domingo, 1 de março de 2020

sobre os canibais

Caetano W. Galindo, industrioso tradutor e professor universitário, venceu o Prêmio Paraná de Literatura de 2013, na categoria conto, com "Ensaio sobre o entendimento humano", sua estréia em ficção. Este livro passou por uma legítima e robusta metamorfose, transformou-se em "Sobre os canibais", recentemente publicado pela Companhia das Letras (não se trata de uma nova versão, mas na verdade de um livro novo, pois quase que dobrou de tamanho). Quando resenhei o "Ur-Sobre os canibais", que reunia 24 contos curtos, afirmei que procurava neles por uma única história cifrada que enfeixasse os contos, todavia, como não a encontrei, aceitei que cada uma delas se defendia sozinha. "Sobre os canibais", reúne 42 contos, contos com mais facetas, está mais burilado. Três histórias desapareceram e vinte uma outras foram acrescentadas. Nesta nova encarnação agora pareceu-me que o livro revela um viés diferente, agora mais crível: sua filiação à tradição ensaística de Michel de Montaigne em seu "Dos canibais" (que nos ensinou que não podemos dizer que alguém é um bárbaro, canibal, apenas por ser diferente). E não digo que os contos de Galindo sejam ensaios. Acontece que seus contos parecem inspirados no mesmo tipo de curiosidade infinita de Montaigne. O leque de invenções de Galindo é mesmo vasto. Ele fala sobre amor e morte, experiências de vida e reflexões sobre vidas em curso, paradoxos, sobre os espantos que os outros provocam em nossa sensibilidade, sobre os hábitos entranhados que nos definem e aprisionam. Cada personagem de Galindo parece um duplo singular de um ser plural, de um Proteus que passa por metamorfoses sucessivas, porém, quando preso (preso pelas mãos ou seduzido pelo olhar do leitor que se debruça generosamente ao volume), obriga o autor a contar verdades. As novas narrativas são tão potentes quanto as anteriores. Há jogos sarcásticos que emulam catálogos de exposições de artes plásticas; ferinos necrológicos; elucubrações e descrições de vidas privadas; um revisitado "Sex, Lies and Videotape"; um flerte bacana com o Rashomon original de Akutagawa. Os contos falam de cousas inusitadas, roncos, desejos, descoberta da surdez, surgem histórias curiosas; a angústia urbana e a melancolia que carregamos por aí é espelhada nos contos. Gostei particularmente de uma das histórias novas: "Tudo ou nada", talvez a chave emocional dos contos; também do maior deles: "Sozinho"; e de reler o grafado como "Käfer" desta vez, uma versão potente do Aleph borgeano, que já existia no livro de 2013. Ganha-se muito lendo esses contos, seja pela inventividade, seja pela exuberância dos registros linguísticos, que nunca traem o artífice cerebral, o acadêmico que controla todos os efeitos literários de sua nobre arte. Viva. Vale! 
Registro #1495 (contos #170) 
[início 10/01/2020 - fim: 14/01/2020] 
"Sobre os canibais", Caetano W. Galindo, São Paulo: editora Schwarcz (Companhia das Letras / Penguin Random House), 1a. edição (2019), brochura 14x21 cm., 200 págs., ISBN: 978-85-359-3298-8

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