quarta-feira, 28 de agosto de 2019

muerte entre líneas

"Muerte entre líneas" se passa em uma Veneza primaveril, já exuberante em cores, cheiros, movimentos de pássaros, ainda não cheia de turistas e batedores de carteira. Brunetti precisa investigar sobre um crime que lhe incomoda particularmente, o roubo e destruição de livros, sobretudo de livros antigos, aqueles primeiros a serem impressos na Europa após a invenção dos tipos móveis por Gutenberg. Donna Leon se inspira em um crime real, o cometido em Nápoles, na Biblioteca dei Girolamini, de onde foram furtados milhares de livros há pouco menos de dez anos. Na história de Donna Leon é de uma biblioteca veneziana que livros são suprimidos e vandalizados, inclusive livros impressos pelo genial Aldo Manúcio. Apesar deste ser um tipo de crime fora de sua alçada, Brunetti faz seus comandados e colaboradores trabalhar e descobrir o enorme esquema de roubos, tanto aqueles por encomenda, quanto aqueles fruto de cupidez individual (há um terrível personagem no livro, um venal ex-padre, especialista em Tertuliano, um dos grandes padres latinos da Igreja Católica). Elettra e a comissária Griffoni já são amigas, o conte Fallier está algo fragilizado após um AVC, Paola e as crianças já estão planejando as férias de verão. Neste volume o leitor encontra a usual cota de reflexões sobre a complexa sociedade italiana, temperada por um sarcasmo brutal direcionado à impostura intelectual, à hipocrisia, à falsa cultura, ao funesto comportamento politicamente correto. O Brasil, ai de nós, é citado duas vezes no livro, de forma nem um pouco edificante, quando os personagens denunciam o comportamento vicioso de um cocainômano brasileiro e do melhor lugar para se fugir da Itália em caso de ter-se cometido um crime. Quem sou eu para censurar Donna Leon? Livro bem movimentado, que trará alegria para bibliófilos, bibliômanos e bibliólatras. Vale! 
Registro #1442 (romance policial #88) 
[início: 13/07/2019 - fim: 18/07/2019]
"Muerte entre líneas" (Brunetti #23), Donna Leon, tradução de Maia Figueroa Evans, Barcelona: Editorial Seix Barral / Booket #2611 (Grupo Planeta Manuscrito), 1a. edição (2015), brochura 12,5x19 cm., 384 págs., ISBN: 978-84-322-2433-1 [edição original: By Its Cover (Zürick: Diogenes Verlag AG / Penguin Randon House Group) 2014]

quinta-feira, 22 de agosto de 2019

turner

Há dias em que só a proximidade do mar e a áspera passagem de areia e sal próximos a derme é o que nos consola; noutros dias é a música, a floresta, a montanha ou a neve que nos estimula, que funciona como lenitivo; e noutros, ainda, são as imagens poderosas de um livro que alcançam afastar de nós os rudes efeitos da existência de escravos mentais e canalhas. Estou seguro que nasci num país onde muita gente se orgulha de ser imbecil, fazer o quê. Seguimos no barco de Caronte, do berço a  tumba. De qualquer forma encontrei neste livro sobre a arte de Turner muitas coisas que me alegraram nos últimos dias. Não só ele, claro, desta feita fui conduzido por Michael Bockmühl, respeitado historiador de arte alemão. Esse volume da Taschen enfeixa imagens belíssimas e um texto poderoso, super informativo. Aprende-se um bocado. Bockemühl descreve o desenvolvimento pessoal e artístico de Turner, seus conceitos, a forma como executava suas obras, seus contemporâneos e efebos. Fala muito sobre a presciência dele sobre questões de luz e cor, que seriam dominantes no século XX (Turner viveu do final do século do XVIII a meados do século XIX). Não se trata de fazer, através da arte, uma descrição realista do mundo, antes sim de provocar um efeito, de levar o sujeito que se aproxima de seus quadros a uma experiência sensorial, uma vertigem, dominada pela cor. Bockemühl fala bastante sobre a teoria das cores de um seu conterrâneo, o seminal Johann Wolfgang von Goethe. As reproduções dos quadros certamente não provocam o impacto da experiência pessoal, mas dão ao leitor uma ideia de como o jogo de claros e escuros, de luz e sombra, podem enganar nossos sentidos, forçar nosso cérebro a entender melhor a realidade. Lembrei muito de um livro de Junichiro Tanizaki, "Em louvor da sombra", que já registrei aqui, e dos ensinamentos de Isaiah Berlim sobre o romantismo. Que belo livro. Vale a pena conferir algumas das reproduções digitais dos quadros de Turner reunidas neste link da wikiart. Vale! 
Registro #1441 (livro de arte #31) 
[início: 01/07/2019 - fim: 22/07/2019]
"J.M.W. Turner 1775-1851: O mundo da cor e da luz", Michael Bockemühl, tradução de Paula Reis, Köln: Taschen GmbH, 1a. edição (2010), capa-dura 23x30 cm., 96 págs., ISBN: 978-3-8365-1372-2 [edição original: (Köln: Benedikt Taschen Verlag GmbH) 1993]

domingo, 18 de agosto de 2019

riquete el del copete

Foi em 2014 que li Amèlie Nothomb pela última vez. Ela é autora de vinte e cinco romances curtos e potentes. Noutro dia encontrei esse, que li em um par de horas. O "Riquete el del Copete" original é um conto de fadas inventado no final do século XVII por Charlles Perrault. Não sei se há uma versão brasileira deste conto (ao menos não me lembro de ter lido essa história quando criança). O conto original canta os sucessos de um príncipe que é muito feio, mas muito inteligente, e de uma princesa que é muito bonita, mas completamente parva. O acaso os faz se encontrar e oferecer, um ao outro, como um dom e/ou metamorfose, o predicado que têm. Ambos tornam-se bonitos e inteligentes, vivendo felizes para sempre. Amèlie Nothomb atualiza o conto, transportando-o para a França contemporânea. Déodat é o rapaz feio, porém inteligente, que se torna famoso em sua especialidade, a ornitologia; Trémière, a menina belíssima, sem luzes, que acaba tornando-se a modelo principal de uma grande casa de moda. O final do livro alcança o mesmo tipo de ambígua felicidade que o conto de Perrault (pois podemos entender que ambos, por amor, antes aceitam as limitações físicas ou intelectuais um do outro, do que verdadeiramente experimentam uma metamorfose, uma transformação mágica). Nothomb aproveita a história para falar do sistema educacional francês; do que se conhece atualmente sobre a cognição, do desenvolvimento da linguagem; faz troça do mundo da moda, da academia e das convenções sociais. Após o final do livro Nothomb acrescenta um capítulo onde reflete sobre seu ofício e fala sobre os livros reunidos na Comédie humaine de Balzac para justificar a validade de sua escolha em dar um final feliz a seus protagonistas. Sempre interessante esta curiosa escritora. Vale! 
Registro #1440 (romance #360) 
[início - fim: 18/06/2019]
"Riquete el del Copete", Amèlie Nothomb, tradução de Sergi Pàmies, Barcelona: editorial Anagrama (Panorama de Narrativas #970), 1a. edição (2018), brochura 14x22 cm., 120 págs., ISBN: 978-84-339-8000-7 [edição original: Riquet à la houppe (Paris: éditions Gallimard) 2016]

quinta-feira, 15 de agosto de 2019

poemas

Este volume é um portento, um veio de ouro puro e fino, uma fonte de prazeres sem fim, uma caixa mágica de assombros. Não é o tipo de livro que um sujeito lerá de capa a capa, obstinadamente. Claro, pode ser assim, mas não se deve. São muitos poemas, muita informação, muitos encantamentos. Trata-se de uma edição que reúne todos os livros de poesia publicados por T.S. Eliot em vida, entre 1917 e 1954. A edição é bilíngue, a tradução assinada pelo industrioso Caetano Galindo, professor da UFPR, escritor e tradutor respeitado. Os livros são Prufrock e outras observações (1917); Poemas (1920); A terra devastada (1922); Os homens ocos (1925); Quarta-feira de cinzas (1930); Poemas de Ariel (1927-1954); Quatro quartetos (1943) e O livro dos gatos sensatos do Velho Gambá (1939). A esse robusto conjunto os editores incluíram dezenas de notas que elucidam muitos dos enigmas espalhados pelos poemas, o simbolismo entranhado neles, as muitas camadas de entendimento possível. Incluíram também um posfácio, no qual Galindo explica ao leitor algo do contexto da publicação original dos poemas, suas escolhas de tradução e método, seu envolvimento no mundo de sons e palavras evocados por Eliot. Aqui talvez seja o caso de registrar o quão especial é esse posfácio. Galindo alcança conduzir o leitor por sua aventura pessoal, a de traduzir seguindo uma mesma sistemática, como em uma máquina tradutória, todos os poemas. Sua prosa é muito especial, uma sequência de frases curtas que deixam o leitor quase sem fôlego, como se ele fosse o coelho que aparece sempre apressado, correndo, na história de Alice, de Lewis Carroll. Neste processo ele nos convence da necessidade de imersão total do leitor na caixa de ressonância criada por Eliot, da eventual incompreensão que muitos deles provocam, da constante evolução do poeta no tempo, da miríade de registros, sons, métricas, formas. Galindo, também um músico, ressalta a musicalidade, ritmo e sonoridade de toda produção de Eliot. Bueno. Nada substitui a experiência de ler os poemas. Arrume logo um tempo livre e bom divertimento. Vale! 
Registro #1439 (poesia #117) 
[início: 04/03/2019 - fim: 18/07/2019]
"Poemas", T.S. Eliot, tradução de Caetano W. Galindo, São Paulo: editora Schwarcz (Companhia das Letras / Penguin Random House), 1a. edição (2018), capa-dura 14x21 cm., 438 págs., ISBN: 978-85-359-3178-5 [edição original: Collected Poems 1909-1962 (London: Faber and Faber) 1963]

quarta-feira, 14 de agosto de 2019

crônicas velozes

Neste volume encontramos dez crônicas curtíssimas e um esquete teatral brincalhão de Cláudio Portella, talvez o mais inquieto dos escritores de  Fortaleza. Eles funcionam como apontamentos de ideias que poderiam ser expandidas em contos, fragmentos de epifanias, registros de estados de humor. Portella fala de músicos (Jards Macalé, Luiz Melodia, Belchior); escritores (Eduardo Portella, Antônio Cândido); artistas plásticos (Sérvulo Esmeraldo) e também faz sociologia selvagem, refletindo sobre jogos, sua formação universitária, a felicidade possível, o sexo. É uma proposta honesta, mas algo mais fraco que as coisas dele que já li: seus aforismos, sua poesia, seu romance. Paciência. Segue o baile. Vale! 
Registro #1438 (crômicas e ensaios #262) 
[início - fim: 17/07/2019]
"Crônicas velozes", Cláudio Portella, Fortaleza: Expressão Gráfica e Editora  (Edições CP), 1a. edição (2018), brochura 12x19 cm., 16 págs., ISBN: 978-85-420-1217-0

quarta-feira, 7 de agosto de 2019

el hombre que nunca existió

Já escrevi aqui sobre "Operación Desengaño", o romance onde se transforma em ficção uma legítima operação de contra-espionagem empreendida durante a segunda grande guerra mundial: a de enganar os nazistas, fazendo-os acreditar que a invasão do continente europeu dar-se-ia pela Córsega, Sardenha, Grécia e Balcãs, e não diretamente pela Sicília, como de fato aconteceu. Publicado em 1950 "Operação Desengaño" chamou muito a atenção do público, de forma que o serviço de segurança britânico, que havia sido responsável pela operação, decidiu não negar o fato. Imaginando que tal divulgação seria boa propaganda para o moral dos ingleses (eram tempos de guerra fria), decidiram revelar muitos detalhes de como deu-se a operação, que oficialmente chamou-se "carne moída", uma piada algo macabra. A trapaça envolveu lançar de um submarino o cadáver de um pretenso oficial inglês com documentos sigilosos, que fizessem o alto comando nazistas acreditar nos planos futuros dos aliados. Ewen Montagu foi o oficial da inteligência britânica que liderou toda operação. Diz a lenda que ele escreveu seu "O homem que nunca existiu" em apenas um final de semana. De qualquer forma, seu livro, publicado em 1953, foi um sucesso, vendeu milhões de cópias e foi rapidamente adaptado para o cinema, também com excelente resultado nas bilheterias. O livro de Montagu é tão interessante de ler quanto o de Duff Copper. Em certa medida é até melhor, pois há boas reproduções de fotografias, de mapas e gráficos, das cartas oficiais forjadas e de uma miscelânea de objetos que foram enviados junto com o cadáver do falso "comandante Martin", o tal homem que nunca existiu do título. Os dois volumes se complementam perfeitamente. Esse volume tem dois prólogos, um assinado pelo historiador John Julius Norwich, filho de Duff Copper, e outro assinado por Hastings Ismay, que foi chefe do estado maior durante o primeiro período em que Winston Churchill foi primeiro ministro inglês. Montagu admite várias vezes ao longo de sua narrativa que vários detalhes continuavam sob segredo de estado, principalmente o nome do subordinado seu que teve a ideia original, a identidade do morto e de como o serviço secreto acompanhou as movimentações nazistas que se seguiram a descoberta do corpo. Diversão de primeira. Pode até não ser verdade que Montagu escreveu seu livro em apenas um final de semana, mas este é o tipo de livro que o leitor não para de ler antes de terminar. Esses volumes editados pela Reino de Redonda (de Javier Marías) são mesmo ouro puro e fino. Ave, Marías!, sempre. Vale!
Registro #1437 (perfis e memórias #117)
[início: 13/06/2019 - fim: 05/07/2019]

"El hombre que nunca existió", Ewen Montagu, tradução de Antonio Iriarte, prólogo de John JUlius Norwich, Madrid: Reino de Redonda, vol. 34, (1a. edição) 2019, capa-dura 14,5x23 cm., 402 págs., ISBN: 978-84-947256-3-0 [edição original: The Man Who Never Was (London: Evans Brothers) 1953]

terça-feira, 6 de agosto de 2019

o apito do trem

Byrata é um sujeito industrioso. Ele edita vários livros por ano, dá consultoria e revisa livros dos outros, escreve os seus, produz cartuns e ilustrações sempre inventivas, agita o mundo da cultura e arte aqui de Santa Maria. Ganhei esse "O apito do trem" ainda no ano passado, quando fui à Feira do Livro de Porto Alegre, mas o livrinho perdeu-se nos guardados, meu escritório está uma confusão dos diabos. Noutro dia, eita! O livro apareceu do nada, estava ali, ao alcance da mão. Trata-se de um livrinho para quem está se alfabetizando, pode ser lido, mesmo por quem ainda tatibitate, pode ser ouvido por quem ainda nada sabe ler, pode ser também colorido. A história brinca com com os sentidos, com o apito de um trem que pode ser confundido com o apito de um navio, com a ideia que um navio possa navegar pelas coxilhas do Rio Grande, rumo ao Rio Uruguai. Mas como, se Santa Maria está há centenas de quilômetros do mar e tão próxima dos trilhos de trem? Byrata explica, com calma e sorriso franco. Preciso descobrir alguém que tenha um filhinho de colo, para presenteá-lo com esse belo livrinho. Vale!
Registro #1436 (infanto-juvenil #49)
[início-fim: 17/05/2019]
"O apito do trem: uma historinha para os netos", Byrata (Jorge Ubiratã da Silva Lopes), Santa Maria/RS: editora Rio das Letras, 1a. edição (2017), brochura 14x20 cm, 12 págs., ISBN: 978-85-65172-44-8

sexta-feira, 2 de agosto de 2019

la cocina del mestizaje

Há muito tempo registrei algo aqui sobre Saber o no saber" e, bem recentemente, algo sobre "La cocina de los finisterres", volumes de uma coleção de livros dedicados a gastronomia presente nas histórias do detetive Carvalho, genial invenção de Manuel Vázquez Montalbán. Nas férias de julho, pensando em como seria bacana uma nova viagem para o sul espanhol, li este "La cocina del mestizaje", que trata da culinária que Montalbán entende como típica e entranhada de quatro comunidades autonómicas espanholas: Murcia, Andalucía, Extremedura y Canarias. Essa eleição, para ele, implica reconhecer que a arte culinária destas quatro regiões foram especialmente afetadas pelo contato entre povos muito distintos, culturas muito díspares, gentes muito diferentes, que em algum momento se fundiram ou se alicerçaram juntas, enfim, se mesclaram de uma forma bastante particular. Canárias recebeu gente das Américas e da África, aventureiros, e também era utilizada como porto de abastecimento e conexão com os magrebinos africanos; Andalucía e Murcia sobretudo recebeu séculos de influência dos povos árabes e dos judeus; Extremadura, por conta de sua acidentada geografia, recebeu gente de todas as partes, que vinham como que se afastar do mundo em pequenos povoados, e também foi um dia mais portuguesa do que é hoje, parte da reconquista portuguesa da península. O formato de apresentação deste volume é idêntico ao do "La cocina de los finisterres": ele digressa sobre os pratos típicos, as particularidades que distinguem uma região da outra, sempre com um olho na geografia e no clima, sempre com um olho na história e tradições do lugar. No caso específico deste volume ele fala da influência árabe e judaica na culinária de Murcia, Andalucía e Extremedura, assim como na influência dos produtos que vieram das índias ocidentais, das Américas espanholas, na culinária típica das ilhas Canárias. Múrcia é descrita como o território do arroz, o celeiro do Sul espanhol. Andalucía como a morada do Sol, das laranjas, dos doces. Extremadura se destaca pelos produtos derivados do porco, pelo jamón ibérico. As Canárias, além dos produtos alcançados no mar que as cercam, também tem uma culinária bastante influenciada pelos africanos do noroeste, Marrocos, Saara Ocidental, Argélia. Os textos dedicados a cada uma das autonomias são curtos, mas as receitas são numerosas. Livro bom mesmo para se ler enquanto se prepara algo para pessoas queridas, enquanto viajamos no tempo, sentimos o aroma dos cozimentos, ouvimos os risos e os copos que se chocam, fisgamos fragmentos de memória, que encantam, num turbilhão de sensações. Vale! 
Registro #1435 (gastronomia #40) 
[início 22/07/2019 - fim 01/08/2019]
"La cocina del mestizaje: viaje por las cazuelas de Murcia, Andalucia, Extremadura y Canarias - Carvalho Gastronómico, vol.3", Manuel Vázquez Montalbán, ediciones B (Zeta Bolsillo) Penguin Random House Group (1a. edição) 2008, brochura 12,5x20, 271 págs. ISBN: 978-84-9872-110-2 [edição original: 2002]