Javier Marías reúne em "El oficio de oír llover" 99 crônicas, publicadas originalmente na revista El País Semanal (para onde passou a escrever depois de um terrível caso de censura gerado por seus antigos editores). São dois anos de ensaística (ainda não estou convencido que seus textos sejam meras crônicas de jornal), publicados entre fevereiro de 2003 e fevereiro de 2005. Por conta da mudança de casa editorial ele retoma o procedimento de se apresentar (comum nas séries iniciais de crônicas: Pasiones pasadas, Vida de fantasma, Mano de Sombra). Ele fala de suas obsessões, de suas motivações como cronista, como sujeito que observa e lê seu tempo sistematicamente, que compartilha suas impressões com os novos leitores (apesar de muito provavelmente boa parte deles terem acompanhado sua disposição de mudança). O período dessas crônicas é particularmente movimentado, pois inclui o último dos anos do governo Aznar e o primeiro do governo Zapatero, como primeiro-ministro espanhol. A transição dá-se exatamente em 11 de março de 2004, quando um atentado terrorista em Madrid muda o rumo das eleições gerais espanholas. A mentira, o deboche e o uso político do atentado por Aznar reverte a tendência favorável a seu grupo político e dá a vitória ao grupo de Zapatero por estreita margem de votos. Marías reflete sobre seu tempo, fala sobre seu bairro, sua cidade, seu país, mas também sobre questões de alhures (os temas são variados: sobre um colega escritor austríaco, uma lei estranha que é aprovada na Alemanha, uma rebelião de presos nas selvas do norte brasileiro, sobre os filmes edulcorados de Hollywood). Ele pratica um feminismo não militante, reflete (quase sempre com ironia e sarcasmo) sobre questões jurídicas, questões filosóficas, as relações entre os sujeitos de sua cidade. É implacável com a corrupção, com a influência absurda da igreja católica na sociedade espanhola, com os desmandos dos políticos. O mais intolerável para ele é a imbecilidade reinante de seu tempo (que ele afirma ser perigosa ao corpo social como um todo, antes de tudo mais, pois aos imbecis cometer qualquer crime é justificável por seus fins, praticar qualquer censura é justificável antecipadamente, qualquer vilania é tolerável quando praticada em nome de um bem comum, qualquer ilação falsa e mentira necessárias se o objetivo é tanger uma população de iletrados, qualquer propósito pessoal possível de ser alcançado através de desvios e de verbas oficiais). Para quem vive no Brasil, onde o governo de plantão pratica exatamente estes procedimentos canalhas e onde até professores universitários são ingênuos a ponto de se tornarem estúpidos, pouco disso é novidade. Todavia Marías acrescenta a seus argumentos uma refinada lógica e uma poderosa erudição. Sua capacidade de convencimento é impagável. Mas nem tudo é árido desta vez. Há também leveza. São histórias de futebol, lembranças das amigas de sua mãe, comentários sobre escritores que admira, os livros que lê, as viagens que faz). Há muitas questões vernáculas, sobre o uso da língua no dia-a-dia, filologia e tradução). Seu senso de liberdade e individualidade é algo que sempre me surpreende. Que sujeito! Agora só me resta um volume de suas crônicas para ler (a corrrespondente aos anos 2005 e 2006, pois fui afoito e já li a dos anos 2007 e 2008). Ouro fino, que guardarei para os dias em que os prazeres da inteligência se fizerem urgentes, para os dias em que a razão e a serenidade para entender este admirável velho mundo me faltarem. [início 10/08/2011 - fim 19/08/2011]
"El oficio de oír llover", Javier Marías, Madrid: Alfaguara (Grupo Santillana de ediciones) , 2a. edição (2005), brochura 14x22 cm, 316 págs. ISBN: 84-204-6887-8
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