segunda-feira, 31 de dezembro de 2018

balanço de 2018

Neste funesto 2018 fiquei quase sempre dividido entre seguir o  ensinamento de Archilochus, que sugere ferirmos duramente os indivíduos que nos ferem, ou aceitar o estoicismo que brota das reflexões de Proust, quando ele fala da eficácia efêmera do desgosto. Li como um demônio neste ano terrível, neste ano aborrecido e previsível, neste país onde só floresce, entranha e reina a estupidez. Se fiz só 104 registros de leitura foi por absoluto cansaço, aquele cansaço do Pessoa, supremíssimo cansaço. Fiquei meses sem resenhar, apenas lendo, com método, alheio a quase tudo. Deixei pelo menos uns 20 livros lidos para registrar no ano que vem. Vamos a ver se coloco a casa em ordem durante as férias. Bueno. Não cumpri nenhuma das promessas literárias de 2017 (reler o Cervantes, terminar o Tristram Shandy, voltar aos gregos, etc e tal). Mas fiz desvios felizes, encontrei bons veios literários, variados títulos. Neste ano produzi registros de 24 romances, 18 volumes de crônicas ou ensaios, 15 de contos, 11 de poesia, 10 romances policiais, 6 de arte, 6 novelas gráficas e 14 outros divertimentos. A boa surpresa foi ter lido 10 livrinhos da editora Âyiné. Li também minha boa cota de 20 livros em espanhol, aproximadamente 20% do total, mas apenas um livro em inglês, um bom e fundamental Coetzee, apenas um. Li 9 livros da Donna Leon e bons livros de poesias (Ficowski, Britto, Andresen, Tranströmer, Aleixo, Hilst, Portella, Nooteboom, Moura, Medeiros e a Lira Argenta organizada pelo Mendonça. Tive uns assombros, umas surpresas: Botelho, Czekster, Tavares, Nogy, Musil, Krause, Nei Lopes, Brasiliense. Reencontrei o Nooteboom, sempre fundamental, o genial Javier Marías, o Camilleri, o Pellanda, o Modiano, o Vargas Llosa, o Pérez-Reverte, o Vila-Matas. Tive a alegria de ver o grande livro do Abdon Grilo ser publicado (peça fundamental para entender algo sobre o Ulysses, de James Joyce). Depois de anos Ulysses mais uma vez fez-se ao mar. Evoé Abdon, Evoé. A média histórica de leitura segue estabilizada. Nos doze anos do blog foram lidos cerca de 113 por ano, mais de 9 por mês, 2 por semana, um terço de livro por dia. Já há 1354 registros de leitura no "Livros que eu li" (desde janeiro de 2007). Resumidamente posso dizer que são 793 de ficção (romances, novelas, contos, poesia e peças de teatro); 338 de não ficção (ensaios, crônicas, biografias, perfis, didáticos e catálogos de arte) e 223 de divertimentos variados, absolutamente inclassificáveis, mas sempre prazerosos. Esse foi um ano sem prêmio Nobel de literatura, em que a aventura febril das livrarias Saraiva e Cultura as fez quase falirem, em que fiz boas viagens pelo Brasil para as avaliações do MEC, de uma copa do mundo de futebol discretíssima. Ano em que fomos, Helga e eu, a Buenos Aires, e vimos doña Natália Diacoyannis formar-se, para logo tatear outros mundos. E viva Naty! Foi o ano da morte do Bourdain, do Schlee e do Cony; do Hamburger, do Videira e da Elisa Frota-Pessoa, três grandes físicos. Já se passaram dois anos da morte de doña Vic e um do primeiro e verdadeiro Guina. Sei que lerei minha boa cota de livros em 2019, mas não farei planos desta vez. Sei que eles vão me encontrar por aí, brotar dos guardados, fazerem-se lembrados por uma epifania qualquer, como sempre acontece. Sei também que os escravos mentais e a turma do Alzheimer moral certamente continuarão a tentar me incomodar, mas Humphrey Bogart já me ensinou que não se deve perder tempo desprezando alguém, basta esquecê-los, mantê-los por profilaxia bem distantes. Bueno. É quase hora de fazer-se ao mar de 2019. Já é tempo. Thalatta! Thalatta!

quarta-feira, 26 de dezembro de 2018

cuando los tontos mandan

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Quando soube, ainda em 2017, do pré-lançamento de "Cuando los tontos mandan", preparei-me bem. Graças aos bons serviços da Casa del Libro espanhola e da DHL o livro saiu de Madrid no dia 15 de fevereiro à tardinha e chegou aqui, no interior do interior do Rio Grande do Sul, no dia 20 de fevereiro, fresco como pão quente, ainda com cheiro de livro novíssimo que era. Já conhecia todas as 95 crônicas de Javier Marías reunidas nele, pois as leio todos os domingos assim que são publicadas no El Pais Semanal. As reli ainda nas férias e antes do início das aulas, em março, mas deixei para fazer esse registro só agora, ao finalizar os registros possíveis em 2018 no Livros que eu li. Esse volume sintetiza meu ano, meu humor, meu entendimento da vida. Vivemos sim numa desgraçada época onde os tontos mandam. É insuportável. Paciência. Como não concordar com Marías? As crônicas são variadas. Sua curiosidade intelectual é vasta. As crônicas foram publicadas entre 8 de fevereiro de 2015 e 29 de janeiro de 2017. Ele fala de política espanhola e política internacional; de costumes e modismos; de Cervantes e Shakespeare; recupera fragmentos de sua biografia, louvando amigos e vergastando inimigos; fala de filmes antigos, de religião, de guerras, de terrorismo, da Europa e de linguagem, de literatura contemporânea, de questões filológicas discutidas na RAE e de sexo discutido com amigos, da vaidade e de suas obsessões literárias, seus hábitos, sua rotina e seu oficio. Poucas pessoas me parecem tão honestas intelectualmente quanto ele (como nos ensinou Isaiah Berlin, ato que exatamente define verdadeiramente um intelectual). Poucas pessoas me parecem tão corajosas, implacáveis com a má-fé, com a mentira e a desfaçatez. Seu sarcasmo é sempre onipotente, ferino, necessário. A mediocridade o importuna, mas ele dá exemplos de como faz para blindar-se dela e da legião de escravos mentais que nela vicejam. Ele fala da tragédia que é o pensamento politicamente correto. Fala do curral mental em que se transformaram as escolas, onde muitos professores praticam sem pudor o que pior alguém pode fazer a um aluno: mentir, desinformar, falsear. Sempre é implacável justamente com os indivíduos que deveriam ser exemplares e confiáveis, mas são exatamente o contrário: filisteus acadêmicos, juízes venais, jornalistas que nem fazem mais questão de esconder sua estupidez, políticos profissionais e seus assessores amestrados, professores universitários, maus críticos e pensadores ruins. De qualquer forma um humor sereno percorre as crônicas, um humor que desarma qualquer fascista ou canalha de plantão. É possível escolher uma como a melhor dentre elas? Não consigo. Em todas encontra-se reflexões de alguém que sempre respeita seus leitores, convida-os a raciocinar, a pensar com lógica e independência, a devotar nosso bem mais valioso, que é o tempo, em ações que promovam a liberdade, a democracia, a correção, a verdade, valores morais e a boa educação, a vida bem vivida. Recomendo sempre a leitura de qualquer um de seus conjuntos de crônicas: Mano de sombra, Seré amado cuando falteA veces un caballeroHarán de mí un criminalEl oficio de oír lloverDemasiada nieve alrededorNi se les ocurra disparar, Tiempos ridículos e Juro no decir nunca la verdad. Em todos encontramos aulas exemplares da história recente da Espanha e de como opera um intelectual notável em todos os sentidos. Bom divertimento. Evoé Marías, evoé! Vale!
Registro #1354 (crônicas e ensaios #240)
[início: 20/02/2018 - fim: 04/03/2018]
"Cuando los tontos mandam", Javier Marías, Madrid: Alfaguara (Grupo Santillana de ediciones / Penguin Random House Grupo Editorial), 1a. edição (2018), brochura 15x24 cm, 301 págs. ISBN: 978-84-204-3231-1

sábado, 22 de dezembro de 2018

el viaje de don quijote

Um ano sem voltar a Espanha é um ano perdido. Sempre lembro desta frase do Cees Nooteboon quando chega esta época. Não fui a Espanha neste ano mas aventurei-me por ela de variadas formas. Li vários livros em espanhol, aprendi um bom bocado de cousas novas, acompanhei as notícias de lá, a queda do Rajoy e os sucessos do movimento separatista catalão, recebi vários mimos que doña Helga trouxe de lá. Paciência, não posso reclamar muito. De qualquer forma uma das mais prazerosas experiências literárias deste ano foi a leitura deste "El viaje de don Quijote", de Julio Llamazares, bem ilustrado Jesús Cisneros. Em 2015, por encomenda, como forma de comemorar os quatrocentos anos de lançamento da segunda parte do Don Quijote, Júlio Lamazares escreveu para o jornal El País trinta crônicas de viagens, repetindo algo que já havia sido feito por Azorín (aka José Augusto Trinidad Martínez Ruiz) há cerca de século, quando das festividades de comemoração dos trezentos anos do lançamento da primeira parte do Quijote. As quinze crônicas de Azorín podem ser lidas no portal da Biblioteca Virtual Miguel de Cervantes (clica aqui!) e as crônicas originais de Llamazares podem ser lidas no El País (ambas valem mesmo a pena). São registros curtos, porém potentes, de alguém que sabe prestar atenção a detalhes, a ouvir pacientemente as pessoas com quem se encontra, a escrever como tino de adestrado jornalista e habilidade de experimentado escritor. Das crônicas não brotam apenas os caminhos literários percorridos por Don Quijote, mas também algo da Espanha profunda, mítica, fundamental, de sonho e de fábula, aquela que se reinventa a cada leitura de seu mais notável livro. Quem lembra do livro de Cervantes sabe que seu personagem fez três excursões em sua aventura como cavaleiro andante, vestido com sua armadura improvisada, montado em seu velho Rocinante. Pois Llamazares divide seu livro em três conjuntos de dez crônicas, cada um dedicado a uma das três saídas de don Quijote. Llamazares viaja de carro, sem as dificuldades de Azorín, que viajou de trem e também um bocado a pé. Viajando pelas comunidades autonômicas de Castilla-La Mancha, Aragón e Catalunya, Llamazares para em pequenos povoados, lugarejos que disputam corresponder aqueles pelos quais passaram don Quijote e seu escudeiro, Sancho Panza. Ele faz contato com gente comum, em pousadas, restaurantes simples, postos de gasolina, bares de beira de estrada. Trata-se de um livro fácil de ler. As crônicas têm o frescor de algo bem escrito para serem publicadas em jornais. O autor alterna suas descrições dos caminhos do Quijote com reflexões sobre a Espanha contemporânea, seus dilemas, as continuadas crises, ou a de emprego para os jovens, ou a de identidade europeia, ou ainda a que ameaça a unidade nacional. Em alguns lugares falar de Cervantes e seu personagem parece um diletantismo bobo. Noutros o registro alcança reproduzir o lirismo do livro original. Lê-se o livro de Llamazares e fica-se a pensar se não é uma boa ideia reler o Quijote, experimentar novamente aquele mundo de encantamentos, tentar recuperar algo daquilo que um dia entranhou-se em nossa memória e lá ficou. Já há tempos digo que preciso reler o Quijote, mas a cada ano renego a promessa, ai de mim. Vamos a ver se em 2019 consigo. Vale!
Registro #1353 (crônicas e ensaios #239)
[início 25/11/2018 - fim: 13/12/2018]
"El viaje de don Quijote", Julio Llamazares, Barcelona: Alfaguara (Penguin Random House Grupo Editorial), 1a. edição (2016), brochura 14x20cm, 202 pág. ISBN: 978-84-204-2094-3

sexta-feira, 21 de dezembro de 2018

nas águas desta baia há muito tempo

Há livros que nos encontram por eles mesmos, sem que tivéssemos notícias deles antes, pouco importa quantos anos já tenham passado de sua edição. Há dois ou três meses, vagabundeando por uma livraria paulista, sem medo, sem temor, interessei-me por um livro cujo título é poderosíssimo: "O preto que falava iídiche". Resolvi comprá-lo, mas não me furtei de levar junto seu irmão mais novo, que a seu lado repousava na estante, justamente esse "Nas águas desta baia há muito tempo: Contos da Guanabara". Comecei a ler naquele dia mesmo. Que assombro. Que delicia. Que textos maravilhosos. O autor, Nei Lopes, é um senhor escritor. São 18 contos de fada, 18 mitos revistados, 18 narrativas de estalo, que demonstram o quão poderosa e rica é a língua portuguesa. Para usar uma metáfora de Nei Lopes utilizada no livro, são caudalosos os mares de invenção que podemos singrar quando nos damos conta que brasileiros somos, e que cabe a nós, cada um a seu jeito e maneira, tino e oficio, nos afastar da borda do perene abismo em que vivemos. Somos nietzschianos de nascença. Nei Lopes apresenta ao leitor 18 contos curtos, todos eles brotam de um nome, uma figura mítica, um carioca que viveu tempos atrás. Ele parece sintetizar e emular aquilo que nós, os não cariocas, imaginamos ser próprio dos habitantes daquela antiga capital. Os contos tratam de um período que vai dos anos finais do império e primeiros anos da republica, dos anos 1880 e 1900. Em vários deles ecoam os bombardeios decorrentes de uma das "revoltas da armada", aquelas em questionavam e confrontavam o despótico governo de Floriano Peixoto. A geografia ou cartografia literária dos contos se fixa na baía da Guanabara, nas ilhas do arquipélago interior formado por ela. A baía da Guanabara é um grande mar e suas ilhas e praias a terra prometida dos cariocas. Ao inventar e registrar suas histórias Nei Lopes reescreve um Rio de Janeiro lendário, de fábula. Fala de ruas que tinham outros nomes, usa palavras que tinham outra conotação, registra hábitos de um país que parece diferente do que conhecemos, mas do qual somos certamente metamorfose, nova encarnação, nova persona. Claro, o leitor pode ficar a pensar se aqueles personagens existiram, se tudo aquilo descrito por Lopes aconteceu, se somos mesmo descendentes ou herdeiros deles. Só sabe quem lê. Que aventuras maravilhosas experimentará todo aquele que se aproxime deste poderoso livro. Evoé don Nei Lopes, evoé. Vale!
Registro #1352 (contos #159)
[início 23/10/2018 - fim: 28/10/2018]
"Nas águas desta baía há muito tempo: Contos da Guanabara", Nei Lopes, Rio de Janeiro: Editora Record, 1a. edição (2017), brochura 14x21cm, 270 pág. ISBN: 978-85-01-10913-2

quinta-feira, 20 de dezembro de 2018

o outro lado

"O outro lado", de Aldyr Garcia Schlee, deixa-se ler sem pressa, porém é difícil termos a paciência de abandoná-lo em algum ponto, sem sabermos como sua historieta terminará. Schlee chamou esse seu último livro publicado em vida de "noveleta pueblera". Ele nos informa que o escreveu ainda nos anos 1990, mas resolveu deixá-lo inédito até recentemente pois via nele semelhanças temáticas com um filme de Roberto Benigni, "O pequeno diabo", lançado justamente um pouco antes dele ter finalizado seu livro. Trata-se de uma narrativa curta, onde se fala basicamente de uns poucos sucessos de um casal: um estranho sujeito, José Jacinto, que vive na fronteira entre o Rio Grande do Sul e o Uruguai, e, Marita, sua mulher. Em 22 curtos capítulos o leitor é apresentado é fragmentos das biografias entrelaçadas dos dois: as andanças de José como bom changueiro (transportador, biscateiro) na região dos departamentos do nordeste uruguaio (Cerro Largo e Treinta y tres) e também na cidade de Jaguarão, no sul do Brasil; o encantamento que ele experimentou ao ver uma mulher quando viajava de trem com um grupo de artistas de circo; a forma como ele conheceu e depois fugiu com sua companheira, Marita; as circunstâncias de como ele encontrou dinheiro em um trem e apossou-se esse dinheiro; o passeio que eles dois fizeram a um circo onde ela conheceu o que era um picolé; o dia em que do outro lado do rio, em Jaguarão, viram um trapezista - que bem poderia ser um diabo que cuidava daquela mesma mulher que José viu no trem - cair no palco de um teatro. A novela gravita esses cinco ou seis acontecimentos fundamentais das vidas de José Jacinto e de Marita. O narrador repetidas vezes os descreve, como se fosse um aedo que contasse de forma diferente uma epopeia para seu público, modificando e ajustando as passagens de forma a alcançar um melhor efeito cênico, melhor escandir sua poesia, prender a atenção dos ouvintes. José Jacinto e Marita são quase uma unidade, um casal que se funde, silenciosos e cúmplices em tudo, sem jamais olharem para o passado. Enfim, trata-se de uma história simples, comum, uma metáfora da banalidade de qualquer vida, de qualquer escolha, de qualquer destino. O narrador faz um personagem dizer a José Jacinto que ele "seria muito rico sem sabê-lo". Talvez seja assim com quase todos os homos sapiens, que vivem vidas inteiras fazendo planos, guerreando, eliminando inimigos reais e imaginários, submetendo-se a inúmeras vilezas, sem dar-se conta das maravilhas cotidianas, das cousas que de fato fazem à alma um grande bem. Enfim, cabe registrar aqui que Schlee lançou "O outro lado" há poucos meses (foi em meados de setembro, em sua Jaguarão fundamental) e que morreu no último 15 de novembro. Seguem o rio e o barco. Segue a vida. Vale!
Registro #1351 (novela #72)
[início 08/11/2018 - fim: 12/11/2018]
"O outro lado: noveleta pueblera", Aldyr Garcia Schlee, Porto Alegre: Editora Ar do Tempo, 1a. edição (2018), brochura 14x21cm, 152 pág. ISBN: 978-85-62984-53-2

quarta-feira, 19 de dezembro de 2018

hungry ghosts

"Hungry Ghosts" foi um dos últimos trabalhos de Anthony Bourdain, o prolífico chef, escritor, apresentador de tv, produtor e, também, autor de histórias em quadrinhos. Anthony Bourdain cometeu suicidio em junho deste ano. Um assombro, uma notícia ruim, uma grande perda. Tinha uma vida invejável em muitos e variados sentidos, mas os cães negros da depressão não perdoam ninguém. A Casa del Libro avisou-me que a versão espanhola do livro estava disponível, então encomendei-a o mais rápido que pude. Essa não é a primeira incursão de Bourdain no mundo dos quadrinhos. Já registrei aqui o divertido "Get Jiro!", no qual ele produz uma fusão entre gastronomia, Japão, o mundo dos gângsters e dos westerns americanos. Em "Hungry Ghost" ele repete a parceria com Joel Rose, assinando juntos um roteiro com nove histórias curtas. A criação da parte gráfica das histórias foi dada a oito renomados cartunistas: Sebastian Cabrol, Vanesa Del Rey, Ferancesco Francavilla, Irene Koc, Leonardo Manco, Alberto Ponticelli, Paul Pope, Mateus Santolouco. Sal Cipriano assina  a tipografia e José Villarubia é o responsável pelas cores do álbum. Todas as histórias gravitam o mundo dos fantasmas e espíritos da mitologia budista, histórias do folclore japonês e chinês nas quais todos os seres após a morte experimentam uma espécie de sobrevida animalesca, alimentando-se de emoções e medos daqueles que ainda vivem. Eles tem nomes estranhos: Yokai, Yurei, Obake, Kappa e vários outros. As histórias tratam de obsessões culinárias, de hábitos de alimentação, de regras de etiqueta gastronômica. Apesar do bom tratamento gráfico o resultado é muito irregular. Algumas histórias são de fato algo assustadoras, mas são curtas demais, acabam antes que a narrativa produza um devido clima de encantamento e magia. O livro inclui cinco receitas assinadas por Bourdain, pratos com os quais alguns dos fantasmas famintos poderiam se fartar. Não cheguei a experimentar nenhuma das receitas. Vamos a ver se me animo a fazê-lo um dia destes. Bueno. Grande Bourdain. Era mesmo divertido acompanhá-lo em suas viagens mundo afora. Good night sweet Prince!
Registro #1350 (graphic novel #72)
[início 15/11/2018 - fim: 17/11/2018]
"Hungry Ghosts", Anthony Bourdain e Joel Rose (roteiro), Sebastian Cabrol, Vanesa Del Rey, Ferancesco Francavilla, Irene Koc, Leonardo Manco, Alberto Ponticelli, Paul Pope, Mateus Santolouco. Sal Cipriano, José Villarrubia (colorista), Madrid: Medusa Cómics (Editorial Hidra), 1a. edição (2018), capa-dura 17,5x26,5cm, 128 pág. ISBN: 978-84-17390-72-31-401-22827-9 [edição original: Anthoy Bourdain's Hungry Ghosts (New York: Berger Books) 2018]

terça-feira, 18 de dezembro de 2018

entre as estrelas: aquiles

Marcílio Moraes é escritor e dramaturgo experimentado, co-autor ou autor de várias novelas, minisséries e outros programas de televisão, tendo também produzido cousas para o teatro e o cinema. "Entre as estrelas: Aquiles" é seu segundo romance publicado (o primeiro foi "O crime da Gávea", adaptado para o cinema no ano passado). Dá leitura desse seu "Entre as estrelas" percebe-se que Marcílio escreve sobre o que conhece muito bem. O romance gravita o mundo da produção de telenovelas, as disputas de poder e os egos em fúria de roteiristas, diretores, empresários e atores, as fofocas de jornal, as intrigas dos funcionários que ambicionam prejudicar ou se envolver com os atores. Há um jogo bacana no livro, que é a progressiva confusão entre o que é ficção, invenção, e o que é realidade, espelhando aquilo que todos aqueles que um dia se interessaram por novelas sabem muito bem. O cenário é obviamente o Rio de Janeiro, mas a cidade não chega a aparecer muito, é um personagem coadjuvante, que se não faz feio, não é devidamente explorada. O romance é escrito basicamente na forma de diálogos rápidos, sem muita descrição. Claro, o narrador faz com o que o leitor saiba tudo o que importa sobre os sucessos da trama. O protagonista é João Carlos, um autor de telenovelas que entra em conflito com o diretor da produção e demais superiores por conta de uma atriz. Aprendemos algo sobre a rotina e o ritmo das produções televisivas, os bastidores obviamente nada glamourizado deste ofício. João já escreveu uns vinte capítulos e as filmagens já começaram, mas a atriz com quem ele esperava flertar através da novela é escalada para uma outra, que está com problemas de audiência. Desta situação a narrativa se resolve cronológica e rapidamente, em pouco mais de cinco dias (há um avanço temporal no final do livro, mas apenas para amarrar as pontas soltas da história. Apesar de previsível o romance é bem escrito. Marcílio faz seu João bastante cabotino, afetado, que não disfarça uma cultura que se já foi sofisticada afogou-se nas profundezas do entretenimento popular, onde fórmulas, clichês e situações previsíveis são as que fazem mais sucesso. Isso humaniza o personagem e dá verossimilhança ao livro. Enfim, o romance de Marcílio tem força por conta deste sarcasmo velado, como se ele estivesse piscando o olho para o leitor, fazendo-o cúmplice deste deboche. De qualquer forma,  trata-se de um romance honesto, que oferece entretenimento e boas horas de diversão, como toda boa novela (mas se você realmente gostar de novelas vai divertir-se mais). Vale!
Registro #1349 (romance #353)
[início 11/09/2018 - fim: 13/09/2018]
"Entre as estrelas: Aquiles", Marcílio Moraes, Rio de Janeiro: 7Letras1a. edição (2018), brochura 14x21, 140 pág. ISBN: 978-84-421-0639-8

segunda-feira, 17 de dezembro de 2018

os embaixadores

Em uma avenida de Porto Alegre, de cujo nome não quero lembrar-me, vivem, não há muito, um casal de amáveis anfitriões que costumam conjurar, de tempos em tempos, encantamentos e alegrias para seus convidados, enredando-os em maravilhas, inebriando seus sentidos, cercando-os de mimos, fazendo com que cada um e todos ao mesmo tempo, sintam-se ali especialmente acolhidos, com se estivessem em um palácio das mil e uma noites, em um altar de fábula. Pois esse ritual repetiu-se na noite do último oito de novembro, quando o Luiz-Olyntho e a Glória receberam um petit groupe em sua casa, logo após o lançamento de "Os embaixadores", livro mais recente de Luiz-Olyntho, que havia acontecido na Feira do Livro de Porto Alegre. Trata-se de um livro de ensaios, sobre onze autores gaúchos que são identificados como diplomatas das letras, embaixadores da boa literatura que se pratica no Rio Grande do Sul. No total o livro enfeixa dezessete ensaios. Acho que quase todos podem ser encontrados no  site tellesdasilva.com.br, mas sete deles já haviam sido publicados em livro, jornais ou revistas acadêmicas. De qualquer forma, para essa edição, todos os textos foram reescritos. O livro funciona como um guia de leituras de autores gaúchos fundamentais, autores que em algum momento chamaram sua atenção. Não são reflexões ligeiras, superficiais. O leitor encontra ponderações refinadas, ricas exegeses, minuciosa crítica. Antes de descrições definitivas dos livros sobre os quais fala, ele parece convidar os próprios autores e os eventuais leitores à interlocução, como em uma tertúlia espiritual. Quem já está familiarizado com o estilo habilidoso de hermeneuta que Luiz-Olyntho é, voltará a encontrar sua costumeira miríade de associações, não apenas entre os textos que lê e compara com o mundo dos livros, da ficção, mas também com os mundos da psicanálise e da clínica, da mitologia, filologia e história. De fragmentos e detalhes que ele resgata de seu passado brotam provocações, esclarecimentos, ideias, verdadeiras iluminações. Aprende-se um bocado. Enfim, os embaixadores do título são Luiz Antonio de Assis Brasil, Maria Carpi, Berenice Sica Lamas, Hilda Simões Lopes, Ana Mariano, Lenir de Miranda, João Simões Lopes Neto, Aldyr Garcia Schlee, Donaldo Schüler, Armindo Trevisan e Erico Veríssimo. Todavia, é certo que o Luiz-Olyntho pode também ele ser considerado um senhor embaixador, que bem apresenta seus colegas aos demais leitores. Evoé LOTS, EvoéVale!
Registro #1348 (crônicas e ensaios #238)
[início 08/11/2018 - fim: 15/12/2018]
"Os embaixadores", Luiz-Olyntho Telles da Silva, Porto Alegre: Editora Movimento, 1a. edição (2018), brochura 14x21, 296 pág. ISBN: 978-85-7195-283-6

domingo, 16 de dezembro de 2018

vira-lata de raça

O admirável Ney Matogrosso conta sua história em um dos livros mais bacanas que li este ano. "Vira-lata de raça" é um livro de memórias, um conjunto de depoimentos, organizado por Ramon Nunes Mello, um jovem poeta e jornalista carioca. São nove capítulos. Nos quatro primeiros os depoimentos seguem numa ordem cronológica: (i) infância e juventude, em que acompanhava a família em constantes mudanças (ele nasceu em 1941 no Mato Grosso e seu pai era militar); (ii) os anos 1960, em que já emancipado viveu no Rio de Janeiro e em Brasília; (iii) os anos rápidos do sucesso com o grupo Secos e Molhados, no início dos anos 1970; e (iv), por último, os anos imediatamente posteriores a seu afastamento do grupo e o início de sua carreira solo. Os cinco capítulos restantes são aproximadamente temáticos: (v) um dedicado a seu relacionamento com Cazuza; (vi) um sobre a sexualidade, a AIDS, a perda de amigos; (vii)  um sobre autoconhecimento, religião, espiritualidade; (viii) um sobre política e seu apoio específico a causas sociais; e o último, (ix), sobre o tempo, a vida e a liberdade (valor que ele mais preza). Claro, há superposição de assuntos, informações, episódios de sua vida, mas o formato adotado pelo organizador na produção do livro realmente torna a leitura muito agradável e emocionante. O tom é confessional, mas o sujeito que fala o faz com segurança, posiciona-se, sabe ser bem humorado e debochado. O livro é muito bem editado, incluindo muitos mimos: dezenas ilustrações, várias delas coloridas; seis boas matérias publicadas originalmente em jornais em períodos marcantes de sua carreira, assinadas por sujeitos que conhecem muito bem sua vida e sua obra (Tárik de Souza, Nelson Motta, Vinícius Rangel Souza, Caio Fernando Abreu, Luiz Rosemberg Filho, Mauro Ferreira); uma detalhada discografia e uma generosa bibliografia. Os capítulos oferecem ao leitor várias epígrafes e aforismos retirados das canções mais conhecidas dele. Impressionante a clareza e a segurança com que ele fala de qualquer assunto, nada parece constrangê-lo, nenhum fragmento de memória soa artificial, falso, seja quando ele fala da vida pessoal, de questões sociais brasileiras, de dinheiro, drogas, sexo, amor, religião ou morte. Trata-se mesmo de um artista notável, de um brasileiro digno e talentoso, que merece o perene reconhecimento e o sucesso que alcançou nestes seus quase 80 anos. Vale!
Registro #1347 (perfis e memórias #84)
[início 05/11/2018 - fim: 07/11/2018]
"Ney Matogrosso: Vira-lata de raça", Ney Matogrosso, interlocução, pesquisa e organização de Ramon Nunes Mello, São Paulo: Tordesilhas (Alaúde editorial), 1a. edição (2018), brochura 12x18 cm., 288 págs., ISBN: 978-85-8419-083-6

sábado, 15 de dezembro de 2018

uma mensagem para o século xxi

Se há uma coisa que Isaiah Berlin nos ensina é que um indivíduo que estude algum assunto e pretende produzir reflexões sobre esse assunto necessariamente precisa ser honesto intelectualmente. Não com os demais, os leitores, mas honesto consigo mesmo. Os dogmas, as utopias e distopias autoinduzidas, a escravidão mental, não ajudam ninguém a entender verdadeiramente o quê é o ser humano. O leitor encontra no volume dois ensaios curtos. No primeiro, The Pursuit of the Ideal, Berlin fala de sua biografia, de sua jornada pelo mundo do conhecimento. Sua curiosidade intelectual levou-o ao estudo da variabilidade das idéias sobre as visões de mundo que incorporam valores (valores como a descoberta da verdade, os objetivos e razões que justificam as ações humanas, a evolução e a essência da ética aplica a sociedade). Berlin fala de crenças humanas que mostraram-se limitadas: a de que havia soluções para os problemas humanos através da aplicação de métodos racionais, que a essência de cada sociedade pudesse ser transformada, fala do ideal platônico (a de que todas as perguntas genuínas deveriam ter uma única resposta verdadeira), do sonho da razão, da noção de progresso. Depois falar dos gregos também fala de Maquiavel, de Vico, de Herder, entre tantos outros, autores que articulam pensamentos que progressivamente demonstram a incompatibilidade entre valores de distintas culturas e entre distintos momentos históricos. Há uma pluralidade de valores tão grande quanto o há de civilizações ele diz, mas é possível entender racionalmente os valores de outras culturas e até respeitá-los. Valores necessariamente devem ser entendidos para que seja possível a comunicação. Enfim, os valores podem ser verdadeiros porém incompatíveis, não existe equanimidade automática entre eles. De fato o choque entre valores e a essência deles é a nossa própria essência como homo sapiens. Cada escolha implica em perdas. Objeções intelectuais a uma ideia de perfeição são exaustivas, mas há objeções psicológicas que são ainda mais limitantes. Uma solução nova pode gerar problemas novos, ainda maiores. O otimismo metafísico dos marxistas é injustificável, incoerente, impraticável. O futuro não nos sorri automaticamente ou por nosso desejo, diz ele (invertendo o aforismo do Manifesto Comunista). A fé cega em totalitarismos só produziu uma montanha de cadáveres, mas há aqueles que parecem padeçer de uma espécie de Alzheimer moral que os impede de enxergar e aceitar a responsabilidade dos regimes totalitários por essa sempre crescente montanha de cadáveres (e há até aqueles que os justifique, como se tortura de esquerda, por exemplo, não produzisse desconforto físico e morte). Claro, ele lembra do necessário processo de adestramento que devemos ter para - como por exemplo, no caso da luta contra o nazismo ou qualquer outra ditadura - nos tornar profetas armados e praticar o mal. Igualmente forte é sua denúncia dos altares abstratos onde são sacrificados milhões de seres humanos, altares totalitários que só produziram agonia e morte. Apesar do tom pessimista, ele verdadeiramente acredita na capacidade humana de aprender (desde que seja honesta consigo mesmo). O segundo texto, A Message to the Twenty-First Century, é uma ode ao futuro. Berlin, nascido em 1909, homem que experimentou quase tudo na vida ao longo do século XX lamenta não poder conhecer dos espantos que certamente o século XXI produziria. Neste texto faz-se um balanço do século XX. Para ele duas coisas o marcaram especialmente. Ele louva os avanços da tecnologia, da técnica, das Ciências Naturais e condena o mundo que desdobrou-se a partir da Revolução Soviética de 1917. A sombra da tirania e da morte que seguiu se ao exercício do socialismo na União Soviética marcou indelevelmente o século. Países inteiros, tiranetes de infinitos matizes, gerações de militantes que mais parecem escravos mentais, reproduziram e justificaram toda a sorte de assassinatos e violência. Liberdade e busca da felicidade nem sempre podem ser simultaneamente alcançadas. Todavia, mesmo confessando-se um pessimista profissional há tantas décadas, acredita que devemos ser otimistas com as possibilidades do alvorecer do novo século, não apenas com devido as novas tecnologias, mas também por conta dos avanços no pensamento gerado nas áreas humanas. Livro importante e seminal. Eu, mais pessimista que ele penso que o pobre homem talvez não estivesse preparado para a  legião de escravos mentais que povoariam esse planeta.nos vinte anos que já se passaram desde sua morte (em 1997). Paciência. Vale!
Registro #1346 (crônicas e ensaios #237)
[início 01/10/2018 - fim: 31/10/2018]
"Uma mensagem para o Século XXI", Isaiah Berlin, tradução de Pedro Fonseca, Belo Horizonte: Editora Âyiné (coleção Biblioteca Antagonista #01), 1a. edição (2016), brochura 12x18 cm., 72 págs., ISBN: 978-85-92649-01-29-6 [edição original: A Message to the Twenty-First Century e On the Pursuit of the Ideal (New York: The New York Review of Books) 1988 e 1994]

sexta-feira, 14 de dezembro de 2018

ler e escrever

Nesse pequeno livro estão reunidos três ensaios curtos de V.S. Naipaul, prêmio Nobel de literatura de 2001. Um dos ensaios corresponde ao discurso de aceitação do premio Nobel (Two Worlds), outro foi produzido por encomenda, em homenagem a um amigo de Naipaul, Charles Douglas-Home (Ler e escrever). O terceiro ensaio não está identificado na edição, mas encontrei nos francos domínios da internet que à exemplo do anterior foi publicado em uma edição de 1999 do "The New York Review of Books" (The Writer in India). Pois no ensaio que dá nome ao livro, Ler e escrever,  Naipaul apresenta uma biografia sintética, fala de sua história de vida, de como tornou-se escritor, sobre o processo de sua educação e emancipação familiar, suas primeiras viagens e o impacto da recepção de seus primeiros livros publicados. Naipaul nasceu em Trinidad, quando essa ilha do Caribe era possessão do império britânico, em uma família de imigrantes hindus. Posteriormente emigrou para a Inglaterra e lá viveu até sua morte, em agosto deste funesto 2018. Apesar do autobiográfico, com menções sobre a influência literária de seu pai, que ambicionava tornar-se escritor ao tentar contar algo de seu passado na Índia, Naipaul fala objetivamente de seu oficio, do processo de invenção de suas primeiras histórias, de sua busca de uma voz literária que fosse potente o suficiente para criar algo genuinamente humano, fala das metamorfoses que todo escritor precisa experimentar para manter-se honesto, criativo e forte. O segundo ensaio, O escritor na Índia, continua o anterior e trata de um segundo momento de sua carreira literária, Naipaul quer conhecer algo de seu passado, à exemplo do pai. Parte em longas viagens pelas cidades e regiões anteriormente dominadas pelo império britânico que tinham relação com sua vida. Trata-se de um olhar para o passado, o passado da Índia colonial, da estranheza entre hindus e muçulmanos, mas ele fala da particular força da forma romance, único gênero que é potente o suficiente para explicar os homens contemporâneos. Fala também sobre o poder do cinema em sua formação literária, na forma como ele aprendeu a criar narrativas. O terceiro e último texto corresponde ao discurso de aceitação do prêmio Nobel.  É uma peça devidamente solene, mas um discreto bom humor aparece nas entrelinhas. Ele usa idéias originais de Proust sobre o oficio da escrita para explicar suas escolhas literárias, fala que um escritor necessariamente só pode escrever sobre algo que conheça muito bem, ou que tenha produzido impactos psicológicos e até físicos importantes. Escrever superficialmente é caminho seguro para o fracasso. "Para cada tipo de experiência existe uma forma literária adequada", diz ele. Perto do final do discurso, que louva os caminhos de entendimento do tempo alcançados por Proust (que ele contrasta com a quebra de seu relógio de pulso), Naipaul fala dos perigos que o uso literário/jornalístico de fórmulas e jargões acaba transformando questões importantes e reais da vida das pessoas em abstrações, em conceitos inúteis, fazendo com que as pessoas passem a não ter causas propriamente, mas sim apenas inimigos. Há uma solene sabedoria nestas palavras. Ao terminar o pequeno livro lembrei da Sibele e da viagem que ela fez para a Índia, com um de seus filhos adolescentes, que havia escolhido como presente de 15 anos conhecer o continente indiano. De ter sido uma experiência dos diabos. Grande Sibele. Vale!
Registro #1345 (crônicas e ensaios #236)
[início 17/10/2018 - fim: 20/10/2018]
"Ler e escrever", V.S. Naipaul, tradução de Rogério Galindo e Sandra Martha Dolinsky, Belo Horizonte: Editora Âyiné (coleção Biblioteca Antagonista #24), 1a. edição (2017), brochura 12x18 cm., 124 págs., ISBN: 978-85-92649-29-6 [edição original: "Reading and Writing - a personal account" e " The Writer and India (New York: The New York Review of Books) 1999 / "Two Words" - Acceptance Speech 'The Nobel prizes, editor Wilhelm Odelbert (Stockholm: Nobel Foundation) 2001 ]

quinta-feira, 13 de dezembro de 2018

a leitura das cinzas

Li os poemas de Jerzy Ficowski reunidos em "A leitura das cinzas" na mesma época em que lia o impressionante ensaio de Joseph Czapski, "Proust contra a degradação". Esses dois senhores poloneses, cada um a seu modo e com suas distintas nobres artes, engrandeceram seu país. Czapski lutou nas forças regulares polonesas e foi prisioneiro dos russos durante a segunda grande guerra; Ficowski lutou como membro da resistência polonesa neste período e foi prisioneiro dos nazistas. Sobreviveram por acaso. Poderiam ter sido somados a milhões de mortos. Com a ascensão do comunismo na Polônia ambos foram censurados e perseguidos. No caso de Ficowski sua obra poética, ensaística e tradutória granjeou a ele respeito e admiração oficial na Polônia apenas já no final de sua vida (ele morreu no inicio deste século XXI), muito embora era reconhecido fora de seu país desde os anos 1980. Ficowski suportou o antissemitismo por décadas e é especialmente conhecido por ter produzido poemas sobre o Shoah, o extermínio dos judeus nos campos de concentração nazistas, e também por ter salvo do esquecimento a obra de Bruno Shulz, admirável escritor e pintor polonês. Os poemas reunidos em "A leitura casa cinzas" tratam exatamente do Shoah. São 25 peças poéticas, que demonstram um poeta que transforma uma das cousas mais abomináveis já perpetradas pelo homo sapiens em arte sublime, em um registro que evita um segundo assassinato, um segundo holocausto, que seria o da memória. Testemunha da tragédia e capaz de dar sentido poético a toda aquela selvageria, Ficowski nos fala das crianças judias no gueto, dos infinitos instantâneos da morte, dos vestígios que restam da cultura judaica na Polônia comunista, das cinzas que calcinaram aquele povo. A edição é bilingue e a tradução assinada por Piotr Kilanowski, polonês radicado no Brasil há 30 anos. Em uma boa introdução Piotr nos ensina sobre as dificuldades tradutórias que enfrentou, as escolhas que fez. Cada poema é acompanhado de notas curtas porém muito ricas, que explicam para o leitor a razão de certos assombros e eventuais enigmas. Gostei dos poemas, mas o que mais me tocou foi um sem título, que segue assim: "Muranów se ergue / sobre camadas do morrer / a fundação apoiada em osso / os porões nas valas esvaziadas de gritos // Foi ou não foi está como está // Há uma calmaria de gemidos removidos / halo negro do fogo defunto / Muranów firmemente plantado / na sepultura da memória / a maioria das cartas chega // Foi ou não foi está como está // E eu como ele elevado / até a superfície das cinzas / sob as estrelas de vidro estilhaçado // Foi ou não foi está como está // eu queria apenas calar / mas calado minto / eu queria apenas andar / mas andando pisoteio."  Cabe registrar que Muranów é um bairro de Varsóvia, no qual se encontrava grande parte do terreno do gueto judaico, totalmente destruído após o levante de 1943 e deliberadamente reconstruído após a grande guerra de forma a não permitir que os vestígios da vida no gueto e da matança ali acontecida fossem um dia recuperados. Impressionante e forte livro. Vale!
Registro #1344 (poesia #102)
[início 28/10/2018 - fim: 08/11/2018]
"A leitura das cinzas", Jerzy Ficowski", tradução de Piotr Kilanowski, Belo Horizonte: Editora Âyiné (coleção Das Andere #4), 1a. edição (2018), brochura 12x18 cm., 160 págs., ISBN: 978-85-92649-34-0 [edição original: "Odczytanie popiolow" (London: Association of Jews of Polisch Origin in Great Britain) 1979]

segunda-feira, 10 de dezembro de 2018

cavalos de cronos

Foi só no inicio de 2018 que li "A árvore que falava aramaico", excelente livro de contos de J. F. Botelho, que havia ganho o prêmio Açorianos de contos em 2012 e do qual nunca havia tido notícia. Lembro-me da surpresa de encontrar no livro histórias bastante inventivas e uma linguagem cheia de mimos, exuberância, cousas difíceis de serem bem enfeixadas na literatura brasileira contemporânea. Recentemente Botelho publicou uma nova coleção de contos: "Cavalos de Cronos". Ele divide sua proposta em dois conjuntos, um dito "A  terra soturna", outro chamado "Os encontros infernais". Em ambos novamente se destacam uma imaginação dos diabos e uma linguagem riquíssima. Ojo! Talvez haja um excesso no dedilhado barroco da linguagem, mas já sabemos que é possível mesmo por esse caminho alcançar o bom palácio da sabedoria. Faço esse reparo pois talvez um neófito leitor se afogue no texto, embriagado pela vertigem de imagens, figuras de linguagem, associações ricas e potentes, léxico vasto e inusual. Os quatro contos do primeiro conjunto (A terra soturna) têm como orografia os campos neutrais entre o Rio Grande do Sul e o Uruguai. São quatro narrativas curiosas: "Uma história bem contada", na qual um casal segue pistas de um texto mítico (e a mulher parece uma musa encarnada ou uma metáfora do ofício criativo envolvido na ficção); "Cavalos de Cronos", que dá nome ao livro e envolve três jovens, que após terem fugido de uma batalha são emboscados por um traidor (e dão chance para que um digno cavalo faça uma escolha moral); "O silêncio dos campos", no qual um casal enfrenta os cães negros da depressão numa tapera perdida no pampa; e "Coturba dos Ermos", no qual pai e filho se reencontram para novamente se separarem, após uma espécie de travessia, que lembra algo do ritmo de Cormac Mccarthy). Pois nestas quatro historias o pampa faz as vezes de um mar, no qual os personagens de Botelho singram e passam por provações. Os seis contos reunidos no segundo conjunto (Os encontros infernais) são mais mágicos, ambientados em cidades imaginárias ou distantes, espacial e/ou temporalmente, fazendo o leitor viajar à China do imperador Wu, no século II a.C. (O imperador de bambu); ao Oriente Médio de Simão Estilita, no século V (Simeão do Deserto); a uma cidade duplicada, Mirador, onde dois destinos possíveis parecem coabitar e se comunicar por meio de um criado mudo, devidamente destruído numa espécie de Auto-de-Fé canettiano (Neste mundo); a uma ilha distópica, onde tudo é regrado e proibido - e que lembra os mundos de Jonathan Swift (Os deuses de Tingitana); ao Mediterrâneo dos tempos das cruzadas (Romance do Cativo e da Mourisca); à Roma dos tempos das guerras púnicas (O sonho de Catão). Botelho da pistas de sua Yoknapatawpha fundamental, que ele chama de Mirador, o lugar imaginado de onde brotam parte de suas histórias (valeria a pena discutir com ele uma eventual camada psicanalítica desta criação: a cidade, que vê a passagem dos homens, e o narrador, que observa e cria os destinos deles). Uma "Sesmaria dos Lopes", não muito distante desta cidade imaginada, amplia o horizonte onde habitam seus personagens, sendo que os Lopes, citados em vários contos, lembram os Snopes faulknerianos. Dois contos,"Romance do Cativo e da Mourisca" e "Simeão do Deserto", parecem ser cantos de um projeto maior e futuro, dito "A Jangada de Caronte", um poema épico talvez, que enfeixe as influências literárias e estéticas de Botelho. Já falei do barroco da ourivesaria dos contos, mas cabe acrescentar o rosário de mitos literários, a notável linguística campeira, o compêndio dos hábitos e regras mundanas gaúchas, os vaticínios bíblicos incorporados às narrativas, o surgimento recorrente de duplos, espelhos, bibliotecas, o elogio aos livros e à leitura. Difícil dizer qual dos contos é o mais bem resolvido. Cada leitor encontrará o seu. Vale!
Registro #1343 (contos #148)
[início: 22/11/2018 - fim: 28/11/2018]
"Cavalos de Cronos", José Francisco Botelho, Porto Alegre: Zouk editora, 1a. edição (2018), rochura 14x21 cm., 192 págs., ISBN: 978-85-8049-073-2

segunda-feira, 5 de novembro de 2018

a culinária caipira da paulistânia

Carlos Alberto Dória é doutor em sociologia e um dos maiores especialistas sobre a história rica e variada da culinária brasileira. Dele já li o pequeno porém poderoso Formação da culinária brasileira, livro que me foi sugerido pela Heloísa, amiga querida, já há tantos anos. Nesse volume, "A culinária caipira da Paulistânia",  recém publicado, ao leitor são oferecidas duas formas de familiarizar neste vasto assunto: o caminho da análise acadêmica e o caminho das receitas e produtos desta culinária. Na primeira abordagem Dória parte de sua tese central, que é a definição do que pode ser entendido como culinária caipira, para apresentar um panorâmico registro de sua história, evolução e os atributos quase míticos que hoje possui. Trata-se de uma espécie de arqueologia, a procura de registros de algo que em grande parte se perdeu, metamorfoseou-se, talvez seja melhor dizer. A Paulistânia é um enorme território, que abrange hoje a totalidade dos estados de São Paulo, Minas Gerais, Goiás, Mato Grosso, Mato Grosso do Sul, Paraná, Santa Catarina e partes dos estados do Rio de Janeiro, Espírito Santo e Rio Grande do Sul. O elemento central e inicial desta culinária é o uso do milho e suas farinhas, em contraposição às farinhas de mandioca, que reinavam nas demais regiões do país. A maior facilidade de processamento das farinhas de milho possibilitou que indígenas autóctones da Paulistânia (sobretudo guaranis), depois os mamelucos, e ainda depois que os ditos bandeirantes, promovessem a lenta e grande expansão das fronteiras do Brasil, ainda na primeira fase colonial, definindo esta região como um território gastronômico. Dória fala da dieta indígena, cartografa a geografia desta culinária, fala de história e sociologia, define o sítio (que é algo diferente de uma fazenda), a casa e a comida que ali se produzia, fala dos produtos que eram utilizados e sua evolução. Apesar de ser um trabalho apresentado com todo um rigor acadêmico trata-se de um livro fácil de ler, é muito bem escrito e inventivo. O livro inclui extensas notas, vários mapas, uma robusta bibliografia e um fundamental índice, que ajuda o leitor a percorrer o livro em busca de conceitos e definições. A segunda parte do livro, a segunda abordagem que é oferecida ao leitor, é também assinada por Marcelo Corrêa Bastos, chef e proprietário de restaurantes em São Paulo. Carlos Dória apresenta um vasto conjunto de produtos e técnicas culinárias que são episodicamente comentadas por Marcelo Bastos em curtos parágrafos. Não se tratam propriamente de receitas, antes sim de registros sobre como se preparavam o desjejum, os cozidos e as caças; o milho, o arroz e o feijão; as conservas, os refogados e os mexidos; as farofas, as frituras e os empadões, biscoitos e pães. Além desses produtos os autores descrevem algo das tecnologias afeitas à culinária: a evolução dos fogões, as técnicas de refrigeração, as máquinas de processamento e moagem, a seleção de sementes, a logística, o sistema de vendas e distribuição de produtos. Na conclusão Dória produz uma coda amarga ao livro, aquela que identifica a cozinha realmente caipira como uma ilusão, uma miragem somente acessível por meio da arqueologia de algo que já se perdeu, que é conhecido e praticado por poucos. A explicação para este distanciamento é complexa, associada ao falso refinamento decorrente da rápida industrialização de São Paulo e a chegada de imigrantes europeus na segunda metade do século XIX, a pasteurização do gosto, a necessidade que qualquer povo tem de reinventar seu passado, idealizando-o. Bueno. Aprende-se um bocado neste livro. Um leitor curioso pode experimentar a prosa de Dória em seu blog (e-Boca livre). Vale! 
Registro #1342 (gastronomia #34) 
[início: 22/10/2018 - fim: 26/10/2018]
"A culinária caipira da Paulistânica", Carlos Alberto Dória, Marcelo Corrêa Bastos, São Paulo: Editora Três Estrelas (Grupo Folha), 1a. edição (2018), rochura 14x21 cm., 368 págs., ISBN: 978-85-68493-53-3

sábado, 27 de outubro de 2018

sabotaje

Com "Falcó" Arturo Pérez-Reverte começou sua série de volumes dedicados aos anos de ascensão do franquismo. Os sucessos gravitavam uma fictícia tentativa de resgate José Antônio Primo de Rivera, líder dos falangistas, logo no início da guerra civil, em novembro de 1936. "Eva", o segundo volume da série, se passavam em Tánger, no Marrocos, no início de 1937. No recentemente publicado "Sabotaje", Pérez-Reverte faz o tempo avançar uns poucos meses deste mesmo ano, para o início do verão europeu. A nova missão de Falcó envolve eliminar um francês, Leo Bayard, sofisticado brigadista internacional que apóia os republicanos na guerra civil. Simultaneamente, ele deve sabotar um quadro que Pablo Picasso pintava por aqueles dias, o impressionante Guernica, que todos conhecemos, sabemos que está exposto no Centro de Arte Reina Sofia, em Madrid, incólume e digno, ainda cumprindo seu papel de ícone contra o militarismo, sua força expressiva ainda manifestando repúdio à violência e os horrores da guerra, de todas as guerras. Como sempre nos livros de Pérez-Reverte a narrativa é acelerada, cheia de reviravoltas, deliciosas tramas paralelas, algum sexo, uma miríade de referências cinematográficas e chistes, de forma que dificilmente o leitor alcança abandoná-lo. Falcó é um anti-herói, alguém que luta contra um governo legítimo, ao lado de quem aprendemos identificar como fascistas, mas Pérez-Reverte soube dar matizes a seu protagonista, que é mais que um cínico, que um niilista, e faz o leitor aceitar que em situações complexas nem sempre é possível identificar todos os personagens como bons ou ruins, e todas as ações como absolutamente certas ou erradas, justificáveis ou condenáveis. Fascistas, comunistas, anarquistas, trotskistas, nacionalistas e tantos outros combatentes da guerra civil se equivalem, são capazes de atos vis ou honrados, de serem morais ou desonestos. Afinal, o ser humano vive sempre num carrossel de sentimentos contraditórios. Pérez-Reverte faz de Lorenzo Falcó uma espécie de James Bond dos anos 1930, um mestre da ironia, que sabe entender rapidamente a psique de seus interlocutores, agir da forma mais eficiente para cumprir suas tarefas. Não me cabe detalhar aqui os sucessos desta aventura, já que toda a graça do livro está em saber justamente como ele falhará em seu intento de destruir Guernica, como não será capaz de impedir Picasso de finalizá-lo. Ao terminar o volume, para mim o melhor dos três até aqui editados, já esperava encontrar a notícia de que algum outro está em produção. Mas talvez não seja o caso de ser tão açodado. Um escritor pode se aborrecer com personagens que teimam em roubar tempo e atenção. Estes três volumes foram lançados em menos de um ano, parecem ter sido escritos simultaneamente até. De qualquer forma a guerra civil factual ainda seguirá violenta e dura por mais um ano e meio, até abril de 1939. E depois dela haverão os horrores da segunda grande guerra, os anos da ditadura de Franco, e os da redemocratização espanhola. Falcó, que tem pouco mais de 35 anos neste volume poderia ser testemunha disto tudo. Será que Pérez-Reverte dará vida longa a seu personagem, o fará continuar suas aventuras? Logo veremos. Vale! 
Registro #1341 (romance #352) 
[início: 17/10/2018 - fim: 21/10/2018]
"Sabotaje", Arturo Pérez-Reverte, Barcelona: Alfaguara / Penguin Random House Grupo Editorial, 1a. edição (2018), capa-dura 16x24,5 cm., 373 págs., ISBN: 978-84-204-3245-8

quinta-feira, 18 de outubro de 2018

instruções para os criados

O irlandês Jonathan Swift viveu entre 1667 e 1745. É bastante conhecido por seu livro "Viagens de Gulliver", sobre o qual mesmo quem nunca o leu verdadeiramente pode dizer que conhece e eventualmente gosta. É reconhecido como um dos maiores satiristas da língua inglesa. "Instruções para os criados" é - como o título promete - um conjunto regras dirigidas aos serviçais de um senhor (trata-se de trabalho ficcional produzido na primeira metade do século XVIII, portanto não há razão para que termos politicamente corretos do século XXI, como colaboradores, trabalhadores ou cousa que o valha, sejam aqui hipocritamente utilizados). Apesar de haver registros da existência dessas instruções desde 1731, elas somente foram publicadas postumamente. As instruções correspondem a regras gerais para todos os criados e instruções específicas para cada um, do mordomo a cozinheira, do lacaio ao cocheiro, e assim por diante, para porteiro, aia, leiteira, ama, governanta e todos os demais (a lista alcança dezesseis indivíduos, Swift foi deão da catedral de São Patrício boa parte de sua vida adulta, deve ter tido mesmo muita gente trabalhando para si). Não é fácil ler esse ensaio satírico de uma vez só. Claro, é brutalmente engraçado, cínico à exaustão, inverte todos os sinais do que possa ser certo ou errado no desempenho das tarefas do dia a dia dos criados, mas é muito repetitivo. O humor ácido sempre indica como correto exatamente o contrário daquilo que o senhor espera que seja realizado, para sua saúde física ou economia financeira. Nas primeiras instruções a narrativa funciona, o sarcasmo provoca um mais que um esgar, mas logo o acúmulo de clichês passa a incomodar o leitor. Desisti deste livro várias vezes, mas minha curiosidade sobre o alcance da verve ferina de Swift sempre foi mais forte. Enfim, divertido, porém só em pequenas doses, um pouco de cada vez. Vale! 
Registro #1340 (crônicas e ensaios #235) 
[início 01/10/2018 - fim: 06/10/2018]
"Instruções para os criados", Jonathan Swift, tradução de Priscila Catão, Belo Horizonte: Editora Âyiné (coleção Biblioteca Antagonista #4), 1a. edição (2016), brochura 12x18 cm., 133 págs., ISBN: 978-85-92649-04-3 [edição original: "Directions for servants" (London: R. Dodsley and M. Copper) 1745]

quarta-feira, 17 de outubro de 2018

sobre o exílio

Nesse pequeno livro estão enfeixados três ensaios curtos de Joseph Brodsky, o poeta russo que recebeu o prêmio Nobel de Literatura de 1987. Já conhecia os três ensaios (já registrei aqui minhas impressões sobre o bom "On grief and reason"), mas sempre é bom reler cousas bem escritas. "A condição chamada exílio" foi produzido originalmente para uma conferencia sobre exilados em Viena, no final de 1988. "Uma face incomum" corresponde ao discurso de aceitação do prêmio Nobel, pronunciado na cerimônia de entrega dos prêmios em Stockholm, em dezembro de 1987. O último, um tanto menor, corresponde ao dito "discurso do banquete", pronunciado em um almoço na prefeitura de Stockholm, menos formal, solene, e que antecede a cerimônia noturna de entrega dos prêmios. Os três ensaios podem ser encontrados em inglês, ou no site da Fundação Nobel (Discurso de aceitação; Discurso do banquete), ou no site da The New York Review of Books (Exílio). Pois é a questão do exílio que paira perene nos três ensaios, nos três discursos. São ponderações de um sujeito que não apenas sabe se expressar com muita exuberância e clareza, mas de alguém que experimentou o cárcere e o isolamento por muitos anos antes de finalmente alcançar a liberdade e a condição de exilado. Não se trata portanto de abstrações conceituais. O sujeito sabe muito bem sobre o que está falando. Há gratidão nas palavras de Brodsky, aos que o convidam e aos que o premiam, e a seus predecessores, aqueles que reconhece como poetas fortes (Osip Mandelstam, Marina Tsvetaeva, Robert Frost, Anna Akhmátova e Wystan Auden), mas também um sarcasmo silente. Não me cabe aqui sintetizar os muitos e convincentes argumentos de Brodsky, que sabe bem conduzir o leitor / ouvinte ao entendimento de temas complexos, controversos até. Os temas que mais me impressionaram foram sua defesa da particularidade de cada condição humana, seu louvor da relação sem intermediários entre a arte e os indivíduos, da precedência da estética sobre a ética, do cuidado que se deve ter com arautos, com aqueles que se arvoram no direito de interpretar a realidade para os demais, da força inevitável da linguagem, dos inaceitáveis sacrifícios humanos que as doutrinas totalitárias cobram ao tentar alcançar um triunfo e concretizar promessas que nunca se realizam. Nesse bizarros tempos, imagino que só mesmo a hipocrisia ou o Alzheimer moral explicam como legiões de escravos mentais se negam a aceitar o fracasso das ideologias de esquerda e que, eventualmente, querem, num anacronismo perverso, implantar nestes trópicos. Não vale a pena perder tempo com isso. Vamos em frente. Evoé Brodsky, evoé. Vale! 
Registro #1339 (crônicas e ensaios #234) 
[início 12/10/2018 - fim: 16/10/2018] 
"Sobre o exílio", Joseph Brodsky, tradução de André Bezamat e Denise Bottmann, Belo Horizonte: Editora Âyiné (coleção Biblioteca Antagonista #2), 1a. edição (2016), brochura 12x18 cm., 76 págs., ISBN: 978-85-92649-02-9 [edição original: "The condition we call exile" (New York: The New York Review of Books) 1988 / "Noblelevskaja Rec'" and Acceptance Speech "The Nobel prizes, editor Wilhelm Odelbert (Stockholm: Nobel Foundation) 1987]

segunda-feira, 15 de outubro de 2018

proust contra a degradação

O polonês Joseph Czapski foi pintor, escritor, crítico de artes, ativista político. Em setembro de 1939, data que marca o inicio da segunda grande guerra na Europa, engajado como oficial do exercito polonês, Czapski foi aprisionado pelos russos (a União Soviética e a Alemanha dividiram entre si o território polonês). Prisioneiro em um convento abandonado, a mais de 400 Km de Moscou, e demasiadamente debilitado para os trabalhos forçados aos quais estavam condenados todos os demais, ele fazia anotações durante o dia sobre assuntos de suas áreas de especialização, sobretudo pintura e literatura francesa. A cada noite, parte destas anotações eram pronunciadas como palestras a seus colegas oficiais poloneses. Cabe registrar que Czapski foi um dos poucos sobreviventes dos quase 25.000 oficiais prisioneiros dos russos que foram mortos em Katyn - um leitor curioso deveria ver o belo e terrível filme já feito sobre esse assunto. Junto com Czapski sobreviveu o manuscrito de suas conferências, que resta transcrito nesta edição da Âyiné. Naqueles dias terríveis, Czapski fala de Proust e sua obra, sem o auxilio de livros, anotações ou cousa que o valha, citando longos trechos do livro de memória (mas não aquela cara a Proust, a memória involuntária). Ele emula aos colegas prisioneiros o que sabe de livros que havia lido vinte anos antes. Um leitor já familiarizado com Proust apreciará o livro sem reservas, encontrará em Czapski um confrade de longe, alguém com quem compartilhar espanto e admiração (don Renato Cohen certamente deverá ler esse livro). As passagens que ele rememora, escolhe e conta para seus colegas prisioneiros são aquelas que encantam qualquer leitor (a morte da avó do narrador, o sofrimento de Swann, a decrepitude de Charlus, o chá e as madeleines, as recepções na mansão da duquesa de Guermantes, a mundanidade encarnada nos personagens), mas é a forma como elas brotam da memória de Czapski que guardam algo de mágico. A bem da verdade ele não se limita a contar as histórias dos livros de Proust. Czapski fala de sua vida, contrasta autor e obra com todos os movimentos artísticos, não apenas na literatura, mas também nas artes plásticas, na música, na dança, do final do século XIX e início do século. Fala dos autores russos, que ele conhecia bem, de política, de psicologia, de filosofia, de autores poloneses - a passagem sobre Conrad é soberba. Trata-se de um livro curto e potente. Essas edições da Âyiné são excelentes, porém só oferecem um aperitivo ao leitor, não saciam sua fome, deixam o sujeito nervoso ao terminar a leitura; e custam caro. Paciência. Escrevo este registro na véspera do dia que é dito do professor aqui no Brasil. Uma passagem de Czapski me fez pensar muito sobre essa data e a terrível situação em que esse desgraçado país se encontra, em que legiões de escravos mentais vagam e votam, deixando a impressão que sua grande maioria é incapaz de tomar decisões sensatas, de colaborar para construir um futuro minimamente digno. Paciência. Mas o que Czapski registra e me fez lembrar, numa lição, é que Proust jamais foi estritamente didático, engajado ou tendencioso em sua obra, jamais foi professoral. Para Proust é a forma, o compromisso estrito, rigoroso, absoluto, com as formas puras na arte, que conseguirá transmitir verdades ao leitor. É a vontade de saber e de compreender todos os sentimentos, todos os estados da alma e gestos dos homens, mesmo quando incompatíveis entre si, que poderá fazer com que possamos alcançar alguma verdadeira sabedoria. Proust nos obriga, a cada leitura, a uma revisão de toda nossa escala de valores, a despertar nossas frágeis faculdades de pensamento e sentimento. Efeitos assim não se alcançam com livros panfletários, ideologicamente comprometidos, que parecem ser o repasto da maioria dos - poucos - leitores contemporâneos. (Nem incluo aqui das informações que as pessoas compartilham nas redes sociais, quase sempre admiravelmente eivadas de vícios e mentiras). É mesmo tempo de reler Proust, de blindar-se da degradação, afastar-se dos miasmas, da abominável ignorância que grassa por este país. Vale! 
Registro #1338 (crônicas e ensaios #233) 
[início 13/10/2018 - fim: 14/10/2018]
"Proust contra a degradação: Conferências no campo de Griazowietz", Joseph Czapski, tradução de Luciana Persice, Belo Horizonte: Editora Âyiné (coleção Das Andere #6), 1a. edição (2018), brochura 12x18 cm., 110 págs., ISBN: 978-85-92649-36-4 [edição original: Proust contre la déchéance: Conferences au camp de Griazowietz (Lausanne: Editions Noir sur Blanc) 1987 & 2011]

domingo, 14 de outubro de 2018

insolitudes

Com "Insolitudes" Tiago Feijó venceu o premio Ideal Clube de Literatura de 2014. São nove contos curtos, bastante engenhosos, produção de alguém que é jovem, mas tem domínio das boas técnicas de sua arte. Três dos contos são mais explicitamente metaliterários, falam do mundo dos livros; os outros seis são menos brincalhões com a literatura, exploram certos espantos da vida. Todas as narrativas compartilham aquilo que o título promete: algo de insólito, bizarro, deslocado, ou no tempo, ou no espaço. Em "A insólita morte de Ernesto Néstor", Feijó inverte um aforismo de Nabokov que obriga os personagens a serem sempre escravos do autor e faz seu narrador ser dominado e eventualmente eliminado por um personagem; em "Josés" um sujeito recebe o fantasma de José Saramago e alcança escrever um livro em nome dele, num transe ; "Conto tirado de um poema" dá conta de um sujeito que é rechaçado pela namorada e decide tornar seu suicídio um acontecimento literário, coreografando, encenando, seu aborrecimento e morte; "O olho" é uma história que deve algo a Kafka ou Borges, no qual um olho surge em uma parede e, ao se expandir, deixa obcecado o morador daquele ambiente; "O caso do cartão" brinca com os sucessos retrospectivos de uma paixão vivida por um rapaz por uma garota que havia o abandonado; "Aqui, dentro de mim" trata dos ritos do luto de uma mulher que perde filho e nora para os elementos, o mundo natural; em "Uma noite na vida do sr. Lameque" uma mãe, talvez inebriada pelo Alzheimer, recrimina o filho que vela por ela pela morte de um outro filho, seu gêmeo ou irmão mais velho, num remoto acidente; " Há uma gota de orvalho em cada criança" descreve uma cena que adultos tratariam com mundanidade, hipocrisia, mas que no mundo das crianças brota livre, sem amarras, sem engajamentos artificiais, como sempre deveria ser; "A morte e a pequena Ana" conta como uma menininha pensa o suicídio do pai, tentando interpretar o mundo e as pessoas que, por sua vez, não a imaginam ser capaz disto. Ojo, acho que é o caso de acompanhar o que o Feijó inventará no futuro. Vamos em frente. Vale! 
Registro #1337 (contos #157) 
[início: 18/09/2018 - fim: 25/09/2018]
"Insolitudes", Tiago Feijó, Rio de Janeiro: Editora 7Letras, 1a. edição (2015), brochura 14x21 cm., 101 págs., ISBN: 978-85-421-0383-0

sábado, 13 de outubro de 2018

querida kombini

Na semana passada, próximo ao dia destas bizarras, ridículas eleições, quase todos os cadernos culturais dos jornais que li davam conta da edição desse "Querida Kombini", de Sayaka Murata. Todos falavam do sucesso de vendas (mais de 700 mil exemplares vendidos no Japão) e das boas críticas (o livro ganhou o respeitável prêmio Akutagawa do ano passado). De fato o livro é bem escrito, registra literariamente uma experiência limite, descreve um comportamento social contemporâneo, alcança fazer algo que um trabalho sociológico acadêmico não alcançaria, além de provocar uma reação empática no leitor. A história é simples. Uma mulher ainda jovem, menos de quarenta anos, com estudos universitários completos, Keiko, é funcionária em uma loja de conveniência de Tóquio ("Kombini" é o nome destes lugares no Japão). Esse tipo de trabalho é em geral ocupação de estudantes, mulheres bem mais velhas que precisem ajudar no orçamento familiar, imigrantes com pouca qualificação. Todavia Keiko parece adaptar-se perfeitamente àquela função, onde antes habilidades mecânicas, rapidez e diligência são mais importantes que capacidade de abstração, raciocínio complexo ou iniciativa. O leitor acompanha os dias de Keiko, a monótona rotina de seu trabalho, algo de sua biografia, do estranhamento que provoca em familiares e amigos (se é o que ela vivencia são mesmo relações familiares ou de amizade, pois trata-se de uma pessoa socialmente deslocada em todos os aspectos). Gostei de ler o livro, mas não achei particularmente marcante, já conhecemos todos algo deste tipo de história. Para um leitor estrangeiro o exotismo da cousa, o bizarro da situação, explica algo do interesse que a história provoca, mas como explicar o sucesso de público e crítica no Japão? Talvez a história desnude aquilo que não seja fácil para eles mesmos verbalizar: a intrínseca melancolia e solidão daquela sociedade; o contraste entre o conforto material e as tensões psicológicas experimentadas pela população; a quase impossível mobilidade social; a rigidez que condena todos ou a mais completa submissão às tradições ou ao escracho total, a negação completa das convenções sociais. Esse livro lembra muito um dos primeiros livros da belga Amélie Nothomb, "Medo e Submissão", no qual ela descreve ficcionalmente sua experiência de quase servidão humana, de anulação de personalidade, vivenciada quando trabalhava como tradutora em uma grande empresa japonesa no início dos anos 1990. Lembra muito também aquele poderoso conceito de Elias Canetti: "A inversão do temor de ser tocado", mas esta é outra história e eu já especulei um bocado neste registro de leitura. Vamos em frente. Vale! 
Registro #1336 (romance #351) 
[início 06/10/2018 - fim: 08/10/2018] 
"Querida kombini", Sayaka Murata, tradução de Rita Khol, São Paulo: Editora Estação Liberdade, 1a. edição (2018), brochura 14x21 cm., 152 págs., ISBN: 978-85-7448-295-8 [edição original: Kombini Ningen コンビニ人間  (Tokyo: Bungeishunju) 2016]