quarta-feira, 31 de julho de 2013

os argentinos

Há mais de vinte anos, quando sai de São Paulo e passei a morar no Rio Grande do Sul, fiquei surpreso em descobrir como aqui há mais afinidades que distanciamentos entre os gáuchos (gaúchos do Rio Grande do Sul, do Uruguai e da Argentina). Lembro-me bem do quão rapidamente fui repreendido ao contar uma piada xenófoba e boba: "Se você tirar o 'argentino' desta sua piada e substituir por um 'paulista' sou capaz de rir dela", disse um - hoje - amigo, o Antônio Vicente Porto. Hoje eu acho que entendo melhor os porquês desta afinidade (mas continuo paulista). Resolvi comprar "Os argentinos" logo após terminar de ler "O tango da velha guarda", de Arturo Pérez-Reverte, cuja ação tem um bom trecho ambientada em Buenos Aires. Esse é o terceiro livro que leio de uma curiosa coleção da editora Contexto (os demais são "Os espanhóis" e "Os japoneses" - eles já editaram também volumes dedicados a italianos, alemães, chineses, franceses, russos, indianos e portugueses, além de um último, dedicado ao mundo muçulmano em geral). São textos bens escritos, quase didáticos, mas ligeiros, pois não se preocupam exatamente com a vastidão inerente do tema (apesar deles certamente saberem que o diabo está sempre nos detalhes). Há partes que funcionam como guia de viagem, outras, num viés sociológico, antropológico e histórico são mais próprias daquilo que deve fazer parte do estofo cultural de qualquer sujeito educado (cousa que as escolas brasileiras jamais farão). Equilibrando-se entre ao quê dar ênfase e ao que resta omitir (sempre a maior parte de qualquer assunto) o formato funciona, pois qualquer neófito pode se ilustrar sem dificuldades (numa viagem espiritual e curta para estes lugares, talvez?). Acredito que o que garante a boa qualidade dos texto é a escolha dos autores, sempre pessoas experimentadas nas culturas sobre as quais escolheram escrever. Ariel Palacios é argentino de nascimento, mas viveu no Brasil muitos anos, formou-se jornalista aqui e está radicado de volta em sua Buenos Aires natal há quase vinte anos. Assim seu recorrido pela história, economia, política, cultura, futebol e gastronomia é fruto de experiências pessoais, de conhecimento prévio e acesso a fontes que um turista eventual jamais alcançaria. Como o tom do livro é jornalístico, um número grande de assuntos e temas ganham espaço (alguns complexos, como as relações da Argentina com os nazistas; ou aquele dedicado ao Tango; outros quase folclóricos, como uma seção sobre os apelidos dos políticos, um capítulo sobre psicanálise e religiosidade e um outro biográfico, sobre os argentinos que alcançaram fama quase mítica: Gardel, Evita, Perón, Maradona, Che, Borges). Um leitor curioso necessariamente precisa se disciplinar e buscar os detalhes disto tudo numa bibliografia (que o livro oferece, afinal de contas). Palacios opta por fazer quase sempre algum contraponto com a história e cultura brasileiras, coisa que ajuda o leitor brasileiro a acompanhar o raciocínio do autor e as ideias que apresenta, mas que talvez seja um erro (pois se fosse mais neutro claramente não inviabilizaria uma eventual edição para o público europeu ou americano). O livro inclui dezenas de ilustrações e algumas caixas de textos que exploram com mais detalhes certos temas, como o vocabulário econômico, sexual e político. O que mais gostei no livro foram as seções de dedicadas a aspectos da língua (não apenas sobre o espanhol falado por lá, mas também nas explanações sobre o sotaque e o lunfardo, a gíria local). Bom livro. Por fim, registro aqui a definição mais divertida do livro (que não é de Palacios, mas sim de Paola Kullock): "Os argentinos possuem uma moral tripla, pois pensam uma coisa, dizem outra e fazem outra totalmente diferentes".
[início: 14/07/2013 - fim: 24/07/2013]
Os argentinos, Ariel Palacios, editora Contexto (editora Pinsky), 1a. edição (2013) brochura 17x22,5cm, 368 pág., ISBN: 978-85-7244-787-4

segunda-feira, 29 de julho de 2013

fragmentos de ulises, 1926

Experimentei um assombro quando foi publicado o último número da excelente revista eletrônica Scientia Traductiones, editada na UFSC pelos industriosos Gustavo Althoff e Mauri Furlan. Pois nela li um artigo, assinado por Afonso Teixeira Filho, que dava conta de uma tradução de trechos do Ulysses de James Joyce para o galego em 1926, apenas quatro anos após a publicação original do livro. Claro que tornou-se imperioso para mim conseguir um exemplar desta tradução. O texto de Teixeira Filho explicava que os trechos haviam sido republicados em uma edição de 2003, que fiz a Abebooks alcançar. Essa edição inclui os trechos originais traduzidos por Ramón Otero Pedrayo em 1926 (e publicados originalmente em uma revista chamada Nós, que existiu entre 1920 e 1936) e uma introdução assinada por Kerry Ann McKevitt (uma especialista inglesa em literatura galega). A introdução é parte de um trabalho acadêmico, produzido na Universidade de Birminghan, e discute a gênese da tradução de Otero Pedrayo. Segundo a autora há duas correntes: em uma delas Otero Pedrayo utilizou para sua tradução apenas a edição original do livro, publicado em 1922; enquanto em uma outra ele teria utilizado também os primeiros trechos já traduzidos para o francês (por Valéry Larbaud, publicados em 1922). A primeira tradução integral do Ulysses foi para o alemão, assinada por Georg Goyert e  publicada em 1927; já a primeira tradução integral para o francês (assinada por Auguste Morel) só seria publicada em 1929. A conclusão de McKevitt é salomônica, ou seja, a de que Otero Pedrayo deve ter utilizado basicamente o original inglês, eventualmente recorreu à tradução francesa, mas que esta não teve papel decisivo em seu trabalho. Os trechos traduzidos são dos episódios Ithaca e Cyclops. Não é muita coisa a bem da verdade. Do Cyclops são apenas dois trechos curtos (dentre os 33 do original) e do Ithaca - meu capítulo favorito - uns 50 fragmentos dentre os 309 originais. Claro, os bons jogos verbais e sugestões infinitas que Joyce sempre provoca estão ali. O fato de leitores galegos terem acesso ao Ulysses já em 1926 deve ser mesmo algo a se comemorar. Mesmo agora, quando temos acesso a quatro traduções diferentes para o português, três outras para o espanhol, uma em catalão - e dezenas de outras em línguas que não me atrevo a dizer que conheço, ler Joyce em galego (na verdade ler todo ele em galego) é uma diversão. De fato trata-se de algo que não é português nem tampouco espanhol. Ver os sons que costumamos associar ao "J" e ao "G" (em nosso português) grafados com "X" provoca um explosão de associações curiosas e tudo só ganha sentido completo quando começamos a ler em voz alta. Desta vez o texto do pobre Joyce ficou em segundo plano. Vamos em frente.
[início: 16/06/2013 - fim: 20/07/2013]
"Fragmentos de Ulises, 1926", James Joyce, tradução de Ramón Otero Pedrayo (texto de James Joyce), tradução de Carlos Acevedo (introdução de Kerry Ann McKevitt), Vigo: editorial Galaxia (colección Illa Nova), 1a. edição (2003), brochura 12,5x22 cm., 89 págs., ISBN: 84-8288-646-0

domingo, 28 de julho de 2013

o tango da velha guarda

Lemos "O tango da velha guarda" com prazer, mas não é um livro fundamental, transformador. Trata-se de um bom entretenimento. É um livro fácil de ler, que oferece ao leitor ao mesmo tempo algo rico em associações históricas e também exemplar por demonstrar como uma trama convencional pode ser bem contada quando um sujeito é hábil em seu ofício. Pérez-Reverte cria uma narrativa em três planos temporais (1928, 1937 e 1966) que se alternam como num jogo. No de 1928 encontramos em um navio que sai da Europa rumo a América do Sul os protagonistas principais (Max Costa, Mecha Inzunza e Armando de Troeye). O primeiro é dançarino profissional do navio - dançarino mundano, escolheu o tradutor; Mecha e Armando são um casal de jovens ricos, ela muito bonita, ele um compositor muito famoso). Os dias no navio são de sedução, que se dá através do tango que Max e Mecha dançam bem, e das conversas entre Max e Armando, que tem interesse em incorporar o ritmo do tango em sua próxima composição. Max é argentino de nascimento e conhece bem a origem do tango, nos bairros proletários de Buenos Aires. Armando acaba convencendo Max a levá-los (ele e Mecha) a um local onde o tango tradicional seja dançado. Isso, claro, envolve alguns riscos, levando os três a uma situação limite. O leitor acompanha o desenvolvimento da história com interesse crescente, pois o ritmo é de uma história policial (como Pérez-Reverte alterna esses acontecimentos com os dias de Mecha e Max na ensolarada Sorrento de 1966 o leitor sabe algo do futuro dos dois, mas tem curiosidade em saber como ambos chegaram até aquele ponto de suas vidas). Após apresentar os sucessos de Max, Mecha e Armando em Buenos Aires Pérez-Reverte avança sua história em dez anos. No final da década de 1930 já se vive as tensões que culminarão na segunda grande guerra. Max se envolve em uma outra sedução, aquela que é mais próxima dos jogos de espionagem, de interesses cruzados entre fascistas, comunistas, ingleses, italianos e espanhóis (estes últimos já em aberto conflito armado em sua guerra civil). Resolvidos os sucessos deste segundo trecho do livro Pérez-Reverte avança trinta anos em sua história e desenvolve o jogo final de Max (ao qual o leitor já havia sido apresentado logo no início do livro). Ele está às voltas com duas questões delicadas para resolver. Uma mundana, que envolve sua autoestima, suas paixões e um balanço final das escolhas que fez na vida; a outra envolve o uso das habilidades profissionais que desenvolveu (mas estavam aposentadas). Suas  técnicas e profissionalismo são colocados à prova uma vez mais, quando ele tem de ajudar o filho de Mecha, um excelente enxadrista envolvido numa disputa com um campeão mundial russo. Como em qualquer romance longo e ambicioso (como é o caso), há um acúmulo de temas que podem ou não funcionar bem juntos. Pérez-Reverte discute basicamente a luta de classes, como as vidas das pessoas comuns - e o arrivismo inerente a quem almeja melhorar de vida e de status social - são afetadas nas transformações políticas e econômicas geradas pelos grandes jogos de poder, no caso, a aparente tranquilidade dos anos que se seguiram a primeira grande guerra, a guerra civil espanhola e a guerra fria, os tais três planos temporais da história. É um livro bem resolvido, a trama é mesmo interessante e são oferecidas ao leitor muitas passagens realmente boas, mas falta algo nele. Fica implícito em "O tango da velha guarda" o quão difícil é para um autor ficar satisfeito com as coisas que inventa antes de finalmente publicá-las, apresentá-las ao público leitor. Arturo Pérez-Reverte começou a escrever esse livro em janeiro de 1990, mas só alcançou terminá-lo e publicá-lo em junho de 2012. São vinte e dois anos, um bocado de tempo. Não sei os motivos que o fizeram esquecer do projeto por tanto tempo e/ou mantê-lo por tanto tempo em gestação até alcançar publicá-lo (Não tive paciência de procurar os motivos, mas achei um blog em que Pérez-Reverte conta, após a publicação original, alguns destes porquês. Entusiastas de gênese literária gostam particularmente de materiais assim; li um bocado, mas talvez só tenha sentido acompanhar tudo se você realmente gostar destas coisas). De qualquer é um livro que consegue se defender sozinho e é também algo cinematográfico (ou apto a ser adaptado para o cinema) como, de resto, quase todos os demais livros dele que já li.
[início: 06/07/2013 - fim: 15/07/2013]
"O tango da velha guarda", Arturo Pérez-Reverte, tradução de Luís Carlos Cabral, Rio de Janeiro: editora Record, 1a. edição (2013), brochura 15,5x23 cm., 389 págs., ISBN: 978-85-01-40276-9 [edição original: El tango de la Guardia Vieja (Madrid: Alfaguara) 2012]

sábado, 27 de julho de 2013

paisagem com grão de areia

Tudo sobre meu assombro com a poesia poderosa de Wislawa Szymborska já falei quando li coisas dela primeira vez, na edição assinada pela tradutora Regina Przybycien e que resenhei aqui. Mas em outubro passado, flanando pelo Rio de Janeiro, entre um trabalho feliz na UERJ e encontros doces com Gabriella, Guto e Maria Luíza, eis que descobri uma edição portuguesa de seus poemas, editada em 1998 pela Relógio D'Água (que está a nos dever uma nova tradução do Ulysses, mas essa é outra história). Que beleza! Assim como na seleção de Regina Przybycien essa edição é bilíngue, mas essa informação só serve para dizer que os olhos teimam em espiar os originais buscando pistas, mas o polonês é um completo hieróglifo para este pequeno anão de província, que mal e porcamente lê seu português (mas aprendi que ryba é peixe e isso basta para alegrar um sujeito). Livros assim lê-se aos poucos, principalmente pelo fato do português de Portugal oferecer ritmos e sons algo diferentes, que o leitor tem de respeitar (e o tolo acordo ortográfico não será capaz de fazê-los desaparecer). São exatos cem poemas, cada um deles com uma proposta mágica para o leitor. Cabe dizer que a edição original, de 1996, ano em que Szymborska recebeu o prêmio Nobel, eram 102 os poemas, selecionados dentre aqueles publicados a partir de 1957. Os temas são vastos, mas se repetem o infinito, o cosmos, os planetas, as estrelas e a tecnologia, em contraste com os homens, os animais, os sonhos, a ironia e o tempo. Ela fala das guerras e da morte (como se fosse fácil falar destas cousas) e também do enigma que é a poesia e seu ofício. Há um poema que parece explicar "A educação pela pedra" (de nosso João Cabral de Melo Neto), noutro Szymborska explica a grande sorte que é não se saber exatamente em que mundo se vive. São tantas as maravilhas, que poeta especial foi esta senhora. Lendo é tão óbvio, mas somente os poetas fortes sabem tornar claras certas cousas, como a distinção terrível entre realidade e sonho em que ela grafa: "A fugacidade dos sonhos leva a que a memória os sacuda facilmente de si. /  A realidade não tem que recear o esquecimento. / Pesada é a sua arte. / Senta-nos no pescoço, pesa-nos no coração, enreda-se nos pés. / Dela não há fuga possível porque em cada fuga nossa a temos por companhia. / E não há estação no decurso da viagem em que não esteja à nossa espera."
[início: 29/10/2012 - fim: 09/07/2013]
"Paisagem com grão de areia", Wislawa Szymborska, tradução de Julio Sousa Gomes, Lisboa: Relógio D'Água editores, 1a. edição (1998), brochura 14x21 cm., 359 págs., ISBN: 972-708-490-7 [edição original: Widok z ziarnkiem piasku (Poznan: Wydawnictwo a5) 1996]

quarta-feira, 24 de julho de 2013

the works of master poldy

Há livros que jamais serão editados em uma versão eletrônica, pois isso seria um anacronismo (antes seria uma trapaça perversa com o leitor, uma camisa de força limitante). Livros assim só tem sentido ao serem folheados, ao transmitirem pelo contato algo da magia do impressor, ao possibilitarem que todos os detalhes sejam devidamente apreciados, ao trazerem consigo os ruídos e os cheiros das oficinas onde foi produzido, ao exporem o resultado da colagem, da costura, dos cortes, do acabamento. "The works of Master Poldy" é o resultado da colaboração do industrioso Stephen Cole, um ativista cultural americano, com Jamie Murphy, um habilidoso impressor gráfico irlandês. Steve e Jamie produziram um livro que brota do Ulysses de James Joyce (na verdade brota da própria Molly Bloom, quase no fim do livro, no último episódio, Penelope, quando ela diz: "I declare somebody ought to put him in the budget if I only could remember the one half of the things and write a book out of it the works of Master Poldy yes”). Assim, nele estão reunidas frases e aforismos, reflexões e observações, passagens curtas quase todas, mas seminais cada uma, recolhidas pacientemente do Ulysses. O livro inclui também uma apresentação de Anne Fogarty, que discute como algo da sabedoria de Leopold Bloom foi destilada nele, para alegria dos apreciadores da obra de Joyce (e da legião de neófitos que sempre são atraídos por sua poderosa e encantadora prosa). O livro foi impresso nas oficinas da Distillers Press, parte do departamento de artes visuais do "National College of Art and Design" de Dublin e editado pela The Salvage Press, editora irlandesa especializada em pequenas edições e livros artesanais. O resultado é uma obra de arte, pura tipografia, puro gravado, puro deleite. Para Steve Cole esse é um pequeno tributo à visão libertadora de Joyce traduzida no Ulysses (assim como à beleza da arte da impressão e a perenidade desse personagem que gostaríamos de ter conhecido, que aprendemos a amar, leopold Bloom). Há um vídeo no YouTube onde Steve e Jamie apresentam o livro (que ajuda a entender o projeto, mas, acredite em mim, nada supera o prazer táctil de ter o volume ao alcance das mãos). Por fim, se você quiser saber mais, dê uma espiada nele no site da Salvage Press e bom divertimento.
[início: 24/06/2013 - fim: 24/07/2013]
"The works of Master Poldy", James Joyce, Stephen Cole, Jamie Murphy, Dublin: The Salvage Press, 1a. edição (2013), capa-dura 27,5x39cm, 36 págs., sem ISBN

sábado, 20 de julho de 2013

tiempos ridículos

Em "Instigations", um livro seu publicado em 1920, Erza Pound escreveu: "Artists are the antennae of the race but the bullet-headed many will never learn to trust their great artists.", ou seja, numa tradução frouxa, "Os artistas são as antenas de uma raça, mas a maioria dos cabeças ocas nunca aprenderão a confiar nos grandes artistas". Javier Marías é certamente um dos grandes artistas de nosso tempo, não porque saiba tudo sobre todas as coisas passadas e futuras (obviamente), mas sim porque é um sujeito que entende particularmente bem a complexidade do comportamento humano e, a exemplo de Henry James e Flaubert, enumerados por Pound para exemplificar seu ponto de vista, oferece reiteradamente através de seus textos oportunidades para que seus leitores compreendam melhor as metamorfoses e as sutilezas do comportamento humano. Isso é importante pois (citando Pound novamente), "é sempre fácil para as pessoas desaprovarem o que não são capazes de compreender". Em "Tiempos ridículos" encontramos 96 crônicas, publicadas no "El País Semanal" entre fevereiro de 2011 e fevereiro de 2013. São textos recentes, que não perderam nada de seu vigor e atualidade. Vários tem algo de premonitórios, de uma clarividência que quase chega a humilhar o leitor. E isso se dá tanto no campo da política (nos artigos dedicados a descrever os sucessos do governo de Mariano Rajoy), quanto no futebol (quando é sobre treinador de futebol José Mourinho que Marías escreve), ou mesmo na cultura (seus artigos sobre o uso maciço da tecnologia como ferramenta de controle social - ao qual a população voluntariamente se afeiçoa - são incríveis). Claro, há artigos que são mais inspirados que outros, mas a qualidade dos textos é sempre muito boa. Seu sarcasmo, feroz, nunca é dirigido aos leitores ou a população espanhola indistintamente, mas qualquer sujeito que leia os artigos identifica rapidamente o tipo de pessoa e/ou comportamento e/ou atitude que está sendo dissecada. Sua ironia garante gargalhadas sem fim. Sua inteligência nos obriga a procurar mais informações, melhorar nossa educação, aprimorar nosso gosto. Ele provoca no leitor um misto de admiração, espanto, assombro, reverência e fascinação. Já tive a chance de comentar várias vezes aqui a abrangência de sua visão, a completude de sua crítica, a implacabilidade de seus argumentos. Dos 96 artigos acredito que uns setenta poderiam ser adaptados facilmente para descrever o que acontece e/ou aconteceu no Brasil recentemente, há similaridades incríveis entre a Espanha e o Brasil quando se trata da depressão diária que as notícias trazem, quando se trata da má fé objetiva dos políticos, da estupidez cúmplice da população, da cegueira coletiva do país, a incapacidade da maioria entender coisas simples da economia, da política, das relações e compromissos sociais. Poderia aqui citar páginas e páginas que me impressionaram, mas transcreverei algo que pode ser utilizado para entender a paralisia e o transe que assombra a cidade onde moro, Santa Maria, onde aproximadamente 250 jovens morreram em um incêndio: "Nadie olvidará lo sucedido en Nueva York y Washington en 2001, ni lo acaecido en Madrid y Londres algún tiempo después. Pero nadie pude pensar en ello continuamente, eso tampoco. Excepto, quizá, los familiares y allegados de los muertos, marcados para siempre, asimismo "muertos" por su desgracia. ¿Continuamente?  No sé. Sí en un día como hoy, desde luego, cuando se conmemora oficialmente a las víctimas, y "oficialmente" quiere decir con artificialidad y no excesiva sinceridad, como quien cumple con un deber de calendario. En 1658, el médico inglés Sir Thomas Browne, a quien traduje al español, escribió lo seguiente (y sé que he citado estas frases muchas veces, pero es que acuden a mi mente a menudo): "Apenas recordamos nuestras dichas, y los golpes más agudos de la pena nos dejan tán solo punzadas efímeras. El sentido no tolera las extremidades, y los pesares nos destruyen o se destruyen. Llorar hasta volverse piedra es fábula: las aflicciones producen callosidades, las desgracias son resbaladizas, o caen como la nieve sobre nosotros; lo cual, sin embargo, no es un infeliz entumecimiento. Ignorar los males venideros, y olvidar los males pasados, es una misericordiosa disposición de la naturaleza, por la cual digerimos la mixtura de nuestros escasos y malvados días; y, al no recaer nuestros liberados sentidos en hirientes remembranzas, nuestras penos no se mantienen en carne viva por el filo de las repeticiones". A experiência de ler esses textos é intransferível, portanto, para quem pretende conhecer algo não ficcional de Javier Marías recomendo sem medo a leitura de Mano de sombra, Seré amado cuando falte, A veces un caballero, Harán de mí un criminal, El oficio de oír llover, Demasiada nieve alrededor e Ni se les ocurra disparar. E bom divertimento.
[início: 20/06/2013 - fim: 09/07/2013]
"Tiempos ridículos", Javier Marías, Madrid: Alfaguara (Grupo Santillana de ediciones), 1a. edição (2013), brochura 14x22 cm, 367 págs. ISBN: 978-84-204-1440-9

quarta-feira, 10 de julho de 2013

os gatos de copenhague

A história de como uma carta de James Joyce para seu neto Giorgio metamorfoseou-se em livro já contei aqui, quando fiz o registro de leitura da versão original publicada no ano passado pela Ithys Press. Pois acontece que desde o início do ano passado a obra de Joyce está em domínio público e desde então um número grande de novas traduções e edições de sua obra têm sido publicadas, adaptadas e/ou encenadas. Foi o caso desta carta, escrita em 1936 e depositada há anos na Zürich James Joyce Foundation. Claro, há um detalhe antiético na forma como os originais foram apropriados pelos editores irlandeses, mas isto você, caro leitor curioso, pode descobrir no post original. Trata-se de uma história muito curta, mas divertida, onde Joyce descreve alguns aspectos da vida em Copenhagen. Nada transcendental, mas os entusiastas das cousas de Joyce não se cansam de colecionar mimos como este. Dirce Waltrick do Amarante, conhecida especialista em Joyce, professora da UFSC, assina esta primeira tradução para o português, editada pela Iluminuras. As ilustrações são assinadas por Michaella Pivetti, uma designer italiana radicada no Brasil. O humor de Joyce está ali no texto, mas como todo livro cujo público alvo é o infantil, depende muito de como um adulto leitor irá contar a história, como irá conduzir as reflexões que Joyce compartilha com seu neto. Eu, ai de mim, que havia prometido enviar o original em inglês para minhas sobrinhas Clara e Victória há tempos, lá nas férias de verão, ainda não o fiz. Paciência, agora tenho este outro belo volume para enviar também. Logo veremos se não vou me esquecer novamente. E viva Joyce! Evoé!
[início - fim: 16/06/2013]
"Os gatos de Copenhague", James Joyce, tradução de Dirce Waltrick do Amarante, ilustrações de Michaella Pivetti,  São Paulo: editora Iluminuras (selo Livros da Ilha), 1a. edição (2013), brochura 21,5x23 cm., 24 págs., ISBN: 978-85-7321-411-6 [edição original: Dublin: Ithys Press, 2012]

sexta-feira, 5 de julho de 2013

bourbon street

"Bourbon Street" é uma graphic novel dividida originalmente em duas partes, mas somente a primeira delas já foi traduzida para o português (o segundo volume foi publicado no final do ano passado). O texto é de Philippe Charlot e a arte feita a quatro mãos, pelos ilustradores Aléxis Chabert (que assina os desenhos) e Sébastien Bouet (responsável pelo processo de colorização). É uma história algo amarga, ainda sem desfecho (claro), mas que o leitor pode apreciar satisfatoriamente. Em New Orleans um grupo de velhos jazzistas há muito aposentados volta a se reunir (Oscar é um baterista bonachão, Daroll um baixista calado e Alvin, o bandleader, um guitarrista algo sofisticado - ou seja, os velhos e bons estereótipos de bandas de jazz estão presentes no traço de Alexis Chabert). Alvin é o inspirador do reencontro e propõe aos dois amigos uma última turnê. Para convencê-los disto ele precisa localizar o trompetista Cornelius, o quarto músico do conjunto original. Cornelius desapareceu da vida dos demais após a morte de Angelina, crooner da banda e que estava envolvida de alguma forma com Cornelius (e aparentemente também com Alvin, mas claro, somente o segundo volume do livro resolverá a questão). O fantasma de Louis Armstrong acompanha o plano dos velhos jazzistas, como uma espécie de padrinho. Divertido, mas nada espetacular.
[início - fim: 03/07/2013]
"Bourbon Street - Os fantasmas de Cornelius", Philippe Charlot, Aléxis Chabert, Sébastien Bouet, tradução de Paola Felts Amaro, Porto Alegre: editora 8Inverso (selo graphics), 1a. edição (2012), capa-dura 21,5x28,5 cm., 56 págs., ISBN: 978-85- 62696-16-9 [edição original: Bourbon Street - Les fantômes de Cornelius (Charnay Les Macon: Bamboo édition), 2011]

quinta-feira, 4 de julho de 2013

cinco séculos de poesia

Este é um livro para se ler um tanto por vez, por acaso, sem açodamentos. Alexei Bueno reune nele parte das traduções que fez nos últimos vinte, trinta anos. A mais antiga é de 1980 e a mais recente de 2011. Não são muitas a bem da verdade (são doze autores e trinta e seis poemas no total, mas o conjunto funciona bem junto, trata-se de um livro bom de se ter à mão). A edição, bilíngue, oferece ao leitor a chance de experimentar as soluções de Alexei e tentar imaginar as suas (traduzir - ou mesmo tentar ler algo em outra língua - sempre é um jogo que diz muito de nós mesmos, de nossa história, educação e escolhas, de nossas filiações, sonhos e desejos). Alexei é também ele um poeta, atua como editor e crítico literário há tempos. Sobre os autores que escolheu traduzir não há reparos a fazer, do inglês ele oferece cousas de William Shakespeare (como um tradutor pode fugir dele, sempre soberbo?), Henry W. Longfellow, Alfred Tennyson e Edgar Allan Poe; do francês Gérard de Nerval (enigmático e mágico), Stephane Mallarmé e Boris Vian; do alemão Ludwig Uhland; do espanhol San Juan de La Cruz e José Asunción Silva (dois poetas separados por três séculos) e do italiano Torquato Tasso e Giacomo Leopardi. Num mundo amalucado, cruel e torpe, a poesia sempre ajuda a inspirar humanidade em um sujeito. A edição inclui um prefácio assinado pelo autor e pequenas biografias dos autores traduzidos, o que ajuda muito o leitor a localizar a origem dos poemas. Belo livro.
[início: 14/03/2013 - fim: 01/07/2013]
"Cinco séculos de poesia - edição bilíngue", Alexei Bueno, Rio de Janeiro: editora Record, 1a. edição (2012), brochura 14x21 cm., 143 págs., ISBN: 978-85- 01-09861-0

quarta-feira, 3 de julho de 2013

contos maravilhosos infantis e domésticos 2

Nesse volume encontramos a tradução de 70 narrativas fantásticas, 70 contos de fada, como costumamos comumente chamá-los, parte do segundo tomo das histórias compiladas pelos irmãos Grimm e publicadas em 1815 (o primeiro tomo incluí 86 contos e foi publicado originalmente em 1812). A bem da verdade esta não é a versão definitiva dos contos, que foram trabalhados continuamente por eles e mereceram diversas modificações. De qualquer forma é divertido ler o conjunto de histórias, que se é muito heterogêneo, inclui coisas bem interessantes. A edição da Cosac Naify inclui uns mimos para o leitor: o prefácio original do livro, folhas coloridas, capa robusta com impressão em alto relevo, uma caixa que acomoda bem os dois tomos e diversas ilustrações do gravador, poeta e cordelista pernambucano J. Borges. Apesar de conhecer e gostar muito do trabalho de J. Borges acho que os contos e as ilustrações dele não funcionam bem juntos, parece algo artificial, estranho (o que prejudica os dois registros, o literário e o plástico). Paciência. Já as histórias se defendem sozinhas. Algumas são bem engenhosas e longas, outras bem curtas e algo toscas. Há quase sempre um jogo mental nelas, uma repetição que envolve três irmãos, três irmãs ou três amigos (os mais jovens sempre são mais espertos e afortunados). Histórias envolvendo os números dois, quatro, oito e doze também se repetem várias vezes. Quase sempre encontramos metamorfoses amalucadas (não apenas os homens se transformam em animais e vice-versa, mas também em objetos inanimados). Nada é politicamente correto, nem exatamente moral. Há também muita violência (gratuita quase sempre, e não exatamente justificada) nas histórias. Como bem lembra Robert Graves em relação aos mitos gregos, é importante tentar distinguir os mitos autênticos de vários outros tipos de registros: como alegorias filosóficas; sátiras; contos; propaganda política; lendas morais; anedotas e narrativas (romanceadas, épicas ou realistas). Digo isso pois muitos dos contos de fada deviam ter funções sociais bem distintas do puro entretenimento. Preciso estudar isso melhor, confesso. Os contos mais conhecidos, como Rapunzel, Chapeuzinho vermelho, A gata borralheira, O gato de botas e A bela adormecida fazem parte do primeiro tomo destas histórias, que ainda não li, pois emprestei aquele volume ainda nas férias de verão para don Albano Pepe, amigo querido, que parecia à época urgente de imersão na mitologia e no fantástico. É tempo. Precisamos flanar pelos campos de Itaara e conversar um dia sobre estes dois livros. Evoé.
[início: 30/04/2013 - fim: 02/07/2013]
"Contos maravilhosos infantis e domésticos, 1812-1815 - tomo 2", Jacob Grimm, Wilhelm Grimm, ilustrações de J.Borges, tradução de Christine Röhrig, São Paulo: editora Cosac Naify, 1a. edição (2012), brochura 16x21,5 cm., 288 págs., 19 ils., ISBN: 978-85-405-0266-6 [edição original: Kinder und Hausmärchen / 1812-1815 (Berlin: Georg Andreas Reimer) 1815]