No "Em busca do tempo perdido" há uma passagem em que Elstir, um respeitado, discreto e já idoso pintor, confessa ao narrador ter sido ele, em uma odiosa encarnação da juventude, um sujeito frívolo e tolo, chamado Biche ou Tiche (Proust é cruel inclusive por fazer seu narrador não lembrar exatamente o nome do sujeito). Todavia Elstir não confirma a descoberta desta identidade passada com medo de ficar exposto, arranhar sua reputação ou por culpa, antes, com sabedoria, aproveita a oportunidade para ensinar ao jovem e arrivista narrador da inevitabilidade das metamorfoses pelas quais passamos, falando da dolorosa experiência de amadurecer e conviver com todas as lembranças dos atos passados, bons e maus. O narrador de Michel Laub, nesse poderoso "O tribunal da quinta-feira" experimenta algo similar. Ao ter uma indiscrição do passado revelada, passa por uma súbita metamorfose, e acaba moralmente condenado a enfrentar o juízo de uma pessoa, no tal tribunal da quinta-feira do título do livro. Esse encontro acontece no último parágrafo do livro, o réu já desarmado de seu natural sarcasmo. Jamais saberemos o veredito. Laub habilmente oferece ao leitor acompanhar o processo dessa metamorfose, envolver-se no emaranhado factual das circunstâncias da indiscrição (ridícula, irrelevante, casual, como sempre acontece no mundo real). Ficamos a saber das ponderações, providências, tomadas de decisão desse narrador. O intrincado da cousa, cerebral e desapaixonada, lembra muito os melhores Philip Roth. A fronteira elástica e permeável entre a vida pública e privada em nossos dias é uma espécie de fantasma que assombra todo o livro. Como já disseram personagens de Javier Marías em "Tu rostro mañana": "Ninguém nunca deveria contar nada, (...) mas calar é a grande aspiração que ninguém realiza". A falta de privacidade é um mal
da modernidade, apesar da hipocrisia não ser invenção nem um pouco recente. Laub realmente alcançou concentrar num livro, que é curto e se deixa ler em poucas horas, algo da vertigem deste nosso tempo inapelavelmente terrível. Muito interessante mesmo. Enfim, há livros que nem precisamos ler para sabermos que são muito bons. Caso sejamos capazes de conter nosso açodamento, o guardamos para um final de semana especial ou feriado, ou ainda postergamos as alegrias estéticas para dias felizes que, muitas vezes, nunca chegam. Comprei meu volume ainda nas festas de final de ano, logo após a morte de minha mãe e deixei o livro perdido em meus guardados. Felizmente encontrei um dia ideal para ler. Evoé Laub, evoé.
[início/fim: 30/05/2017]
"O tribunal da quinta-feira", Michel Laub, São Paulo: editora Schwarcz (Grupo Companhia das Letras), 1a. edição (2017), brochura 14x21 cm., 183 págs., ISBN: 978-85-359-2832-7
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