terça-feira, 30 de setembro de 2014

a morte como companhia

Rondon de Castro nos oferece onze contos. A princípio podemos inferir que eles gravitam apenas o tema da morte (como o título induz o leitor a pensar) mas sob as camadas de violência e dor com que ele constrói suas histórias encontramos também uma espécie de compromisso, um engajamento, uma escolha (que se eu não o conhecesse poderia imaginar que poderia ser apenas do narrador e não do autor). Na maioria das narrativas encontramos um olhar generoso por todo aquele que sofre, é oprimido, por todo aquele que padece da violência do estado (principalmente aqueles que são compelidos socialmente a se destruir no processo de destruírem seus semelhantes). Essa espécie de resistência narrativa à massificação da violência é louvável. São histórias curtas. Os diálogos bem construídos. Gostei particularmente de sua releitura do mito do Golem (em "O golem em minha vida") e do tom fantástico de duas delas (uma que se passa no final da segunda grande guerra - "O moço da parede"; e outra que se passa durante a guerra do Paraguai - "Antunes"). Parabéns Rondon.
[início: 24/09/2014 - fim: 26/09/2014]
"A morte como companhia", Rondon de Castro, Santa Maria/RS: editora Rio das Letras, 1a. edição (2014), brochura 13x21 cm., 130 págs., ISBN: 978-85-65172-14-1

domingo, 28 de setembro de 2014

sin contar

Esse belo livro estava em preparação quando Sebald morreu em dezembro de 2001. Trata-se de uma colaboração entre ele e um amigo de infância, Jan Peter Tripp, que é artista plástico. São 33 poemas curtos de Sebald e 33 gravuras monotemáticas de Tripp. O resultado é muito bom. Segundo nos conta Andrea Köhler num posfácio incluído no livro o acordado entre Sebald e Tripp era estabelecer um diálogo sem que necessariamente as imagens ilustrassem os poemas nem que os poemas explicassem as gravuras (são litografias, não sei precisar suas dimensões originais, mas o efeito no livro já é poderoso o suficiente para hipnotizar o leitor). Eles discutiram o projeto por vários anos. As litografias são sempre um recorte encaixado dos olhos de pessoas para os quais os poemas são dedicados (um elenco eclético de escritores e pintores - vivos e mortos, e de amigos de Sebald e Tripp, pessoas que ambos admiravam, que compartilhavam um olhar curioso sobre a vida). Os poemas (antes micropoemas) são compactos, provocam pelo inusitado às vezes, ou pela originalidade da proposição. O livro incluí também um poema/elegia assinado por Hans Magnus Enzensberger, em homenagem a Sebald. Dois outros livros parecem aparentados a esse: "Miramientos", de Javier Marías e "Autorretrato de otro", de Cees Nooteboom e Max Neumann. Encontrei um trabalho de André Caramuru Aubert publicado no jornal Rascunho (de Curitiba) onde ele apresenta vários poemas de Sebald em português. Talvez um leitor curioso possa encontrar ali algo para aguçar seus dias. Antes de terminar um desvio rápido porém necessário: Jan Peter Tripp não acredita que seus trabalhos possam ser entendidos digitalmente, pela internet, e se recusa a divulgá-los nesse meio (afirma ser um Neanderthal). Há um site onde ele apresenta em poucos minutos seu ponto de vista. É um discurso realmente estimulante sobre as conexões entre vida e arte, tecnologia e movimento, privacidade e expressão plástica, silêncio e desaceleração. Vale a pena enfrentar aqueles poderosos olhos de Tripp a nos confrontar pelo monitor, e pensar!
[início: 11/07/2014 - fim: 27/09/2014]
"Sin contar: 33 textos y 33 grabados", W.G. Sebald (textos) e Jan Peter Tripp (grabados), tradução de Maria Teresa Ruiz Camacho e Katja Wirth, Madrid: Nórdica Libros, 1a. edição (2007), capa-dura 19,5x26 cm., 86 págs., ISBN: 978-84-9355-0-5 [edição original: Unerzählt (München: Carl Hanser Verlag München Wien) 2003]

sábado, 27 de setembro de 2014

modelos vivos

No início de junho, na véspera daquele dia festivo em que comemoramos em São Paulo os 70 anos do Frank Missell, amigo querido, eis que tive a sorte de ir a um evento na sempre agitada e paulista Casa das Rosas. Tratava-se de uma edição do SAP (Seminário de Ação Poética Multimídia), evento em que Frederico Barbosa mediava um debate entre os poetas Lucio Agra e Ricardo Aleixo (Aquele recifense, esse belorizontino). Foi uma conversa produtiva sobre a arte multifacetada da performance e as experiências de ambos neste ofício (inclusive com a didática e as viagens). Após o debate cada um apresentou sua performance. Foi uma noite realmente instigante. Naquele dia consegui comprar "Modelos vivos", livro de Aleixo que foi produzido como resultado de uma bolsa de criação literária que ele obteve em 2006. Trata-se de um livro-objeto, um livro-arte, uma peça gráfica que realmente impressiona em si, mas sabemos antes de ler que é o texto que deverá nos surpreender. Nele estão reunidos aquilo que alcança ser impresso dentre as peças produzidas por ele originalmente para performances ou gravações. Aleixo registra na apresentação o débito que tem com o poeta e designer Bruno Brum, que assina a produção visual do livro. As formas do livro são serpeantes. Numerados são 75 poemas no livro, mas cada um deles parece pertencer a um universo diferente. Há um legítimo e irônico soneto entre os poemas, mas também há epigramas, grafismos, poemas visuais, experimentos caligráficos, imagens em preto e branco, fotografias expandidas. Gostei especialmente de um longo texto que Aleixo chama de "O poemanto: ensaio para escrever (com) o corpo". Trata-se de algo que apresenta uma biografia ou caminho, mas também convida o leitor a refletir sobre conceitos e temas próprios do ato performático. Gostei também de seu provocativo "Antimusak" (uma espécie de carta de princípios em defesa da boa música em tempos de ruído e fúria). Não sei se chegam a ser exatamente temas recorrentes, mas após meus meses de leitura, com o livro indo e vindo na bolsa, perdendo-se entre outros, esquecido e lembrado, sempre o associo a "sons", "contrastes", "dança' e sobretudo "razão". O sonho da razão de Ricardo Aleixo não produz monstros como os de Goya, mas sim umas estranhas belezuras. Evoé Aleixo, evoé.
[início: 07/06/2014 - fim: 27/09/2014]
"Modelos Vivos", Ricardo Aleixo, Belo Horizonte: editora Crisálida, 1a. edição (2010), brochura 14x21 cm., 160 págs., ISBN: 978-85-87961-59-4

sexta-feira, 26 de setembro de 2014

suíte em quatro movimentos

Em inglês o título é um tanto diferente ("There But For The"), mas "Suíte em quatro movimentos" não está mau. Ali Smith conta uma história curiosa que começa com uma ação amalucada, propositadamente artificial: um sujeito (Miles Garth) convidado de uma festa na Londres dos subúrbios sofisticados deste início de século abandona a mesa e a conversação e tranca-se no quarto de hóspedes de seus anfitriões. Assim como a corda que se dá a um relógio o coloca em movimento, esse gesto bizarro de Miles faz movimentar um grupo de personagens que pouco tem em comum. A metáfora do relógio me parece adequada, pois Ali Smith ambienta sua história na região de Greenwich, no sudoeste de Londres, famosa por ser o local do observatório por onde passa o meridiano zero, aquele que convencionou-se marcar a origem dos fusos horários e das medidas de longitude. A história de Smith, dividida em quatro capítulos, apresenta a repercussão do auto encarceramento de Miles. No primeiro (There) acompanhamos como uma amiga sua da juventude, Anna Hardie (ou Anna K.), com quem ele viajou de ônibus pela Europa nos anos 1980 é convidada pelo anfitriões (Genevieve e Eric Lee) para que ela o dissuadisse de continuar trancado no quarto. Mas ela nada sabe do sujeito, nunca manteve contato com ele, não tem a menor idéia de como seu número de celular está registrado nos contatos dele (e de resto não existiam telefones celulares quando eles se conheceram, trinta anos antes). Apenas lembra os sucessos da viagem dos dois, resultado de um banal prêmio estudantil. No segundo (But) Mark Palmer, o sujeito que convidou Miles para o jantar recorda os diálogos da festa e a razão de tê-lo convidado. Lembra também de sua infância, dos jogos verbais que sua mãe costumada fazer com ele. Lamenta a perda de um companheiro, que morreu recentemente. No terceiro capítulo (For) o que se narra são os pensamentos de May Young, uma senhora idosa que está hospitalizada e em vias de ser transferida, contra sua vontade, para uma casa de saúde. O leitor acompanha uma série de lembranças esparsas e fragmentárias: seu casamento, o nascimento dos filhos, a morte de uma filha, a morte do marido, a expectativa de fuga do hospital - com a ajuda de uma menina e uns gângsters (?!). No final do capítulo descobrimos que por alguma razão Miles Garth visita regularmente essa senhora. Ele pede a uma garota, através de um bilhete, que a senhora Young seja comunicada que ele não poderá visitá-la pois está trancado naquele quarto de hóspedes. O último capítulo (The) narra o entendimento destes sucessos por Brooke, uma garota jovem e inteligente, filha de um dos casais que participaram da festa dos Lee. Essa garota é a única personagem que interage com Miles e é através dela que sabemos que os Lee resolveram explorar comercialmente a presença de Miles, dando entrevistas e vendendo lembranças a multidão que passou a se reunir na vizinhança para espiar a pseudo celebridade encarcerada na casa deles. É uma história curiosa, repleta de jogos verbais, diálogos cifrados, um bom humor calmo (não histriônico). O livro é formatado de uma forma não convencional (justificado à esquerda). É um livro provocador. Apesar de eu me aborrecer algumas vezes com as pistas soltas e a indefinição sobre quem é mesmo aquele sujeito que resolveu trancar-se em um quarto ao final entendi que talvez seja sobre a solidão e as dificuldade de comunicação entre as pessoas que o livro trata. Tudo que se depreende de alguém tem algo de filtrado, de artificial, de condicionado pelas regras e convenções sociais (e por nossa segura auto-ilusão, claro). Há também no livro um jogo contínuo entre controle e caos, que é próprio da vida, mas que evitamos quase sempre discutir. Preciso ler mais coisas de Ali Smith para aprender a entender melhor suas proposições. Veremos.
[início: 20/08/2014 - fim: 25/09/2014]
"Suíte em quatro movimentos", Ali Smith, tradução de Caetano W. Galindo, São Paulo: editora Companhia das Letras, 1a. edição (2014), brochura 14x21 cm., 287 págs., ISBN: 978-85-359-2423-7 [edição original: There But For The (London: Hamish Jamilton), 2011]

quarta-feira, 24 de setembro de 2014

quemad madrid

Raquel Peláez é uma jornalista jovem (tem menos de quarenta anos) e mora em Madrid há poucos anos (ela nasceu em Ponferrada, cidade de Castilla y León - uma das comunidades autonômicas da Espanha - e radicou-se em Madrid em 2009). Durante uns anos ela manteve um blog no blogspot (de agosto de 2009 até maio de 2013), depois migrou para o wordpress, e manteve esse novo blog atualizado até junho de 2014. De qualquer forma sua ausência pode ser um justificada (ou ela está em suas férias de verão ou está desfrutando o fato de acabar de publicar esse seu livro de crônicas). Bueno. O livro é divertido. São 19 crônicas que falam de uma Madrid que foi apreendida por ela, ou seja, que ela aprendeu a conhecer, amar e criticar (claro, quem melhor para apontar os defeitos de um lugar se não aquele que chega descompromissado e sem referências). Não é um livro que sirva como guia de viagens, mas algo que pode divertir quem já conheça a cidade e saiba dos assuntos que dominam seu cotidiano. Peláez utiliza a técnica de contrastar a história, as lendas urbanas ou os antigos causos curiosos da cidade com os temas que estão nas páginas de jornais atualmente, ou seja, com o dia a dia dos cidadãos madrilleños de hoje. Por exemplo: numa crônica ela fala de "Juana, la loca" (a filha dos reis católicos espanhóis, do século XVI) e a imbecil proposta de uma nova lei de aborto (que ontem mesmo, por coincidência, foi retirada de pauta por falta de consenso - nem tudo está perdido);  noutra ela fala da morte de um desportista madrilleño dos anos 1980 (Fernando Martín) e a construção da enorme autopista subterrânea (a M-30) que endividou Madrid até 2040; ou ainda em uma outra, onde ela descreve os subúrbios de Madrid e o histórico de endinheirados e famosos que ali se refugiaram nas últimas décadas; ou numa última, no qual o incêndio suspeito de um prédio (o edifício Windsor, em 2005, numa zona nobre da cidade) é discutido em paralelo a análise sobre o crescente controle social em bairros de baixa renda (onde moram sobretudo emigrantes recém chegados). A Madrid que se apresenta para os turistas oferecendo diversão e festas para todos os públicos, bares e restaurantes sempre cheios, arquitetura exuberante, consumo sofisticado e sua rica história também merece uma cota de comentários ora irônicos ora sarcásticos. Ela parece nos lembrar que nem tudo pode ser edulcorado por propaganda e promoções de agentes de turismo. Gostei muito de sua discussão sobre xenofobia e a análise de um quadro clássico de Goya (o "3 de mayo de 1808", que está no Prado) e também de um outro, onde ela fala dos arranha-céus que sempre são construídos prometendo revitalização de uma região mas não passam de ferramentas de lavagem de dinheiro. Ela discute o provincianismo, a autoestima da cidade, a mítica movida madrilleña, escreve cartas para seus gurus (David Summers, Javier Marías e  Christina Rosenvinge). Enfim, o que Raquel Pelaéz oferece não é nem um pouco descartável (como seria de se esperar do fato dos textos terem se originado em um blog). De fato espero que ela volte a abastecê-lo com mais dessas furiosas impressões da cidade. Por fim, cabe deixar aqui o registro das maravilhas que são as ilustrações de Alfonso Zapico incluídas no livro. 
[início: 18/09/2014 - fim: 22/09/2014]
"!Quemad Madrid!: O llevadme a la López Ibor", Raquel Peláez, ilustrações de Alfonso Zapico, Madrid: Libros del K.O., 1a. edição (2014), brochura 14x21,5 cm., 245 págs., ISBN: 978-84-16001-224

terça-feira, 23 de setembro de 2014

three days with joyce

Esse livro é aparentado a um outro, que já resenhei aqui: "James Joyce in Paris", de Gisèle Freund. Ela foi uma respeitada fotógrafa, nascida na Alemanha, que atuou sobretudo com fotojornalismo e documentários na França (ela tornou-se cidadã francesa em algum momento de sua vida). "Three days with Joyce" foi um trabalho de encomenda, realizado em duas primaveras, a da 1938 e a de 1939 (as últimas primaveras antes do início da segunda grande guerra). As circunstâncias das duas sessões de fotografias não eram as ideais. Joyce estava terminando os preparativos para a publicação de seu último (e mais radical) livro: "Finnegans Wake", que seria publicado somente em maio de 1939. Ele havia passado por uma série de complicadas cirurgias nos olhos. Sua filha Lucia, que sofria de esquizofrenia, estava internada desde 1935. Dividido entre as cirurgias e as dolorosas visitas à filha, Joyce ainda acreditava que ela poderia receber alta hospitalar (mas isso não aconteceu antes da família Joyce emigrar para Zürich, em 1940, logo após que a França foi invadida pelas tropas nazistas). Gisèle Freund já conhecia os Joyce desde 1936, quando participou de um jantar festivo em homenagem a Thornton Wilder organizado por uma das antigas editoras de Joyce, Adrienne Monnier. Com a publicação iminente de "Finnegans Wake" a revista "Life" (em 1938) e a "Times Magazine" (em 1939) encomendaram a Freund um conjunto de fotografias. Ela conseguiu persuadir Joyce a participar das sessões através de um amigo em comum, Louis Gillet. A maioria das fotos de 1938 foram tomadas em Paris na casa do casal Joyce e na livraria "Shakespeare and Co" (de Adrienne Monnier e Sylvia Beach). Uma parte delas foi tirada sem que Joyce percebesse, ao descer de um táxi. Freund diz, orgulhosa, que essas fotos anteciparam em vinte anos o comportamento questionável porém fundamental dos paparazzi. A câmara de Freund chegou a cair no chão e ela brincou com Joyce dizendo que algum duende irlandês parecia ter sido instruído por ele para destruir aquelas fotos não posadas (felizmente os negativos não foram perdidos na queda). As fotos de 1939 foram produzidas em cores e mostram Joyce, sua família e amigos na casa de seu filho Giorgio e nora Helen. São fotos alegres, tomadas quase todas num jardim ou mostrando Joyce exibindo-se num piano. Em várias delas, Stephen, neto de Joyce, brinca com o avó e o faz rir. Uma delas foi utilizada como capa da revista "Time" (na edição de 8 de maio de 1939). O livro inclui uma apresentação assinada por Richard Ellmann, respeitado biógrafo de Joyce e organizador de suas cartas. "Three days with Joyce" é o tipo de livro que torna festivo o mais simples dos dias de um joycemaníaco. Que beleza!
[início: 02/02/2014 - fim: 16/09/2014]
"Three days with Joyce", Gisèle Freund, tradução de Peter St. John Ginna, New York: Persea Books, 1a. edição (1985), brochura 18,5x21,5 cm., 70 págs., ISBN: 0-89255-142-9 [edição original: Trois Jours Avec Joyce (Paris: editions Denoël) 1982]

segunda-feira, 22 de setembro de 2014

fala, memória

Terminei de ler essa autobiografia de Nabokov ainda na semana passada, mas que dia melhor para falar dele que hoje, o dia do equinócio, dia em que começa a primavera (às 23h29min)? Assim será. Como o título evoca, "Fala, memória" é a versão - definitiva - das memórias de Vladimir Nabokov. No início de 1966 ele revisou o que havia escrito e publicado antes em revistas, mudou o título da primeira edição em livro (chamava-se "A prova conclusiva") e acrescentou um último capítulo (que é uma divertida resenha crítica de seu próprio livro, explicando o que ele entende ser os padrões temáticos de cada um dos quinze capítulos anteriores). Eles não foram nem escritos, nem publicados na ordem cronológica em que são apresentados agora no livro. O texto mais antigo é de 1936 (publicado na revista Mesures quando ainda morava na França) e os demais produzidos quando já vivia nos Estados Unidos, entre 1946 e 1951, publicados em revistas como The New Yorker, The Atlantic Monthly, Harper's Magazine e Partisan Review, antes da primeira edição em livro (também em 1951, pela Harper and Bros.). Os capítulos descrevem desde suas lembranças mais remotas, quando era pouco mais que um bebê (se é que isso é possível), até sua saída da Europa, em 1940, quando a segunda grande guerra começava. Nabokov nasceu no final do século XIX (22 de abril de 1899, no calendário ocidental), em São Petersburgo, filho mais velho de uma rica família russa (não exatamente nobres, mas seguramente muito ricos e poderosos). Em 1919, durante a revolução soviética, sua família e ele emigram da Rússia. Ele se instala primeiro na Inglaterra, em Cambridge, onde cursa a universidade, depois vive longos períodos em Berlin e Paris. Em 1940 emigra para os Estados Unidos, onde vive vinte anos, até 1961, para então emigrar uma última vez, para a Suiça, onde morre, em 1977. Se um sujeito quer entender o mundo e o estilo de vida que Nabokov vê desmoronar em 1917 recomendo fortemente o "História concisa da Rússia", que já resenhei aqui. "Fala, memória" flerta com o sombrio repetidas vezes, ao lembrar da opressão brutal e absoluta oferecida pelo bolchevismo (sonho de consumo de dez entre dez dos idiotas que estão de plantão no governo federal brasileiro, em seu projeto de retenção eterna do poder). Mas ao mesmo tempo é um livro repleto de passagens maravilhosas, em que o leitor imerge nos anos de formação intelectual de um sujeito que aprendeu a conhecer como se comportam os homens tanto em tempos de alegrias quanto em tempos sombrios. Associar vários dos capítulos com o ciclo proustiano "Em busca do tempo perdido" é mais que automático. O primeiro capítulo, onde encontramos as memórias mais remotas: de seu batismo,  de seu pai sendo arremessado para o alto pelos servos, parece brotar de "O caminho de Swann"; o capítulo 12: onde ele fala dos anos de paixão por uma garota que ele chama de Tamara, ecoam "A prisioneira" e "A fugitiva"; o capítulo 6: onde ele fala dos dias numa praia francesa (Biarritz) lembra a Balbec de "À sombra das raparigas em flor"; o capítulo 14: onde a segunda grande guerra é eminente e o mundo parece mudar rapidamente, lembra a clarividência do narrador de "O tempo redescoberto". Claro que aquilo que é narrado, ou seja, a história de sua vida e lembranças, é algo muito interessante, mas é o estilo de Nabokov, a beleza das frases e as associações entre a natureza e os sentimentos dos homens que fazem a alegria do leitor. As imagens evocadas são realmente vívidas. Inspiradoras são as lembranças dos pais, dos tutores e babás, do primo Yuri, do irmão Sergey (que morrerá num campo de concentração alemão), de R.A.Butler (um político inglês que não entende a ameaça stalinista), dos anos deslizantes que antecedem a segunda grande guerra. Em algum momento do livro ele diz esperar um dia poder falar dos anos 1940-1960 passados na América do Norte, mas isso nunca chegou a acontecer. O livro é dedicado a sua mulher Vera, que aparece como interlocutora várias vezes (notadamente nos momentos difíceis, de decisões difíceis). Duas de suas grandes paixões: o Xadrez e a Lepidopterologia, mereceram longos capítulos (sua dedicação ao estudo e coleção das borboletas e mariposas rendeu-lhe reconhecimento acadêmico). Os quatro romances escritos em russo, quando vivia em Berlin e Paris, aparecem descritos marginalmente (ele utiliza um alter ego, que ele chama de Sirin, para falar destes livros). Já havia lido em ensaios de W.G. Sebald e Javier Marías onde as maravilhas desta autobiografia eram contadas, mas não tinha idéia de que iria me divertir tanto. A vida de Nabokov parece o ciclo lagarta e borboleta, não exatamente repetindo-se, antes como que metamorfoseando-se de vinte em vinte anos (em ciclos vividos na Rússia, Inglaterra/França/Alemanha, Estados Unidos e por fim Suiça). A Alfaguara fez bem em publicar essa autobiografia de Nabokov tão perto do início da primavera. Isso deu-nos tempo de nos preparar para essa revoada de borboletas (que são suas memórias e o desejo de ser compreendido, afinal).
[início: 07/09/2014 - fim: 16/09/2014]
"Fala, memória: uma autobiografia revisitada", Vladimir Nabokov, tradução de José Rubens Siqueira, Rio de Janeiro: editora Objetiva / Selo Alfaguara (Grupo Prisa), 1a. edição (2014), brochura 15x23 cm., 327 págs., ISBN: 978-85-7962-313-4 [edição original: Speak, Memory - An autobiography Revisited (London: Victor Gollancz Ltd) 1951]

terça-feira, 16 de setembro de 2014

el ruido y la furia

Os anos de viagens a Barcelona para reencontrar as meninas também foram os anos de descoberta de autores espanhóis. Mas são sempre os amigos, antes de nosso vaidoso sentido literário, quem de fato nos mostra o caminho até os escritores que acabarão por nos conquistar. Pois foi doña Sturza, entusiasta das letras e do castellano, quem apresentou-me primeiro Manuel Vázquez Montalbán (era um presente de viagem, o "Mares do Sul", que levei junto a BCN naquele longuínquo 2007). De lá para cá acabei lendo quase tudo dele que encontrei. Montalbán foi um escritor e jornalista prolífico, que participou ativamente na luta contra a ditadura franquista e no processo de redemocratização da Espanha. Ele conseguia dedicar-se simultaneamente (e bem) tanto ao registro popular da cultura (através de seus romances, contos, textos para jornais e revistas, nas críticas de cinema, teatro, música e gastronomia) quanto na reflexão acadêmica destes mesmos temas (em seus ensaios mais longos, artigos, aulas em universidades e palestras). Mesmo sendo um típico jornalista (que parecia ter nascido em uma redação) Montalbán tinha uma sólida formação universitária. José Colmeiro, professor universitário espanhol atualmente radicado em Auckland (Nova Zelândia), reúne neste "El ruido y la furia" transcrições de longas entrevistas que fez com Montalbán. São três séries: Julho de 1987, Dezembro de 1992 e Março de 1996, que ocupam dois terços do livro. Nelas encontramos discussões seminais sobre o contexto histórico e cultural que definiu cada faceta da atividade profissional a que Montalbán se dedicou. Nas entrevistas acompanhamos a evolução das preocupações e reflexões de Montalbán sobre a realidade espanhola da segunda metade do século XX e a inserção da Espanha no contexto do mundo em complexa globalização, notadamente após a queda do Muro de Berlin. Além das entrevistas o livro oferece uns mimos que fazem a alegria dos leitores: (i) uma bibliografia completa de e sobre Montalbán; (ii) uma divertida entrevista ficcional com o personagem mais famoso dele (o detetive Pepe Carvalho), através de diálogos retirados dos livros originais; (iii) um prólogo assinado por Lluís Bassets, jornalista catalão contemporâneo de Montalbán; (iv) dois ensaios curtos de Montalbán ("Contra la pretextualidad" e "El desencanto ya no es lo que era"), duas pequenas maravilhas que parecem ter sido produzidas agora mesmo, nesta conturbada segunda década do século XXI (e dizer que ele já está morto há mais de dez anos, arre!); (v) um texto crítico muito bom, assinado por José Colmeiro, em que a produção literária, as atividades profissionais e o engajamento político de Montalbán são detalhadamente discutidos. Que sorte ter encontrado esse livro. Preciso achar um outro texto de Colmeiro dedicado a Montalbán que escapou-me na última viagem a Madrid. Seguro que sim. 
[início: 24/08/2014 - fim: 30/08/2014]
"El ruido y la furia: Conversaciones con Manuel Vázquez Montalbán, desde el planeta de los simios", José Colmeiro, Madrid:Iberoamericana / Vervuet, 1a. edição (2013), brochura 15x22,5 cm., 162 págs., ISBN: 978-84-8489-755-2

quarta-feira, 10 de setembro de 2014

a história do alfabeto

A ambição deste pequeno livro é apresentar rapidamente a história do sistema de escrita que conhecemos ordinariamente como alfabeto, ou seja, aquele em que grafemas, signos e sinais gráficos são associados a vogais e consoantes (e que por sua vez representam as unidades básicas de som próprios de uma determinada língua: os fonemas que nós homo sapiens sapiens alcançamos produzir, articular). O autor é Luiz Carlos Cagliari, reconhecido linguista paulista, professor aposentado da Unicamp. O livro é fartamente ilustrado, o que facilita muito o entendimento da evolução dos vários sistemas de escrita. Claro que esse é um texto introdutório, que visa oferecer ao leitor antes um esquema abrangente de entendimento sobre um tema complexo que aferrar-se a minúcias e/ou controvérsias. Cagliari estende o tema até o limite do que o bom senso admite. Ele nos ensina que o alfabeto não é apenas um conjunto de 26 letras e que a escrita é um instrumento poderoso e definidor de nossa cultura (um entusiasta das imagens reservará um esgar sarcástico com essa preeminência - mas a ênfase é minha e não do Cagliari). É fato. De tempos em tempos devemos voltar aos fundamentos, aos livros paradidáticos bem escritos, como é o caso desse bom "A história do alfabeto". Em tempo: O glossário do livro é excelente e as notas bibliográficas fundamentais. Uma delas remete a uma boa página eletrônica sobre o tema, que deve proporcionar deleite ao leitor curioso, o Omniglot. Bom divertimento.
[início: 31.06.2014 - fim: 02.09.2014]
"A história do alfabeto", Luiz Carlos Cagliari, São Paulo: editora Paulistana, 1a. edição (2009), brochura 14x21 cm., 169 págs., ISBN: 978-85-99829-22-6

terça-feira, 9 de setembro de 2014

uns contos

Só conhecia o Ettore Bottini ilustrador, designer gráfico respeitado, capista prolífico de muitos dos livros que li ainda nos anos 1980 (outro nome que se repetia e igualmente encantava através de suas propostas gráficas era o Victor Burton). Quem saberia dizer quantas capas ambos produziram? Muitas centenas certamente. "Uns contos" é um pequeno livro de invenções, ficção pura, (conheço dele um outro, muito bonito, onde são descritos jogos infantis, brincadeiras de rua que ele experimentou na São Paulo dos anos 1950, mas nesse são antes as memórias que a invenção quem dá o tom). Bueno. Em "Uns contos" encontramos dois conjuntos de narrativas. Onze são contos propriamente ditos, muito bons, inventivos, bem escritos. Sete outros estão destacados abaixo do subtítulo "Aparas". São histórias que podem ser tratadas como ainda embrionárias, que talvez ganhassem desdobramentos, mas nos quais o leitor pode entender também ser a concisão proposital (ser o que enfeixa aquelas aparas). O livro começa e termina com histórias ambientada no mundo do turfe, das corridas de cavalos. Com exceção de uma ou duas a maioria das demais não são propriamente urbanas, já que seus protagonistas viajam, visitam fazendas, sítios, saem para pescar, se fazem ao mar. Numa delas ("Todos os medos"), o narrador tem uma epifania provocada por um coquetel de remédios em que se misturam a consciência dos efeitos da química, o medo literariamente provocado e a lembrança de um tiroteio ocorrido em sua infância. Que bela história. Ettore Bottini morreu no final do ano passado. Talvez Mnemósine tenha sido generosa (e brincalhona), tenha deixado nos guardados de Bottini mais algumas maravilhas como essas aqui reunidas. Veremos. 
[início: 01/09/2014 - fim: 04/09/2014]
"Uns contos", Ettore Bottini, São Paulo: Cosac Naify, 1a. edição (2013), brochura 13x19 cm., 128 págs., ISBN: 978-85-405-0585-8

segunda-feira, 8 de setembro de 2014

o rei se inclina e mata

O leitor deve estar sereno, preferencialmente até de bom humor ao ler um livro de Herta Müller, pois ela sabe nos incomodar, sabe nos cobrar atenção, sempre arrastando-nos em uma espiral de indagações. As hipocrisias e meias verdades ditas pelos homens não merecem perdão em seus textos. Ela fala do medo, da dor e da morte. Ela sempre parte explicitamente de sua experiência nos anos da ditadura de Ceausescu na Romênia, mas no final entendemos que é o homo sapiens sapiens contemporâneo, nós mesmos; é sobre a experiência humana atemporal que ela se preocupa, investiga e escreve. Em "O rei se inclina e mata" encontramos nove ensaios relativamente curtos (coisa de vinte páginas, quando muito). Em "Em cada língua estão fincados outros olhos" ela reflete sobre o tempo de aprendizado de uma língua; da força do silêncio na conversação entre indivíduos em contraposição ao ruído provocado por vozes que competem entre si; dos sons e significados das palavras que aprendemos. O texto que dá nome ao livro, "O rei se inclina e mata" dá conta de um processo expressivo utilizado por ela: a construção de poemas através da colagem de palavras recortadas de jornais e revistas. Através dessas colagens ela lembra dos mortos, nega poder ao rei/ditador de plantão, descobre em si a origem de todos os medos. Em "A flor vermelha e a vara" ela descreve sua experiência como professora em uma escola de séries iniciais (para crianças de 6 ou 7 anos). Herta se surpreende com a percepção de como mesmo em pessoas tão jovens a capacidade de destruição de um poder absoluto, opressor, já havia operado, já havia se consolidado. Os jovens são capazes de emular o comportamento autoritário sem esforço, mais perfeitamente que as pessoas mais velhas. Nestes três, assim como em cada um dos demais, Herta Müller desnuda facetas da lógica perversa de um grupo que se apropria do estado e o transforma numa ferramenta de dominação, pilhagem, sadismo e imbecilização em grande escala. Mesmo nos textos que descrevem os anos vividos na Alemanha ela consegue alertar para o risco de esquecermos depressa demais, perdoarmos por descuido um crime, uma traição, uma violência (que sempre continua, pois para muitos é natural que um homem oprima e destrua um outro homem). O texto que mais gostei é "O olhar estranho ou a vida é um peido na lanterna". Ela explica como desenvolveu o que chama de "o olhar estranho". Não se trata de um recurso literário bobo ou - como alguns escritores e jornalistas afirmam - uma espécie de ofício que distingue escritores e jornalistas das pessoas comuns, ou mesmo - como alguns artistas preferem - uma peculiaridade da arte, da sensibilidade artística, mas sim uma forma individual e necessária de monitorar, rastrear e contrapor-se ao autoritarismo (além de explicar o estilo literário dela, a forma que ela encontrou para se expressar literariamente). Nestes tempos onde os projetos canalhas de poder dos governantes de plantão e as aspirações da sociedade brasileira mostram-se inapelavelmente dissociados, contaminados por corrupção e mentiras, a leitura dos textos de Herta Müller, por mais custosa que seja, é um descanso na loucura, vale bem mais que só o pouco de saúde que prometeu o mestre Guimarães Rosa.
[início: 27/08/2014 - fim: 03/09/2014] 
"O rei se inclina e mata", Herta Müller, tradução de Rosvitha Friesen Blume, São Paulo: editora Globo (coleção Biblioteca Azul / Prêmio Nobel de Literatura), 1a. edição 92014), brochura 14x21 cm., 213 págs., ISBN: 978-85-250-5397-8 [edição original: Der König verneigt sich und tötet (München: Carl Hanser Verlag) 2003]

domingo, 7 de setembro de 2014

campo santo

Ler Sebald sempre é um exercício gratificante. Ele alcança oferecer temas à atenção do leitor, compilar informações e produzir conexões entre assuntos diversos que dificilmente conseguiríamos encontrar ou fazer sozinhos. Dele já li vários livros. Este "Campo Santo" é um livro póstumo, editado por Sven Mayer, um jornalista especializado em sua obra. Nele estão reunidos textos de ficção (cinco, bem curtos, que ocupam apenas um quinto do volume) e ensaios relativamente longos que haviam sido preparados para jornais ou revistas acadêmicas e nunca haviam sido compilados em livro (são quatorze textos, o mais antigo de 1996 e o mais recente de 2000). Os textos de ficção pertencem a um projeto antigo que Sebald nunca chegou a concretizar: escrever um livro sobre a Córsega (que talvez explorasse como a Europa imaginada pelo corso mais famoso, Napoleão, poderia ser explicada pela história, tradições e geografia daquele lugar). São textos inspirados, que lembram, claro, o ritmo que encontramos em "Austerlitz" e em "Os anéis de Saturno". Sebald nos leva até o cemitério de Ajaccio (a capital da Córsega) e nos explica que ali apenas estrangeiros eram enterrados, pois cada cidadão sempre preferia dormir para sempre nas terras de sua propriedade, como forma de manter mesmo de dentro delas o domínio de cada família. Os ensaios são bastante variados, mas tratam sobretudo de literatura. Os textos sobre Vladimir Nabokov, Franz Kafka, Günter Grass e Peter Handke são muito bons. Sebald também escreve elegias: à gastronomia (e a pesca em alto mar), a um pintor (Jan Peter Tripp), a um escritor aventureiro (Bruce Chatwin), um poeta (Ernst Herbeck). A destruição das cidades alemãs durante a segunda grande guerra, o luto perene pelas mortes e as abordagens literárias de aproximação a estes temas também aparecem em três textos longos (um dedicado a obra de Peter Weiss; outro a obra de Jean Anéry e um último, de literatura comparada, onde se discute os trabalhos de Hermann Kasack, Hans Nossack e Alexander Kluge). Os três últimos textos são curtos e talvez os mais seminais - e mais próximos a seu estilo puramente ficcional: "Moments musicaux" fala de sua educação musical, sua paixão por óperas e a decisão curiosa de não atender a um concerto (Nabucco, de Verdi) por conta de uma fobia repentina - o medo da chuva; "Un intento de restitución" fala de suas memórias de juventude, principalmente de imagens das cidades alemãs que ele não conhecia (e que estavam totalmente destruídas, apesar das imagens louvarem nelas mil maravilhas); o último texto é um curto discurso de agradecimento pelo ingresso na Academia Alemã de Língua e Poesia (que ele associa como uma espécie de legitimação de sua cidadania alemã - já que ele havia saído da Alemanha ainda jovem, estudado na Suiça, e morava há muitos anos na Inglaterra, onde lecionava). Não é exatamente o melhor livro para começar a conhecer a obra de Sebald, mas certamente fará a alegria daqueles que já se renderam às maravilhas de sua prosa. Devemos agradecer sim ao Sven Mayer por ter preparado essa bela edição. Danke schön, Herr Mayer! 
[início: 23/07/2014 - fim: 01/09/2014]
"Campo Santo", W.G. Sebald, edição de Sven Mayer, tradução de Miguel Sáenz, Barcelona: Editorial Anagrama, 1a. edição (2007), brochura 13,5x20,5 cm., 250 págs., ISBN: 978-85-339-7377-1 [edição original: Campo Santo (München: Carl Hanser Verlag) 2003]

sábado, 6 de setembro de 2014

o sequestro do figurão

Conheci o Abrão Aspis há muitos anos, numa feira do livro de Porto Alegre, vibrante, cortês, contando causos, encantado com os livros como um menino. Na edição do ano passado lá estava ele lançando um livro, este "O sequestro do figurão". Tive a sorte de poder cumprimentá-lo e comprar um exemplar (que óbvio, ficou perdido em meus guardados, esperando horas mais tranquilas para ser apreciado). Aspis parece ser um entusiasta daquela máxima atribuída ao músico e humorista americano Steve Allen: "Comedy is tragedy plus time", ou seja, algo cômico foi originalmente uma tragédia ao qual tempo foi acrescentado. Em "O sequestro do figurão" Aspis conta uma divertida história sobre um sequestro de um banqueiro corrupto, financiador de campanhas eleitorais da presidência da república, na Brasília dos anos 1990. Um grupo de estudantes universitários resolve denunciar os casos de corrupção sequestrando o banqueiro, forçando-o a confessar seus crimes e os nomes de seus sócios/comparsas. A história se deixa narrar rapidamente, quase num fôlego só. Além dos estudantes e do banqueiro o leitor é apresentado a um policial ambicioso (que trabalha na polícia federal mas é um melômano inveterado) e a diversos políticos brasilienses (inventados, claro, mas tão sabujos e venais como os reais, com os quais convivemos cá no mundo real, ai de nós, brasileiros). Na história o sexo tem um papel central: nada de moralismos bestas nas descrições de Aspis. A trama se desenvolve com algumas reviravoltas que um leitor atento até poderia imaginar, mas são mesmo inventivas e verossímeis. Num país tão patético e miserável como o Brasil, onde a grande maioria da população parece se orgulhar de ser roubada e/ou enganada, livros assim lembram ao leitor que o indivíduo roubado que consegue sorrir sempre roubará alguma coisa do ladrão. Ler "O sequestro do figurão" vale mais que as muitas horas de horário eleitoral "gratuito" a que somos condenados nestes dias de inverno (e explica melhor o Brasil que muita da sociologia tosca que se vende por aí). Vale. Em tempo: Com esse livro Abrão recebeu o segundo lugar no concurso Raquel de Queiroz da União Brasileira de Escritores de 2005 (não é pouco). Parabéns don Aspis, parabéns.
[início: 03/09/2014 - fim: 04/09/2014]
"O sequestro do figurão", Abrão Aspis, Gravatal/RS: Academia Gravatalense de Letras, 1a. edição (2013), brochura 16x23 cm., 147 págs., ISBN: 978-85-60465-02-6