sábado, 30 de setembro de 2017

berta isla

É pouco provável que seja verdade, mas nos acostumamos a identificar em um homem, Homero, o autor de duas das maiores criações da espécie humana, que são os poemas épicos que chamamos Ilíada e Odisseia. Se no primeiro poema se canta a ira de Aquiles, um breve episódio da longa guerra entre gregos e troianos, no segundo se conta as aventuras de Ulisses/Odisseu em sua longa jornada de volta à Ítaca. Pois ao terminar esse notável "Berta Isla", livro mais recente de Javier Marías, senti-me como um efebo grego do século VIII antes do inicio desta nossa era (in)comum, que ao redor de uma fogueira, após terminada a frugal refeição do cair da noite, pede a um velho aedo que conte uma vez mais os sucessos daqueles heróis que alternavam batalhas sangrentas com holocaustos e libações aos deuses. Javier Marías, venerável aedo contemporâneo nosso, com seu engenho inventou um novo portento, tão bom e instigante quanto seu "Tu rostro mañana", de forma que para mim "Berta Isla" está para a Odisseia como Tu rostro mañana está para a Ilíada. Vamos a ver. "Berta Isla" é longo, quase 550 páginas, dividido em dez cantos/capítulos, ora narrados por um observador onisciente, em terceira pessoa, ora pela heroína da historia, Berta, em primeira pessoa. O que o leitor encontra no livro são as lembranças de Berta (lembranças contemporâneas, de 2016, 2017), sobre as circunstâncias de como conheceu nos anos 1960 um rapaz, Tomás Nevinson, casou-se e teve um casal de filhos com ele, nos anos 1970, e ficou treze anos, de 1982 a 1994, sem ter a certeza se esse seu marido estava morto ou vivo. Trata-se, como o próprio Marías diz em um teaser, da história de uma espera, uma espera como a de Penélope na Odisseia. Tomás (ou Thomas ou Tom) é daquela estirpe de protagonistas de Marías que tem um especial talento para línguas, para imitação de acentos e comportamentos, posturas, para interpretar rapidamente o caráter de seus interlocutores (como Jaime Deza em Tu rostro mañana ou narrador sem nome de Todas as almas, entre tantos outros). Após conhecer Berta em um colégio interno na Madrid franquista, na segunda metade dos anos 1960, Tomás, filho de uma espanhola com um cidadão inglês, viaja para a Inglaterra para seus estudos universitários, onde acaba conhecendo Peter Wheeler (o grande hispanista, professor de Oxford, que já conhecemos de Tu rostro mañana) e, por um desvio do destino, que define todo o livro, o diabólico Bertram Tupra, também personagem daquele livro e que talvez seja mesmo o alter ego ideal de Javier Marías (sempre imagino Marías dizendo para mim don't linger or delay, toda vez que postergo uma tarefa ou decisão). Ao voltar para Madrid e casar-se Tomás assume um posto importante na embaixada inglesa, mas suas viagens recorrentes e ausências logo fazem Berta entender que seu marido atua não em tarefas burocráticas, mas em algo relacionado a espionagem, ligado ao serviço secreto inglês. Não me atrevo a descrever mais detalhadamente o livro, pois estaria roubando do leitor o prazer de uma miríade de descobertas. Não se trata de um romance de época, onde se fala da sociedade espanhola ou europeia dos anos 1970, 1980 ou 1990, que retrate panoramicamente estes anos, o ambiente e acontecimentos destes anos. Todavia, ao acompanharmos as reflexões e digressões de Marías, aprendemos algo sobre como o destino dos indivíduos é aleatório e único, como é impossível que uma acepção simples, como "anos 1980", por exemplo, identifique algo que seja válido para não mais do que apenas um punhado de pessoas que viveram naquela época ou estudaram detalhadamente sobre aqueles tempos. Enfim, mesmo a lembrança dos fatos que vivemos é construída. Talvez eu volte a esse registro e escreva mais. Escreva sobre Little Gidding, poema de Eliot, tão presente no romance; sobre as metamorfoses de Tomás Nevinson; sobre o caráter de Tupra; sobre como Lord Wheeler lembra as Moiras gregas; sobre Eric Southworth, amigo real de Marías, inserido no livro, como já vimos Marias fazer com Francisco Rico em "Los enamoramientos"; sobre o papel do cinema na imaginação de Marías; sobre uma passagem retirada do Henry V, de Shakespeare; sobre a figura dos fantasmas; sobre a manipulação, de indivíduos e de toda a sociedade, em todos os tempos; sobre o fato de também Ulisses ter ido a guerra de Tróia por força de um ardil; sobre a força da frase: "Desde cuándo la gente ha elegido sus vidas?"; sobre os livros que há em Berta Ilsa (há uma boa compilação deles no Librotea); e sobre tantas outras coisas. Mas não consigo fazer isso agora. Paciência. Preciso e vou reler o livro. Não consegui conter-me e o li quase de um fôlego só, um longo fôlego de quatro dias. Marías terminou de escrever "Berta Isla" em abril deste ano, o livro foi impresso em agosto e lançado oficialmente no 02 deste setembro que hoje termina. Recebi o livro na manhã do dia 10 (não pelo inútil serviço dos correios brasileiros, claro, mas pela DHL, graças aos esforços da Casa del Libro espanhola), comecei a ler naquele dia mesmo e terminei na quarta-feira, dia 13. Que dias felizes! Termino de escrever esse registro hoje, 30 de setembro, véspera do plebiscito que poderá definir a independência da Catalunya e uns poucos dias antes do anúncio do prêmio Nobel de literatura (e eu sempre aposto no Marías, claro). Evoé Marías, evoé!
Registro #1218 (romance #326)
[início: 10/09/2017 - fim: 13/09/2017]
"Berta Isla", Javier Marías, Madrid: Alfaguara (Grupo Santillana de ediciones / Penguin Random House Grupo Editorial), 1a. edição (2017), brochura 15x24 cm, 544 págs. ISBN: 978-84-204-2736-2

terça-feira, 19 de setembro de 2017

descendo a rua da bahia

Uma de minhas maiores alegrias como caçador de livros em sebos aconteceu em meados dos anos 1980, quando encontrei um exemplar de "Chão-de-Ferro", do Pedro Nava, volume raríssimo naquela época. Aprendi um bocado com seus livros de memórias ("Baú de Ossos", "Balão Cativo", "Chão-de-Ferro", "Beira-Mar", "Galo-das-Trevas", "O Círio Perfeito" e o incompleto e póstumo "Cera das almas") e também nos muito livros que foram escritos sobre ele. Esse "Descendo a rua da Bahia" reúne a correspondência entre Nava e Carlos Drummond de Andrade, cujas poesias sempre li pouco, ai de mim. São 63 documentos, manuscritos e datilografados, a maioria cartas, mas também cartões postais, recortes de jornal, telegramas. A edição é uma beleza. Uma miríade de ilustrações enfeita o livro, reunindo fotografias, reproduções de manuscritos, crônicas publicadas em jornais e revistas, poemas elegíacos, capas de livros, cópias de bilhetes. O leitor até esquece que há textos no livro, que também são belíssimas as cartas e os mimos que trocam entre si, que são os textos que contam algo melhor a genuína amizade que durou mais de sessenta anos, amizade iniciada em um longínquo fevereiro de 1922, em um bar em Belo Horizonte frequentado por jovens intelectuais e maio de 1984, quando Nava decide se matar. Eram dois sujeitos quase da mesma idade esses mineiros que tornaram-se cariocas, Carlos Drummond era uns poucos meses mais velho que o Nava. Além de duas breves apresentações assinadas pelas organizadoras do livros, as especialistas Matildes Demetrio dos Santos e Eliane Vasconcellos, o livro inclui um posfácio generoso de Humberto Werneck e, num apêndice, poemas e crônicas escritas por Drummond após a morte de Nava, onde ele canta a saudade do amigo ausente e exalta sua obra. Que belo livro. Lendo algo sobre o Nava e a amizade lembrei-me, claro, da Misa, para quem dei de presente aquele raro volume do "Chão-de-Ferro" encontrado num sebo. Logo depois ela se separou do Péricles e se afastou dos amigos dele, como eu, que perdi a amiga e as conversas sobre Proust, Hilda Hilst e, quase sempre, o Nava, mas essa é outra história. 
Registro #1217 (cartas #7)
[início: 04/09/2017 - fim: 12/09/2017]
"Descendo a rua da Bahia: A correspondência entre Pedro Nava e Carlos Drummond de Andrade", Eliane Vasconcellos e Matildes Demetrio dos Santos (organização e notas), São Paulo: Bazar do Tempo, 1a. edição (2017), brochura 14x21 cm., 240 págs., ISBN: 978-85-69924-24-1

sexta-feira, 15 de setembro de 2017

a roda do mundo

Esse curioso livro reúne dois conjuntos de dez poemas, "Nos, os bianos" e "Orikis", de dois autores da mesma geração e igualmente fortes, Edimilson de Almeida Pereira e Ricardo Aleixo. Do Aleixo já li vários livros ("Modelos vivos", "Impossível como nunca ter tido um rosto", "Máquina zero"), do Edmilson nunca havia lido nada. Como o antropólogo e também poeta Antonio Risério explica em uma breve introdução ao livro, os dois poetas retrabalham coisas e espíritos muito antigos, característicos de lugares distintos do continente africano, dando-lhes a roupagem para que sejam incluídos no repertório cultural contemporâneo brasileiro. Edmilson é tributário da etnolinguística Banto e Aleixo das culturas Jeje e Nagô. Os dez poemas de "Nos, os bianos", de Edimilson, parecem cânticos, letras de uma teogonia fragmentada, fundida a elementos de um sincretismo em construção. Nos dez de Aleixo, em "Orikis", faz-se um censo poético dos orixás, com o poeta - feito um Janus - olhando simultaneamente para os arquétipos desses ancestrais divinizados e para o leitor desse nosso tempo conturbado. O livro inclui um glossário de termos bantos e iorubás, além de uma pequena bibliografia. São vinte poemas brevíssimos, mas muito poderosos. Evoé.
Registro #1216 (poesia #87)
[início: 02/09/2017 - fim: 08/09/2017]
"A roda do mundo", Ricardo Aleixo, Edimilson de Almeida Pereira, Belo Horizonte: Objeto Livro / Segrac,  2a. edição (2004), brochura 11x20 cm., 48 págs., sem ISBN

segunda-feira, 11 de setembro de 2017

morte e julgamento

No quarto volume da série de romances policiais dedicados aos sucessos do Comissário Brunetti, "Morte e julgamento", se fala sobre o tráfico humano e a exploração do sexo. Homens e mulheres inescrupulosos mantém uma complexa operação, um negócio sujo, que envolve dezenas de pessoas e muito dinheiro, mas cuja rentabilidade é altíssima. São implacáveis as forcas invisíveis do mercado, a lei de oferta e procura, a cupidez humana. Donna Leon situa sua história nos anos que se seguiram à queda do Muro de Berlin e do consequente fluxo de imigrantes do leste europeu para as grandes e ricas cidades do continente, no caso deste volume, do fluxo de imigrantes romenos (quem já leu os livros de Herta Müller sabe do desastre irreversível que foi a ditadura comunista romena). Brunetti precisa resolver um crime que acontece em sua jurisdição, Veneza, correlato a um outro, acontecido em Padoa. Sua sagacidade e capacidade de trabalhar em equipe são testadas (e nesse volume descobrimos o quão dissimulado e bom ator ele sabe ser). Além da prostituição, Donna Leon acrescenta à trama uma outra camada de ignominia, ao descrever uma faceta inusitada, porém crível, do cenário de horrores da Guerra dos Balcãs. A solução dos crimes reside em uma questão puramente moral de um indivíduo, que Brunetti, sempre escravo de  sua retidão, resolverá, mas já sabendo ou antecipando que a grande  máquina de hipocrisia e poder italiana saberá blindar os verdadeiros culpados, as pessoas influentes demais para chegar a pagar por seus deslizes. Se ao longo do livro o leitor encontra momentos de alegria e hedonismo (os jantares familiares, a cumplicidade entre pai e filha, os passeios calmos pelas ruelas venezianas, as citações dos livros clássicos que os personagens lêem), seu desfecho, a exemplo dos demais que já li dela, deixam um travo amargo, uma nota duramente cinica, que obriga o leitor a reconhecer que não há remissão para o homo sapiens sapiens, espécie sempre capaz de sempre tentar esconder seus crimes e vileza, seu caráter dúbio e vocação para destruição e morte. O Brasil aparece na trama, mas da pior maneira possível (prova da verossimilhança que a autora dá a seus livros). Entre as prostitutas arrimentadas pelo tráfico há varias brasileiras, e quando uma pessoa quer fugir para justiça, obviamente tenta fugir para o Brasil. Bom livro, de uma poderosa escritora (que parece se vingar, por meio da literatura, de aborrecimentos que experimentou nos anos em que viveu na Itália).
Registro #1215 (romance policial #64)
[início: 01/08/2017 - fim: 08/08/2017]
"Morte e julgamento (Brunetti #4)", Donna Leon, tradução de Luiz Araújo, São Paulo: Editora Schwarcz (Grupo Companhia das Letras), 1a. edição (2008), brochura 12x18 cm., 267 págs., ISBN: 978-85-359-1163-3 [edição original: Death and Judgment / aka A Venetian Reckoning (New York: Harper Collins) 1995]

sábado, 9 de setembro de 2017

livro aberto

Foi Helga Correa, senhora das gravuras, das colagens e dos livros de artista, quem primeiro perguntou-me se eu conhecia "Livro aberto", de Marcelo Tápia. Como eu estava envolvido com a leitura do notável "Refusões", livro mais recente dele, onde está reunida sua produção poética, de 1982 a 2017, resolvi garimpar por aí um exemplar e consegui. Um livreiro lá do Rio de Janeiro tinha um volume, que acabou incorporado a meus guardados. "Livro aberto" é antes de tudo um conto, mas também é um livro-objeto, um experimento de design gráfico, uma inventiva proposta narrativa. O volume, impresso em preto, com identificação apenas na lombada, tem 82 páginas, com um retângulo recortado em todas elas e na capa. Lembra imediatamente o obturador de uma câmera escura (quando o livro fica na vertical) ou um poço de elevador (quando o livro repousa na horizontal), atraindo nos dois casos o olho do leitor para uma escuridão no fundo (que é o verso da contracapa, único elemento não vazado do livro). Ao abrir o livro o leitor parece entrar em um teatro, momentos antes de uma peça começar a ser encenada, com os elementos cenográficos já instalados num palco. O conto envolve seis personagens (narrador, marido, assistente, esposa, amante, inimigo) e tem uma chave de leitura, na forma de um diagrama. Cada personagem da trama se apresenta apenas em espaços previamente determinados (dois espaços acima, dois espaços abaixo e em cada um dos dois lados do retângulo recortado das páginas. O "narrador" e o "inimigo" têm liberdade para ocupar os espaços dos demais. Cada voz narrativa se diferencia graficamente por ter uma fonte tipográfica distinta. O livro inclui breves citações, também diferenciadas tipograficamente. A história que se conta pode ser separada em três atos, de mais ou menos dez páginas cada um. Os seis personagens, funcionários de um escritório e que se conhecem muito bem, entram em um elevador que trava, deixando-os na escuridão. A cada página o autor registra breves e episódicos pensamentos deles, em geral apenas de um ou dois a cada vez. A consciência do quinteto (marido, assistente, esposa, amante e inimigo) flui recortada, enquanto o narrador conduz o leitor ao entendimento do drama, da história e tensões acumuladas entre eles. Na cabine escura do elevador o tempo congela, passado, desejos, medos e pulsões dos personagens se fundem. Há um clima de sonho, onde se misturam sexo e crime. Eventualmente o grupo será resgatado, mas será que o leitor não ficou demasiado tempo focado no poço, no abismo, no jogo do livro, não terá perdido alguma coisa? Volte a ler ou conte melhor a história, conte outra história, parece sugerir o autor. Interessante mesmo. Mas agora é hora de voltar às imagens poderosas dos cinco livro reunidos no "Refusões". Vale.
Registro #1214 (conto #142)
[início: 04/09/2017 - fim: 06/09/2017]
"Livro aberto", Marcelo Tápia, São Paulo: Editora Olavobrás,  1a. edição (1991), brochura 18x23 cm., 82 págs., sem ISBN

quinta-feira, 7 de setembro de 2017

vestido para morrer

Esse é o terceiro volume da série de romances policiais assinados por Donna Leon dedicados aos sucessos do Comissário Guido Brunetti. Para além da trama essencialmente policial de seus romances, Donna Leon sempre acrescenta a eles um tema forte e contemporâneo. No "Morte no teatro La Fenice" descreve-se algo sobre questões de gênero e o papel das mulheres na sociedade italiana; em "Morte em terra estrangeira" se fala de questões ambientais, das injunções políticas que limitam o debate franco sobre o meio ambiente; já em "Nada como ter amigos influentes" se fala da corrupção doméstica, do dia a dia, em contraste com aquela sistematizada, das grandes corporações (como qualquer governo ou a máfia). Nesse "Vestido para morrer" o tema que aparece lentamente na trama é a hipocrisia das ligas morais, dos grupos ou instituições que em nome de alguma fé se apresentam para ajudar a população. É verão, a contragosto Paola e os filhos adolescentes deixam Brunetti só, em uma Veneza impossível, repleta de turistas, investigando a morte de um travesti, pois todos os demais comissários da cidade estão impossibilitados. Já que as férias foram estragadas e a morte é sempre o único fator que importa, Brunetti, com esforço e engenho, conseguirá identificar os responsáveis e as razões do crime. Neste volume somos apresentados a Elettra, a diligente secretária do procurador Patta. E vê-se que Brunneti se apresenta algo mais conservador, refratário a presença de turistas mal educados e mal vestidos, mas que sabe usar suas raras habilidades para extrair de cada um que se apresente a informação que o ajudará a comprovar as suspeitas que tem desde o início da trama. Em algum momento o narrador lembra da morte recente do juiz Falcone (um dos responsáveis pela operação "Mãos Limpas", investigação judicial que varreu o mapa político italiano nos anos 1990). Noutro se fala da expansão econômica europeia; da aids; da onisciência que os italianos parecem zelar como qualidade básica de seu caráter; dos prazeres da boa comida. Boa trama, bom livro. Vale.
Registro #1213 (romance policial #63)
[início: 09/08/2017 - fim: 12/08/2017]
"Vestido para matar (Brunetti #3)", Donna Leon, tradução de Luiz A. de Araújo, São Paulo: Editora Schwarcz (Grupo Companhia das Letras), 1a. edição (2006), brochura 12x18 cm., 286 págs., ISBN: 978-85-359-0877-3 [edição original: Dressed to death (New York: Harper Collins) 1994]

terça-feira, 5 de setembro de 2017

pássaros pretos

De Mirian Mambrini só conhecia o bom "A bela Helena", que li por sugestão da Heloísa Mesquita, amiga querida, lá de São Paulo, mas que não vejo há mais de um ano, ai de mim. Como estará grande sua pequenina Inês?, e a adolescente Rebeca?, e como estará o Samuca em seus combates? Logo veremos, espero. Esse "Pássaros pretos" é um romance policial canônico. Um crime acontece e o leitor é levado a acompanhar os caminhos que identificarão o assassino. Mirian Mambrini faz uma garota, uma jovem que pretendia passar um tempo de estudos em Paris, voltar para o Brasil por conta da morte violenta de seu pai, poucos dias após sua viagem rumo à Europa. Essa garota, dona de um inusitado nome, Íris Flora, reunirá em Cabo Frio, região praiana à leste do Rio de Janeiro, uma confraria de investigadores (um ex-namorado, um policial, um escritor), que com as informações colhidas com seu irmão, sua mãe, sua tia e outros indivíduos da população do lugar) a ajudarão descobrir as circunstâncias do crime. É um livro que se defende bem e oferece descrições interessantes, tanto de alguns personagens, quanto da paisagem natural ou da passagem do tempo, mas é um livro preso à forma, ao formato, ao gênero. Nada que deprecie o livro, mas o leitor precisa entrar no jogo da investigação rapidamente para realmente gostar do livro. Acho que há uns personagens que têm estofo para outras aventuras. Vamos a ver o que Mirian Mambrini nos reservará no futuro. Evoé. 
Registro #1212 (romance policial #62)
[Início: 16/08/2017 - fim: 31/08/2017]
"Pássaros Pretos", Mirian Mambrini, Rio de Janeiro: Editora 7 Letras, 1a. edição (2017), brochura 14x21 cm., 197 págs., ISBN: 978-85-412-0557-5

domingo, 3 de setembro de 2017

sobre gatos

Nunca havia lido nada de Doris Lessing. Quando ela ganhou o prêmio Nobel de literatura, há dez anos, cheguei a folhear vários livros dela, mas não acho que comprei algum (se os comprei eles perderam-se nos guardados). Como sou um senhor dono de gatos escalei-me para comprar "Sobre gatos" assim que entrou em pré-venda (foi o Daniel Dago quem fez o anúncio, com meses de antecedência). Essa edição brasileira é tradução da original inglesa, publicada em 2002, que inclui três conjuntos de histórias que foram publicadas inicialmente de forma independente, em 1967 (Gatos em particular), 1989 (Rufus, o sobrevivente) e 2000 (A velhice de El magnífico). As histórias de gatos do primeiro conjunto começam ainda na infância, na África, e são as mais violentas (não é fácil se acostumar, mesmo por meio da ficção, literariamente, com a realidade da vida selvagem e da vida prática de quem vive no campo). Mas logo há um salto, e Lessing começa a contar as aventuras de duas gatas dos tempos em que morava em Londres. O período não é identificado no livro, mas deve ser no início dos anos 1950, quando ela emigrou para lá. De resto há também uma citação sobre um grande nevoeiro, que pode ser o de 1952. Estas duas gatas, sem nome, apenas "a gata cinza" e "a gata preta", convivem, tem suas ninhadas, disputam território, atenção e preferência, ficam doentes e se salvam, caminham por uma Londres cheia de gatos, algo suburbana. Lessing ainda é uma dona de gatos aprendiz, não entende certas mudanças de humor das gatas, força sua humanidade à elas. A história de Rufus é de meados dos anos 1980. Neste intervalo Lessing certamente conviveu com vários outros gatos, não nominados e que não mereceram o registro em livro. Ela conta como a chegada de um gato maltrapilho, que virá a chamar-se Rufus e acabará conquistando sua atenção e abrigo. Os dois gatos oficiais naquele período, Charles e Butch, sabem bem que não perderão a posição que têm na casa, dominam o jovem e maltratado Rufus só com o olhar. Todavia Lessing parece se interessar especialmente pela inteligência e sabedoria felina dele, sujeito que deve ter tido toda sorte de aborrecimentos, porém que soube aprender como funcionam as engrenagens morais dos humanos e de como ganhar deles algum carinho (seu ronronar forçado e maroto é cousa de um ator nato). O ultimo episódio do livro trata dos anos finais de um gato especial dela, Butch, o mesmo da história anterior, apelidado "El magnifico". Quem convive com gatos sabe como cada um torna-se especialissimo a seu tempo, com suas manias, suas metamorfoses, seus nomes que variam e incorporam fragmentos da vida e humores de seus donos. Ela aceita os gatos e seu instinto, de um jeito que eu, dono de gatos de apartamento, que não experimentam a vida da ruas e seus perigos, jamais saberei. De qualquer forma Lessing mostra ser uma boa observadora, na medida em que seja possivel entender animais tão mutáveis como os gatos, seres que permitem infinitas variações em sua descrição. O curioso das histórias é que só há gatos em sua vida, apenas incidentalmente ela cita um "nós" e fala de quem vive com ela. Em algum momento ela fala de duas mulheres e que a ajudam a enterrar sobre a chuva uma ninhada indesejada (uma cena poderosa, que lembra obviamente aquela das três bruxas do inicio do Macbeth). Mas é só. Se eu soubesse há dezesseis anos que gostaria tanto de gatos, teria iniciado naquela época um diário das aventuras deles, algum tipo de registro, para não depender de minha estropiada memória ao falar deles. Paciência.
Registro #1211 (crônicas e ensaios #215)
[Início: 24/08/2017 - fim: 28/08/2017]
"Sobre gatos", Doris Lessing, tradução de Julia Romeu, Belo Horizonte: Autêntica Editora, 1a. edição (2017), brochura 14x21 cm., 187 págs., ISBN: 978-85-513-0252-1 [edição original: On Cats (London: Flamingo / Harper Collins Publishers) 2002]

sexta-feira, 1 de setembro de 2017

poesia vista

Ler e ver os poemas de Joan Brossa sempre é um assombro. Já registrei aqui os "99 poemas" traduzidos por Ronald Polito e editado pela Demônio Negro. Nesta seleção, organizada por Vanderley Mendonça, que é também o tradutor, encontramos 23 poemas visuais; 31 poemas escritos (acompanhados dos originais em catalão) e 17 poemas-objeto. O que são "poemas escritos" não precisa ser explicado, muito embora sempre pode ser controversa a interpretação de um poeta sobre a natureza de seu jogo, seu ofício, sua leitura da realidade, sua interpretação do mundo. Grosso modo pode-se dizer que nos "poemas visuais" texto, imagens e símbolos são organizados de tal forma que é o elemento visual que tem função organizacional na obra, eventualmente até prescindindo de símbolos de escrita para sua caracterização como poesia, afastando-se da linguagem que pode ser vocalizada. E, por fim, "poemas-objeto" são, na acepção de Brossa, poemas que não geram linguagem, que suprimem completamente a linguagem, uma variante mais selvagem dos poemas visuais. A edição incluí ainda dois bons prefácios. Um é assinado por Haroldo de Campos. Ele conta como foi que João Cabral de Melo Neto fez a poesia de Brossa ser conhecida no Brasil e de como os poetas concretistas brasileiros mantiveram produtivo contato com ele até sua morte, em 1998. O segundo é assinado por Glòria Bordons, especialista em sua obra, organizadora de vários livros sobre ele e por um período responsável pelos guardados da Fundació Joan Brossa. Ela apresenta uma curta biografia do poeta catalão e explica algo de seu caráter único, heterodoxo, não comprometido com modismos e tendências, louva sua poesia e atitude, canta o quão irrelevante para ele eram definições de gênero, de fronteira entre as artes, a classificação das formas. Vale a pena gastar um tempo e apreciar sua poesias visuais nesta aba do site da Fundació. Visca Brossa! Visca Catalunya! 
Registro #1210 (poesia #86)
[início: 10/07/2017 - fim: 05/08/2017]
"Poesia vista", Joan Brossa, tradução de Vanderley Mendonça, São Paulo: Ateliê Editorial, 1a. edição (2005), capa-dura 14,5x21,5 cm., 124 págs., ISBN: 978-85-7480-290-5 [edição original: Glòria Bordons / Poemes escollits (Barcelona: Edicions 62) 1995]