quarta-feira, 21 de abril de 2010

fronteira iluminada

Aprendi com Frank Missell que há livros que se defendem sozinhos. É este o caso deste "Fronteira Iluminada", de Fernando Cacciatore de Garcia. Ele escolheu um assunto específico e reuniu toda a informação factual disponível a partir de uma premissa: as relações diplomáticas entre os povos. Com estas informações produziu um texto que ao mesmo tempo esclarece e ilumina (para usar uma metáfora cara a De Garcia). O livro percorre cinco séculos, dividindo as análises em quatro seções (são cinco na verdade, mas a última vale mais como uma conclusão, um fechamento do texto, que louva as boas escolhas - frutos do iluminismo - feitas pelo Brasil). Se estas quatro seções têm mais ou menos o mesmo número de páginas os sucessos que elas contam se distribuem em períodos de tempo de extensão distinta. A primeira parte do tratado de Tordesilhas e segue até fundação da cidade de Colônia do Sacramento, nascida portuguesa, hoje uruguaia. A grande ambição do rei Carlos III é definir o rio da Prata como a fronteira sudoeste dos domínios portugueses. São 260 anos de história, de indas e vindas, de movimentos ora violentos, ora discretíssimos (como costuma acontecer no mundo diplomático). A segunda parte segue da fundação de Colônia por mais uns cem anos, até sua terceira destruição, em 1777 (Colônia foi construída e derrubada várias vezes, por espanhóis e portugueses). A terceira e a quarta partes percorrem pouco tempo cada uma (os 30 anos que antecedem a vinda do rei D. João VI ao Brasil e os 55 anos que seguem até a criação do estado uruguaio, já nos tempos do rei D. Pedro II). São as mais movimentadas, pois nestes dois períodos acontecem as últimas tratativas que construíram os limites físicos do Rio Grande do Sul. São os períodos onde a disputa é mais renhida, que envolve mais ambição, movimento de tropas, escaramuças (e intensa troca de papéis). Se os sucessos, os nomes dos tratados e das regiões em disputa são mais ou menos conhecidos de todos (pois de fato estudamos tudo isto ainda no ensino fundamental) o tratamento dado por De Garcia realmente nos ensina muita coisa nova, nos acompanha no entendimento da lógica interna dos tratados e das decisões. Aprendi mesmo um bocado neste livro. Ele inclui uma boa introdução, assinada pelo historiador Gunter Axt, copiosas notas e excelentes ilustrações e mapas, que ajudam o leitor a acompanhar sua linha de raciocínio. Fiquei a pensar se é verdade que a história apenas ilumina o já vivido, não justificando o que se passou. Pequenas perturbações, diferentes decisões, poderiam dar um outro rumo para a delimitação destas fronteiras. Parece que assim como Portugal é um capricho inglês, o Uruguai é um capricho brasileiro. Eu, morador da região central do Rio Grande do Sul, poderia estar na fronteira sul do Brasil, lindeiro de um grande Uruguai, que seguiria mais rumo ao norte, até o oeste do Paraná. Ou também poderia estar na parte norte de um Uruguai onde se falasse português e cuja capital fosse uma imponente Colônia do Sacramento, maior e mais influente que uma talvez provinciana Buenos Aires. Estas especulações são minhas, livremente inspiradas pelo belo texto produzido por Fernando de Garcia. É um texto que interessa não apenas o gaúchos, ciosos de seu papel fundamenal na "peleia" por estas terras fronteiriças, mas também pelos demais brasileiros. Só lamento ter perdido o lançamento do livro, lá no porto-alegrense Solar dos Câmara, mas esta é outra história. [início 08/04/2010 - fim 16/04/2010]
"Fronteira iluminada: História do povoamento, conquista e limites do Rio Grande do Sul, a partir do tratado de Tordesilhas 1420 - 1920", Fernando Cacciatore de Garcia, editora Sulina, 1a. edição (2010), capa dura 16x23 cm, 333 págs. ISBN: 978-85-205-0555-7

sábado, 17 de abril de 2010

a travessia

"A travessia" é o segundo volume de uma trilogia de Cormac McCarthy, publicada ao longo dos anos 1990. O cenário é o sul dos Estados Unidos (lugares entre o Novo México e o Texas) e o norte do México (lugares escarpados e vazios, onde a natureza se apresenta como um personagem importante). Há algo nestes livros de McCarthy que chamar de épico não explica exatamente. Lembra os textos de Faulkner, o mundo inventado de Faulkner, com citações e metáforas bíblicas, com a presença do mundo grego pairando sobre os personagens. Billy Parham, um rapaz de seus dezesseis, dezessete anos, vive com seus pais e seu irmão mais novo, Boyd, em uma fazenda no sul dos Estados Unidos. Uma loba começa a vagar por ali e pai e filho preparam armadilhas para prendê-la. Um dia ele consegue prendê-la, usando conselhos de um velho índio. Ao invés de matá-la ele decide levá-la as montanhas do México e ruma para lá (para assombro de todos que cruzam com ele), sem ao menos se despedir dos pais e do irmão. Esta é a primeira de uma série de travessias da fronteira que Parham fará até o final do livro. Nesta primeira parte do livro se descreve como ele e a loba adentram no território mexicano e confrontam tradições e regras de conduta diferentes daquelas que ele conhecia. Após estes sucessos (que não vou detalhar aqui pois me parecem a parte realmente seminal do livro) ele volta a sua casa. Descobre que seus pais foram mortos por índios, que seu irmão sobreviveu e que vários cavalos da família foram roubados. Ele e seu irmão não precisam mais do que uma conversa para resolverem atravessar a fronteira em busca dos cavalos roubados. Se envolvem em toda sorte de aventuras nesta busca: encontros com fazendeiros, pistoleiros, policiais, atores de circo, vaqueiros, padres, índios. Um dia salvam uma garota índia de ser estuprada por uns sujeitos. Logo depois recuperam a maioria dos cavalos, trocam tiros com um estafeta perigoso e são perseguidos pelos homens do grande senhor daquelas terras. Boyd é ferido com gravidade. Billy consegue a ajuda de um médico e o garoto se salva. Recuperado ele e a garota índia fogem juntos, deixando o irmão mais velho com os cavalos recuperados. Billy volta então aos Estados Unidos. O país está em guerra e ele tenta se alistar. Os militares descobrem que ele tem um problema congênito no coração e não o aceitam. Apesar disto ele tenta ser alistado outras vezes em lugares diferentes, mas sempre é rejeitado. Começa a trabalhar em fazendas de gado. Diligente e capaz ganha um bom dinheiro, recuperando um tanto de confiança. Decide uma vez mais atravessar a fronteira rumo ao México. Fica sabendo que seu irmão foi morto já há anos e que sua memória é cultivada como lenda, seus feitos como um garoto americano (el güerito) que lutava contra os poderosos da região cantada pelo povo. Verdade e lenda se confundem. Decide levar os ossos do irmão de volta aos Estados Unidos. No caminho é emboscado por um grupo de assaltantes. Seu cavalo é ferido gravemente. Um grupo de ciganos consegue salvar seu cavalo e ele finalmente termina sua saga ao conseguir enterrar os ossos do irmão nas terras da família. Por fim, após esta última travessia, ele se vê realmente só e chora as lágrimas repesadas em toda uma vida. O texto de McCarthy é sempre poderoso, os diálogos riquíssimos. Há longas digressões de personagens secundários que ajudam o personagem principal a entender o que se sucede em sua vida. Estes personagens, que lembram os aedos da Ilíada e da Odisséia, são realmente bons. Que belo livro. Daqui a pouco vou começar o último volume da trilogia. O cruzamento do sofrido rapaz do primeiro volume, John Cole, com este industrioso Billy Parham promete ser realmente bom. [início 27/03/2010 - fim 03/04/2010]
"A travessia", Cormac McCarthy, tradução de José Antonio Arantes, editora Companhia das Letras, 1a. edição (1999), brochura 14x21 cm, 413 págs. ISBN: 85-7164-859-X

sexta-feira, 16 de abril de 2010

quem inventou picasso

Há livros que são ficção com ares de ensaio e outros que são ensaios, teses, disfarçados de ficção. "Quem inventou Picasso" fica mais próximo deste último tipo. Seu autor, Francesc Petit, é um publicitário e designer que fez muito sucesso no Brasil a partir dos anos 1960, mas que nasceu na Catalunha e tem com o país dos catalães uma relação forte. Infelizmente este livro dele é tão parcial, e ele defende teses caras a autonomia e liberdade da Catalunha tão francamente, sem permitir um mínimo de contestação, que não há como aceitá-lo como um bom romance. O enredo é curioso. Dois artistas plásticos, um jovem e um outro mais velho, já consagrado no mercado, se encontram por acaso e instantaneamente se percebem bastante afinados. O artista mais velho leva o mais jovem por um passeio histórico cultural pelos arredores de Barcelona, através do qual, explica ao mais jovem suas teorias sobre a importância da Catalunha na formação do pintor Pablo Picasso. Segundo esta tese foi no contato com os grandes mestres do modernismo catalão que Picasso afinou as bases do trabalho que o levaria a conquistar Paris assim que lá se instalasse. Claro, Picasso viveu sim em Barcelona nos últimos anos do século XIX, um pouco antes de se instalar definitivamente em Paris, mas desde sua infância andaluz (ele nasceu em Málaga) e seus dias de estudante na Galícia, sua genialidade artística já era reconhecida. De qualquer forma o livro de Petit percorre Barcelona, seus bares, restaurantes, museus, galerias e rincões, contanto um tanto da história rica daquela região da Espanha. O livro acaba ficando repetitivo, apesar de toda a beleza e histórias curiosas, que um leitor atento aproveita com verdadeiro prazer. No livro os dois artistas criam um movimento artístico moderno que alcança seu objetivo maior: divulgar a arte catalã. No fundo Petit escreve como se descrevesse um sonho, um desejo, de que Barcelona e seu modernismo fossem mais aceitos e respeitados. [início 26/03/2010 - fim 31/03/2010]
"Quem Inventou Picasso", Francesc Petit, editora Arx, 1a. edição (2007), brochura 16x23 cm, 207 págs. ISBN: 978-85-7581-265-5

terça-feira, 13 de abril de 2010

ao deus-dará

"Ao deus-dará" conta uma curta história que se passa na sereníssima Veneza. Um casal em férias flana pela cidade divertindo-se mas também um tanto entediados. Eles não são casados oficialmente apesar de manterem uma relação há seis ou sete anos. Ela tem filhos do primeiro casamento e suas férias parecem servir como uma espécie de fuga da rotina e uma chance de reflexão sobre eles mesmos. Uma noite eles se perdem no labirinto de ruelas e canais da cidade. Um sujeito os ajuda a encontrarem o caminho até um bar. Passam a noite ouvindo histórias curiosas sobre a família do sujeito, suas ligações com o passado glorioso da cidade. Este veneziano bastante sedutor acaba convidando-os para no dia seguinte conhecerem sua mulher e seu palacete. Eles passam ali dias divertidos, mas onde sua intimidade é desnudada . Sem que um ou outro saibam ambos sofrem pequenas violências físicas e psicológicas (coisas que parecem brincadeiras entre amigos de longa data, mas que não escondem algo de perverso). O contraste entre os dois casais é grande, mas o casal em férias parece se excitar com o clima de mistério e sofisticação que encontram. É como se flertar com o desconhecido fosse o ingrediente que faltava à suas vidas. Dias depois e aos poucos o casal se dá conta de que tanto o sujeito quanto sua mulher acompanharam seus passos pela cidade desde o primeiro dia em que lá chegaram. Há algo de perigoso naquilo tudo, ambos concordam, mas como acontece nas relações entre presa e predador, o controle mental da situação é sempre do predador. Eles ficam uma semana passeando sozinhos pelas praias e canais da cidade, mas o sujeito os convida para um jantar de fim de férias. Incapazes de reagir ao assédio do sujeito o casal se enreda uma vez mais. A história tem um final previsível, mas isto não é exatamente um demérito ao livro ou ao autor. McEwan publicou este livro em 1981. Ele sabe mesmo contar uma história, mas os livros mais recentes dele (Sábado, Na praia, Reparação) me parecem melhores. De qualquer forma ainda preciso ler mais coisas deste sujeito. [início 22/03/2010 - fim 31/03/2010]
"Ao deus-dará", Ian McEwan, tradução de Waldéa Barcellos, editora Rocco, 1a. edição (1997), brochura 14x21 cm, 128 págs. ISBN: 85-325-0710-7

domingo, 11 de abril de 2010

cuba: casa de boleros

Neste pequeno livro de crônicas Hilda Simões Lopes nos conta um tanto de suas experiências de viagens à capital dos cubanos, a cidade de La Habana. São doze crônicas, produzidas com muito cuidado, cada uma delas com uma epígrafe. Não sabemos se foi uma única viagem que as geraram ("convidada para um congresso", ela escreve em uma das crônicas). A amplitude das histórias faz pensar que elas são mais o resultado de várias experiências, todavia isto pouco importa. Ao mesmo tempo que frequenta lugares populares, bares, restaurantes, casas de bolero, Hilda também é convidada para recepções mais formais, mais sofisticadas. São crônicas bem realistas, que descrevem aspectos variados da sociedade e do povo da ilha, sobretudo o mundo das mulheres. Corajosa, ela descreve como opera uma ditadura brutal, que se apresenta sempre, onipotente, até nos pequenos gestos, nas frases dissimuladas, nas conversas interrompidas. Diria que ela até tenta ser simpática ao povo, à alegria das gentes, ao colorido e a musicalidade natural da cidade, mas seu texto desnuda um mundo de contradições, que se revela sufocante. As histórias são realmente curtas, mas bastante poderosas. Triste é saber que mesmo após mais de dez anos da publicação destas histórias o destino desgraçado do povo cubano só se tornou mais terrível, a opressão à liberdade mais completa e anacrônica. As ditaduras têm mesmo esta incrível capacidade de se perpetuar. Mas Hilda não tem nada com isto. Suas histórias continuam saborosas, frescas, interessantes. [início 20/03/2010 - fim 30/03/2010]
"Cuba: casa de boleros", Hilda Simões Lopes, editora AGE, 1a. edição (2000), brochura 14x21 cm, 62 págs. ISBN: 85-85627-86-7

sábado, 10 de abril de 2010

carta das ilhas andarilhas

Quem me falou deste livro foi sua tradutora, Lara Christina, num dia em que éramos os felizes convidados de Heloísa e Samuel (o prato principal era um legítimo Cioppino, que Heloísa, capitã de longo curso na cozinha, ficou feliz em compartilhar conosco). Ainda em São Paulo encontrei o livro (uma bela produção da editora 34), mas só recentemente consegui alguma calma para lê-lo (é certo que há livros que não se deixam ler quando estamos doentes, tensos ou mesmo mal humorados). O livro é um belo volume, com ilustrações belíssimas de um sujeito chamado André François (um romeno que morreu há pouco mais que cinco anos). É um livro muito divertido, que talvez um sujeito adulto e que já tenha passado por alguns aborrecimentos goste mais que um jovem, mesmo aqueles com ainda alguma capacidade de ilusão. Digo isto pois o livro é uma ode à liberdade e talvez uma pessoa que valorize a liberdade e outras virtudes possa entender mais o seu valor. Pais e filhos que eventualmente leiam este livro juntos vão ter momentos de raro prazer. O texto conta a história de como os habitantes de uma ilha são temporariamente ameaçados pela cobiça daqueles que vivem no continente (hipócritas, falsos, inconstantes, traidores, agressivos, cruéis), mas que conseguem (mais em função do acaso que de algum planejamento) voltar à alegria, à felicidade, à seus afazeres, sua rotina. Eu, que li livros terríveis recentemente, livros que falam das desgraças de países que foram colonizados da forma mais perversa possível (Haiti, República Dominicana, Angola, México), amenizei um tanto minha bile, desfrutei dos jogos verbais, do humor, da cadência e da alegria de um texto que encanta do começo ao fim. Jacques Prévert foi um grande poeta francês (morreu há quase 35 anos já) e este é de seus raros livros em prosa. Gostaria de encontrar algo de sua poesia um dia destes. Nada como uma boa dica recebida em um dia adorável para fazer à alma um grande bem. [início 01/03/2010 - fim 29/03/2010]
"Cartas das ilhas andarilhas", Jacques Prévert, ilustrações e desenhos de André François, tradução de Lara Christina de Malimpensa, editora 34, 1a. edição (2008), brochura 22,5x15,5 cm, 64 págs. ISBN: 978-85-7326-402-9

sexta-feira, 9 de abril de 2010

o jardim de cimento

Neste pequeno livro Ian McEwan conta uma história curiosa. Há algo nela que lembra "O senhor das moscas", de Willian Golding, mas de uma forma mais doce, mais sexualizada, não tão brutal. Talvez o mundo inglês de ambos (McEwan e Golding) tenha passado por uma transformação deste tipo entre os anos 1950 e 1980, mas isto é apenas uma idéia. Publicado originalmente em 1978 "O jardim de cimento" conta como crianças reagem à experiências limite, experiência de sexo, doença e morte. A história começa com uma família típica: pai, mãe e quatro filhos com idades entre 6 e 18 anos. O pai morre repentinamente, mas os filhos estão mais preocupados com o destino de todo o material de construção que ele havia comprado para fazer reparos na casa do que propriamente entender o porque de sua morte anunciada (ele já era aposentado por conta de seus problemas no coração). A mãe esconde dos filhos mais novos que está também ela à morte (de um câncer não tratado) e definha lentamente enquanto os filhos tentam continuar a rotina de suas vidas. Com a morte da mãe os filhos decidem não comunicar às autoridades sua morte e decidem escondê-la em um grande baú de viagem, que cimentam (algo porcamente) usando o material de construção deixado pelo pai. Curioso como McEwan descreve a recepção da morte pelos filhos, como se ela apenas fosse dormir para sempre e não exatamente morrer. Trata-se de uma decisão tácita, não exatamente discutida entre eles, sem que as implicações e riscos fossem avaliados. Eles apenas entendem que o mais acertado é continuar suas vidas como se a mãe permanecesse apenas doente na cama e não morta e cimentada em um baú no porão. O luto é algo que se deve construir individualmente e a partir deste ponto McEwan descreve sem julgamentos ou moral como os filhos se auto governam. Tudo é muito alegórico e inverossímel, mas é interessante como as crianças acreditam estar certos à cada situação que se apresenta. As implicações da experiência de vida sem pais ou sem controle social se fazem sentir rapidamente. A escola é abandonada por todos. A divisão do dinheiro, deixado pela mãe aos cuidados da filha mais velha, se revela falha e parcial. O caos e a sujeira rapidamente se instalam na casa. As diferenças entre eles se aprofundam e se radicalizam. Para o narrador (o maior dos meninos da casa) tudo se dá em tom de farsa: entender a sexualidade do irmão mais novo; aceitar o envolvimento da irmã mais velha com um rapaz; absorver o lirismo dos diários mantidos pela outra irmã; participar de ocasionais encontros com terceiros, ainda ignorantes da morte da mulher. Ao mesmo tempo como vemos como a infância é algo frágil que se perde irremediavelmente, acompanhamos também como é cruel e perverso qualquer mundo novo construído pelos homens. A metáfora da vida em sociedade como um jardim organizado é antiga e muito utilizada literariamente. De qualquer forma McEwan parece nos ensinar, de forma poderosa e rica, que não há fronteiras estanques entre o que é viver e o que é aprender a viver. Um tanto mórbido e que lembra o clima lúgubre daqueles velhos livros de mistério ingleses que eu lia quando era garoto, mas mesmo assim é um livro bom de se ler. [início 21/03/2010 - fim 29/03/2010]
"O jardim de cimento", Ian McEwan, tradução de Luiza Lobo, editora Rocco, 1a. edição (1996), brochura 14x21 cm, 132 págs. ISBN: 85-325-0652-6

sábado, 3 de abril de 2010

todos os belos cavalos

Descobri noutro dia que don Ronái e eu lemos quase simulteneamente "A estrada", de Cormac McCarthy, que já resenhei aqui. Os livros sabem sim proporcionar bons encontros e conversas. Dividimos um café animados e discutimos sobre o quão opressivo e verossímel é o livro. Depois falei com entusiasmo do outro único livro que havia lido de McCarthy, ainda em meados dos anos 1990. Como "Todos os belos cavalos" é o primeiro volume de uma trilogia (da qual não li os dois volumes restantes) resolvi relê-lo agora. Difícil não se apaixonar pelo estilo de McCarthy. Ele usa uma pontuação muito particular para construir os diálogos e isto dá uma vivacidade especial ao texto. O tom é contido, seco, mas com isto acompanhamos a história como se ouvíssemos mesmo os personagens. O enredo da história se concentra no nordeste mexicano, perto da fronteira com o Texas, uma região muito dura, onde os elementos e os animais selvagens apenas toleram a presença do homem. Achei um mapa e acompanhei a história com ele. Isto foi muito útil. Descobri também que esta região tem um passado geológico muito rico e uma diversidade de espécies, em lagos e rios, particularmente distinta. Bom, vamos a história. John Cole, um rapaz de seus dezessete anos vive o que acredita ser uma idílica vida no campo. Mas trata-se de um mundo condenado à transformação (o texto se passa em 1950, a vida de vaqueiro já é um anacronismo). Com a morte do avô (último membro de uma família com várias gerações de criadores de cavalos) e a separação dos pais a grande fazenda é vendida, impedindo que ele continue fazendo a única coisa que ama: domar e criar cavalos. Cole e um amigo/primo, Rawlins, decidem fugir juntos. Assim, dois garotos montados em seus cavalos entram no México, encontram um terceiro jovem, Blevins, sem dinheiro ou comida que se junta a eles. Este novo garoto é provavelmente um ladrão de cavalos, mas os dois amigos decidem acolhê-lo mesmo assim. Ao passarem por uma cidade este terceiro garoto se mete em uma confusão dos diabos e perde seu cavalo, separando-se dos dois amigos, que continuam sua jornada. Em função de suas habilidades em domar cavalos são admitidos em uma grande fazenda mexicana, por um "hacendado". Este tem uma jovem filha, Alejandra, que vez por outra vem da cidade do México visitá-lo e o romance entre o jovem rapaz e esta menina é inevitável. Como em toda narrativa que tenha a pretensão de épica após a ascenção segue-se a queda. O pai da garota os denuncia à polícia mexicana, que os prende, sem perspectiva de julgamento ou denúncia formal. No meio do caminho eles reencontram Blevins, o garoto que os acompanhou, igualmente preso, mas com o agravante que ele matou duas pessoas para recuperar seu cavalo perdido. O capitão mata Blevins e abandona os dois amigos, Cole e Rawlins, em uma prisão. Lá eles têm de brigar muito para sobreviver e eventualmente Cole mata um homem, ficando bastante ferido. Como em um passe de mágica após se recuperar ele é solto da cadeia, junto com Rawlins. Ficamos sabendo que a avó da garota, matriarca sofisticada da família do hacendado, pagou por sua liberdade. Cole tem uma longa conversa com esta avó, e aí ficamos sabendo um tanto da desgraçada história do México, sua sucessão particular de déspotas e sanguinários governantes. Rawlins volta aos Estados Unidos e Cole decide reencontrar Alejandra. Ela prometera a avó jamais revê-lo e após um final de semana juntos ela volta à cidade do México, abandonando-o definitivamente. Cole decide recuperar seus cavalos (roubados dele e de Rawlins quando foram presos). Para isto primeiro ataca o capitão que o prendeu e através dele localiza os sujeitos que estão com seus cavalos. Após um embate realmente vibrante, mesmo bastante ferido, consegue recuperar seus cavalos. Um grupo de mexicanos o ajuda e leva o capitão preso, como um prêmio, para um destino incerto. Cole volta para os Estados Unidos. É preso como ladrão de cavalos, mas em juízo convence um velho juíz da veracidade de sua mirabolante história, mostrando todos seus ferimentos e cicatrizes. Libertado, mesmo procurando muito não consegue descobrir de quem é o cavalo roubado pelo garoto Blevins. Volta com os cavalos para sua cidade natal e descobre que seu pai já é morto. Sua avó de criação, uma mexicana de origem indígena, também morre. Devolve o cavalo de Rawlins. A história termina com as intensas reflexões sobre o destino, o deserto, a força dos cavalos e a vida. Este é mesmo um livro poderoso, um romance de formação típico, onde um sujeito aprende algo de si mesmo, amadurece, que se transforma duramente em um curto mas intenso período de tempo. O mundo encantador dos filmes de Hollywood não existe neste belo livro. A geografia, os hábitos das pessoas e dos animais, a natureza, tudo é descrito de uma forma incrível neste livro. É mesmo tempo de continuar por esta curiosa triologia. [início 23/03/2010 - fim 28/03/2010]
"Todos os belos cavalos", Cormac McCarthy, tradução de Marcos Santarrita, editora Companhia das Letras, 1a. edição (1993), brochura 14x21 cm, 272 págs. ISBN: 85-7164-341-5

sexta-feira, 2 de abril de 2010

nada a dizer

Não há fórmulas nos trabalhos de Marcelo Sahea reunidos em "nada a dizer". Como em um jogo do qual não conhecemos as regras confrontamos a cada página imagens, poemas e textos e somos forçados a decodificá-los. O quê se diz? O quê se mostra? Os poemas em verso, os poemas visuais e os textos são como provocações que não deixam o leitor indiferente. Ler seu livro é como trilhar um território novo, um território de disfarces, de contradições. Como em todo poeta forte localizamos logo a influência de algo (no caso o concretismo) mas verificamos que a inovação e experimentalismo são dele mesmo, senhor de grande técnica e erudição. Ele propõe sacadas que explodem na memória do leitor (gostei particularmente de "casando com o acaso", "receita" e "Clec Pôu Ffff"). Marcelo afirma em seu blog (que vale uma visita: poesilha.blogspot.com) que sua arte é a arte da palavra e ao lermos este seu terceiro livro percebemos que até o que não dizemos com palavras parece querer se expressar. Quando as pessoas dizem que as imagens valem mil palavras retruco rápido lembrando do Millor que diz ser impossível dizer isto, ou seja, dizer que uma imagem é mais poderosa que as palavras, sem usar as palavras. Marcelo propõe várias imagens que já mostrei e discuti com amigos (se bobear vou escanear e mandar pela internet mundo afora, preciso pensar nisto). Acho mesmo que seus poemas visuais devem ser vistos e discutidos. Enfim, este é um livro para ser lido em público, mostrado aos amigos. Sorte de quem já viu o Marcelo em suas performances poéticas, poetando com energia e decisão. A edição do livro é muito boa, que inclui uma introdução assinada por Ricardo Corona. Fiquei feliz de ler estes dois poetas, estes dois Marcelos, estes dois livros da Annablume, quase ao mesmo tempo. [início 27/03/2010 - fim 28/03/2010]
"Nada a dizer", Marcelo Sahea, editora Annablume, 1a. edição (2010), brochura 16x23 cm, 104 págs. ISBN: 978-85-6314106-4

quinta-feira, 1 de abril de 2010

valor de uso

Ler poesias sempre é um desafio. Talvez por conta das aulas pedestres de literatura que tive ou de minha pouca familiaridade juvenil com a gramática, demorei para um dia me encantar com aquilo que à diferença da prosa a poesia nos oferece: a potência das imagens e a sedução dos sons, o intrincado que estimula as sinapses, a eventual epifania que espouca na memória. Mas o treino e a eventual paciência nos ensina que os prazeres que a poesia oferece fazem a alma um grande bem. Este belo livro de Marcelo Tápia pertence a classe daqueles que servem para a simples fruição dos pequenos poemas que contêm e também para demonstrar a maquinaria das construções mentais de um autor forte. Nos poemas Tápia dialoga com filósofos, com prosadores e poetas, mas o que nos oferece parece burilado para esconder sua erudição instrínsica, como se ele quisesse atingir o leitor em um nível mais fundamental, mais primitivo, de nossa consciência. No livro encontramos duas séries de poemas: "Des-enganos" e "Aquém-emulações, intervenções e além-traduções", precedidos por um poema-epígrafe e um poema-preâmbulo que achei muito poderosos, instigantes mesmo. Pois o preâmbulo começa com um "Fui e sou servidor de muitos senhores" que magnetiza e estimula o leitor. Como sempre com as poesias fico a pensar se não deixei passar detalhes, se não interpretei corretamente uma passagem, se não fui inteligente e ágil o suficiente. Mas talvez seja isto mesmo que as palavras fortes devem fazer: forçar o leitor a expressar o algo novo que já estava ao alcance de nossos sentidos e teimávamos não perceber. A edição é muito bem cuidada . Este é mesmo um livro para se lembrar. É tempo. [início 01/03/2010 - fim 25/03/2010]
"Valor de uso", Marcelo Tápia, editora Annablume, 1a. edição (2009), brochura 16x23 cm, 90 págs. ISBN: 978-85-63141-02-6