentados anarcoterroristas) será transmitida em tempo real, como em um terrível e definitivo reality show. Publicado em 2014 pela Demônio Negro, Mnemomáquina cobra do leitor um bom tempo de leitura. Não se trata de uma narrativa que se deixa ler displicentemente, sem atenção. A edição é bem cuidada. Entre o prólogo, um capítulo [0] e o posfácio, um capítulo [X], estão enfeixados 43 capítulos, identificados por 14 vinhetas diferentes, que representam diversos protagonistas e/ou narradores (na capa há uma vinheta diferente de todas as demais, que talvez identifique o autor, mas isso pouco importa). Alguns dos protagonistas são mais falantes (Baby Gasoline domina muitos capítulos, também metamorfoseada em suas várias encarnações/nomes; Hannah, uma tubaroa, flutua naquele mar e funciona como ligação entre quase todos os demais personagens; Butthole, um macaco albino, guincha e distribui sopapos; Frabrizio Fabrizzianni, que joga xadrez com Hannah talvez seja um dos narradores supremos da história; Zed Stein, talvez filho de Fabrizio, é outro personagem em busca de redenção e calma). A maioria dos demais personagens aparece apenas episodicamente, para complementar uma ou outra situação. Já alinhei demasiados “ou” e "talvez" neste registro de leitura. Paciência. Há várias citações / homenagens: a J. D. Salinger e seus personagens, a Philip K. Dick e seu Blade Runner, a Elvis Presley, Michael Jackson, a cidade de São Paulo e sua geografia, ao clima de eterna festa que só se encontra em bares, como a Mercearia (São Pedro), citada algumas vezes no livro. Bressane distribui sarcasmo e crítica a trocentas coisas: ao mercado de arte, às fórmulas literárias, a diluição da TV, ao futebol, a falsa dicotomia entre sexo e amor. Quem já leu e gostou de Naked Lunch, do William S. Burroughs, há de se divertir com esse Mnemomáquina. Em tempo: como em toda boa distopia, um rosário de previsões brotam do romance (achei nele até uma gripe chinesa!). Bueno. Diverti-me à beça. Vale! 
Registro #1502 (romance #374) 
[início: 08/02/2020 - fim: 12/03/2020]
"Mnemomáquina", Ronaldo Bressane, ilustrações de Eva Uviedo, São Paulo: V. de Moura Mendonça Livros (Selo Demônio Negro), 1a. edição (2014), capa-dura 16x23 cm., 338 págs., ISBN: 978-85-66423-13-6

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