De Michel Laub já li "Tribunal da quinta-feira" (2017), "Diário da queda" (2011), "Não depois do que aconteceu" (1998) e A maça envenenada" (2013). "Solução de dois estados" é sua proposta mais recente e é realmente interessante. O formato deve algo a um antigo programa de entrevistas que existia na TV Cultura paulista (Ensaio, criado e dirigido pelo grande Fernando Faro). Digo isso pois Michel Laub faz seus personagens responderem continuamente a perguntas em longas entrevistas, mas estas perguntas não são grafadas, o leitor apenas as infere, quase nunca as lê. Estas entrevistas são conduzidas por uma mulher, Brenda, que pretende produzir um documentário sobre violência e envolve dois irmãos em conflito, Alexandre (o mais novo, um empresário do setor de academias de ginástica) e Raquel (a mais velha, uma artista plástica, que trabalha com vídeo arte e performance). A história não segue os fatos cronologicamente. A narrativa alterna fatos do início os anos 1990 e o final dos anos 2010, correspondendo assim aos anos de redemocratização do Brasil, aqueles que se seguiram a constituinte e a eleição de Fernando Collor, seguindo até os sucessos mais recentes (de 2013 a 2018). Assim como nosso país alternou momentos de entusiasmo, ufanismo e delírios de grandeza (sempre artificiais, já sabemos) e a experiência prática de desgraças, corrupção generalizada e vocação para a mediocridade (sempre inevitáveis, também já sabemos) a vida da família de Raquel e Alexandre reveza pontos baixos e altos, perdas e ganhos. No início acompanhamos como a empresa gerenciada pelo pai dos dois irmãos é levada a falência em decorrência do heterodoxo plano Collor, programa imbecil, um dentre muitos deste país pródigo em programas, plataformas e decisões estúpidas. Os dois irmãos vivenciam de forma diferente o impacto da falência da empresa na vida dos pais (Raquel algo blindada, pois vive na Europa, estudando, Alexandre no redemoinho dos problemas brasileiros, justamente quando tem que decidir qual curso fazer na universidade). Laub não cai no erro de tentar fazer história ou ficar discutindo economia em seu romance. O conflito do livro gravita a repercussão de uma agressão física que Raquel sofre durante uma de suas performances públicas, já quando vive no Brasil, agressão que ela associa à disputa com Alexandre pelo espólio da família e ele associa a vida hedonista da irmã. Os diversos fragmentos de entrevistas que compõe a narrativa dão conta de exemplificar como a verdade nunca é plana quando membros de uma família
contrastam suas interpretações da realidade imediata, ou falam dos fatos, do passado e de si mesmos, ou têm interesses econômicos distintos, se imaginam moralmente superiores uns aos outros, ou são hipócritas. As reflexões sobre política, economia, sociologia e psicologia que os personagens esgrimem parecem pajelanças, mostram ser ferramentas tímidas, inadequadas, que não se prestam a explicar como brasileiros em fúria se comportam, já que aqui ódio e desentendimento mútuo é norma, é lei. Laub, claro, parece interessado em entender o terrível país em que vivemos, não dogmatiza, não oferece chaves fáceis de interpretação. Talvez a palavra não dita no livro, mas que o domina, silente, é memória, ou seja, nossa incapacidade de lembrar corretamente o que vivemos, como indivíduos e como grupo social, sempre mais interessados em retificar as verdades do passado (as nossas e a de todos os demais, tarefa inglória, já se sabe). Assim como a "solução de dois estados" original (o projeto de criação e de coexistência pacífica entre Israel e Palestina), os dois irmãos parecem viver duas realidades distintas demais para que possam um dia coabitar num mesmo lugar e tempo, ou para que possam, um dia, se amar. Belo livro. Vale!
Registro #1585 (romance #391)
[início: 21/10/2020 - fim: 23/10/2020]
"Solução de dois estados", Michel Laub, São Paulo: editora Schwarcz (Grupo Penguin Random House / Companhia das Letras), 1a. edição (2020), brochura 14x21 cm., 243 págs., ISBN: 978-85-359-3379-6
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