quarta-feira, 21 de dezembro de 2016

the schooldays of jesus

Há três anos, quando li "A infância de Jesus", não tinha ideia que esse livro do Coetzee seria o primeiro de uma nova trilogia (como aquela dos bons "Boyhood", "Youth" e "Summertime"). Lembro do espanto com a proposta, algo amalucada, sobre Novílla, uma cidade onde os habitantes, vindos de um lugar inominado, do qual nada lembram, começam uma nova vida. Como numa espécie de repovoamento da Terra pós dilúvio, eles chegam até Novílla de barco, concebidos imaculadamente, sem parentescos entre si, ganham novos nomes e ocupações. A organização social dali parece ser como o sonho de um velho comunista que vê seus projetos utópicos consagrados. Todos falam espanhol. Pensei no livro como uma alegoria, um contido e mágico realismo, um enigmático romance de fantasia, onde encontramos releituras de passagens bíblicas e literárias (algo do "Don Quijote" e de alguns contos de fada, algo do "Cândido" e do "Admirável Mundo Novo"). Coetzee faz seus personagens discutirem temas filosóficos importantes (a natureza do mal, a origem da cognição, a lei do terceiro excluído). Apesar da estranheza o leitor fica preso ao destino daqueles personagens bizarros, cujos nomes parecem definir sua vocação. No início deste 2016 Coetzee publicou a continuação de sua história, um volume intitulado "The Schooldays of Jesus".  Entende-se melhor o primeiro livro, mas novos enigmas são apresentados. Trata-se de um romance onde a ênfase continua na discussão de temas metafísicos, desta vez sobre a teoria dos números, a harmonia das esferas de Pitágoras, a húbris grega. O volume anterior termina com a fuga de Inés, Simón e Davíd de Novílla (devido as dificuldades de Davíd adaptar-se ao sistema escolar da cidade). Eles rumam para Estrella, uma cidade menor, mais rural que urbana, onde temporariamente trabalham numa fazenda, coletando frutas. A questão escolar de Davíd ainda precisa ser solucionada. As proprietárias da fazenda onde Inés e Simón trabalham se oferecem para zelar pelos estudos de Davíd (são as três graças, ou as três parcas, gregas. Inicialmente ele é apresentado a um engenheiro que lhe dá noções básicas de matemática, mas ele é um aluno difícil e esse tutor sugere que ele entre para uma das academias da cidade (além das escolas convencionais Estrella tem três "academias": uma dedicada ao "canto", outra a "dança" e uma terceira ao "átomo"). A narrativa prossegue, cheia de desvios, acumulando personagens e histórias curtas (que discutem a natureza das paixões humanas, teoria musical; o aprendizado de técnicas de escrita como o ato de criar vida; definições para amor, ego e liberdade; as relações entre crime e castigo, o livre-arbítrio e o poder do estado). Com o tempo Davíd aprende a "dançar números", uma forma de conexão pura entre os homens e as estrelas. O livro termina com Davíd em transe, girando continuamente com um dervixe, experimentando algum tipo de contato com as esferas celestes, vendo estrelas como um Tycho Brahe, acoplado ao transcendental. A cada capítulo um leitor obcecado com associações (como eu) encontra diversos temas estimulantes. Mas este mar de associações intoxicou-me, ou melhor, intoxiquei-me sozinho tentando fazer associações. Talvez o inusitado dos nomes e atos dos personagens seja um tropo proposital de Coetzee, produzidos para induzir o leitor a buscar pistas falsas. Talvez o certo seja ignorar essa compulsão por entender o que há de criptografado na narrativa (se é que tais associações realmente existem, afinal não há Jesus algum na história e o simples paralelo bíblico aos sucessos do livro é algo óbvio demais). Talvez devamos aceitar apenas o que diz e faz Simón, o narrador, o personagem que ordena o caos de ideias e paixões dos demais, que guia o leitor pelas ilhas serpeantes das digressões de Coetzee, que predica como um profeta e acompanha diálogos como um filósofo. Definitivamente, enredo e venturas dos muitos personagens parecem ser apenas distração, cenografia, truques de um mágico habilidoso. Contar histórias é fácil, filosofar é difícil. O que verdadeiramente estimula, desafia e ilumina os homo sapiens sapiens é a filosofia, parece nos lembrar, professoral, Coetzee). Vamos ver como ele apresentará os novos sucessos de Simón, Inés e Davíd no último volume da trilogia. Daí, talvez, possamos entender mais. Vale. Em tempo: esse é o último registro de leitura do ano. Antes do solstício farei um balanço dos livros lidos no ano.
[início: 23/11/2016 - fim: 01/12/2016]
"The Schooldays of Jesus", J.M. Coetzee, London: Harvill Secker / Vintage (Penguin Random House UK), 1a. edição (206). brochura 13,5x21,5 cm., 260 págs., ISBN: 978-1-911-21536-3
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Balanço final: 21/12/2016 [solstício de verão]
Esse foi um ano bastante complicado, terrível, aborrecido, pesado, dominado pela estupidez reinante deste desgraçado país, repleto de pequenos dissabores que conseguiram ofuscar as poucas alegrias que vivi (seria hipocrisia não ficar satisfeito com os sucessos de Helga e Natália, ou com a saúde dos gatos, ou com as descobertas no novo apartamento). De qualquer forma, assim como num dia disse Flaubert, meu coração está transformado em uma necrópole. Arre! Vamos em frente. Ao finalizar 2016 alcancei o décimo ano de registros deste “Livros que eu li”. Se 2015 foi o ano de uma maioria folgada de romances, esse 2016 foi o ano dos livros de crônicas, dos livros de ensaios, dos livros de não-ficção. Fiz 111 registros de leitura, bem próximo da média dos dez anos do blog. Foram 30 de crônicas e ensaios (27% do total); 20 romances (18%); 11 de histórias em quadrinhos, graphic novels, cartuns ou mangás; 10 de poesia; 8 de contos; 7 de perfis, biografias, memórias e relatos; 4 novelas; 4 dedicados ao público infanto-juvenil; 4 livros de arte; 3 romances policiais; 2 de gastronomia; 2 coleções de aforismos; 2 de turismo e apenas um dos seguintes quatro gêneros: didáticos; catálogos; divulgação científica e música (o adorável livrinho de canções irlandesas do Robert Gogan, joyceano dos bons que conheci em Dublin). Aliás li um bocado de coisas relacionadas a Joyce e a Irlanda: o fenomenal guia de leitura do Ulysses assinado pelo Caetano Galindo; três ou quatro guias literários de Dublin; a biografia do tradutor argentino do Ulysses, Salas Subirat; o livro dedicado a cerveja Guinness; os poemas reunidos em Pomes Pennyeach; o belo The Ondt and the Gracehoper (parte do Finnegans Wake); a divertida versão em mangá do Ulysses; e o bom livro da catarinense Dirce Waltrick do Amarante sobre os tradutores brasileiros de Joyce. Li três livros do romeno Cartarescu, sempre uma surpresa; três do bom holandês Nooteboom (inclusive um comemorativo dos 500 anos de morte do Bosch) e três do argentino Giardinelli. Gostei muito do catálogo de uma exposição que não vi, a "Rastros", do piauiense Weaver Lima. Li com calma várias coletâneas de poesias: a do Mautner, a da Szymborska, a do Marco de Menezes, da Cristina Macedo, do Ricardo Freire, entre outros. Consegui ler um Javier Marías (suas notas de aula dedicadas ao Quijote, neste quarto centenário da morte de Cervantes), e dei sorte, pois um ano sem ler Javier Marías é um ano perdido. Não cumpri várias promessas (não terminei o Tristram Shandy, nem o Quijote, nem os contos do Tolstói, nem os ensaios do Haroldo de Campos compilados pelo Marcelo Tápia, nem os poemas do Waly Salomão). Não consegui terminar de organizar o livro do Abdon Grillo. Organizei um Bloomsday em homenagem ao Antônio Houaiss (por conta dos 50 anos de sua tradução do Ulysses). Enfim, consegui manter minha cota de livros em inglês (11% do total) e em espanhol (24% do total); alcancei ultrapassar os 300 registros de romances, os 200 registros de livros de ensaios e os 125 de coletâneas de contos; tive a sorte de encontrar algum descanso com a leitura de mais de cem escritores diferentes, companheiros de viagem neste 2016. Logo veremos os sucessos de 2017. Vale. E viva a dona Vic.

sábado, 3 de dezembro de 2016

strong opinions

Esse livro me acompanha há tempos. Lembro-me de ter começado a lê-lo em um hotel madrilenho, ainda no início do ano passado. Desde então ocupei-me de tantas outras coisas e leituras, mudei de apartamento, tentei organizar meus livros em suas novas e alvas moradas, mas esqueci as "strong opinions" de Nabokov na pilha de guardados. Reencontrei-o no início desta primavera brasileira, terrível e estúpida como poucas. Ler Nabokov sempre é uma festa para os sentidos. O sujeito domina tão completamente a linguagem, expressa-se com tal precisão, encadeia argumentos e silogismos tão bem escritos que nunca aborrece o leitor. Em "Strong opinions" estão reunidos três conjuntos distintos de textos dele. A primeira parte é justamente a mais extensa. Envolve a transcrição de 22 entrevistas, originalmente publicadas em jornais ou revistas, entre 1962 e 1972. Há uma natural repetição das perguntas (jornalistas não são usualmente reconhecidos por sua originalidade), mas a cadência e o tom das respostas refletem distintos estados de ânimo de Nabokov, que por vezes enfatiza um aspecto ou outro dos questionamentos. Zeloso de tudo o que produzia, Nabokov só respondia perguntas por escrito, inclusive cobrando a correção do material imediatamente antes da composição final e/ou impressão. O período das entrevistas corresponde aos anos que se seguiram ao sucesso absoluto de seu livro "Lolita" e da versão cinematográfica dirigida por Stanley Kubrick. Parte em função da notoriedade e parte em função da estabilidade financeira alcançada permitiu que Nabokov deixasse de ministrar aulas (já registrei aqui as transcrições de seus cursos de literatura russa e aquele dedicado, grosso modo, a literatura em língua inglesa, francesa e alemã). Nesta época ele radicou-se na Suíça e passou a dedicar-se exclusivamente a produção literária (e as inevitáveis excursões de caça a borboletas). A segunda parte é bem curta. São reproduções de cartas que Nabokov enviou a redação de jornais e revistas literárias, entre 1961 e 1971. São cartas curtas, onde em geral ele corrige furiosamente alguma informação pouco acurada sobre seus livros, sua vida ou suas declarações públicas. A terceira e última parte é mais técnica. Estão nela reunidos 14 ensaios longos, produzidos entre 1939 e 1970, publicados originalmente em jornais especializados ou revistas científicas. Cinco deles são registros de classificação de borboletas por ele coletadas (Lepidopterologia nunca foi apenas uma distração). Uns três ou quatro são ensaios sobre o ofício da literatura, de seu entendimento da técnica e da inspiração, do ofício da crítica. Um outro traz diatribe feroz dirigida as opiniões de Edmund Wilson sobre seu livro "Ada" (de 1969). Os demais são críticas literárias produzidas por encomenda. Nabokov fala de Hodasevich, um importante poeta russo; de Sartre; de sua própria tradução de "Eugene Onegin" (de Pushkin); de uma questão jurídica associada a tradução francesa de "Lolita"; de Mandelstham, outro grande poeta russo; de uma outra tradução de "Eugene Onegin", produzida por uma americana que o aborreceu (talvez ela nunca tenha lido nada em russo na vida, diz ele). Quase todos os textos deste livro são cheios de humor, quando não ferino sarcasmo. Envolvem registros de memória, dos tempos vividos na Rússia, na Europa e nos Estados Unidos, refletem um conhecimento refinado das coisas (não apenas de literatura, mas também de política, relações internacionais, interações pessoais, cultura, arte e da sociedade de seu tempo). Devia ser um inferno conviver com ele, mas o sujeito sabia defender suas opiniões e sua obra. Vale.
[início: 20/09/2016 - fim: 24/11/2016]
"Strong opinions", Vladimir Nabokov, New York: Vintage International edition (Penguin Random House , 1a. edição (1990), brochura 13x20cm., 340 págs., ISBN: 978-0-679-72609-8 [edição original: (New York: McGraw-Hill Book Company) 1973]

sexta-feira, 2 de dezembro de 2016

a pedido do embaixador

Desde meados dos anos 1970, quando comecei a ler com método e disciplina, nunca me preocupei muito com o gênero, extensão, idade ou nacionalidade dos livros que me caem às mãos. Claro, aprendi cedo (e foi com a Dorothy Parker) que há livros que ao invés de serem abandonados displicentemente na estante e esquecidos merecem sim ser jogados pela janela, com fúria. Neste "Livros que eu li" é raro que eu fale muito mal de algum livro, pois desde o momento em que decido continuar com a leitura e terminá-la, sei que há algo neles que pode ser registrado, por mais ruim que tenha sido a experiência. Não é o caso deste "A pedido do embaixador". Que livro absurdo.  Fernando Perdigão deve ter ficado algo intoxicado após assistir muitas séries policiais na televisão ou lido toda uma coleção de romances policiais e resolveu escrever o seu. Inventou um protagonista, um detetive ("incorrigível" diz ele, informação que o editor achou importante incluir na capa). Todavia, o que o leitor encontra no tal detetive Andrade é uma caricatura patética, um personagem sem nenhum vestígio de verossimilhança e que não se presta nem para fazer o leitor dar boas risadas do absurdo da coisa toda. O elenco de personagens coadjuvantes brota completo de um manual de fórmulas para o gênero: um aprendiz (no caso uma aprendiz, uma inspetora recém promovida); um chefe que despreza seu comandado; um informante com contatos tão decisivos quanto improváveis; uma empregada cínica que é boa cozinheira; uma namorada que é prostituta nas horas vagas. Tudo é previsível, a trama é repetida e resumida para o leitor várias vezes, mas é frouxa e mirabolante demais. O narrador arrasta o leitor por páginas sem fim apenas para dar oportunidade e palco para o detetive pontificar com seu rosário de comentários homofóbicos, racistas e misóginos, xenófobos e machistas; repetir piadas de duplo sentido; disparar ameaças em todas as direções; explicitar mil vezes seus preconceitos, intratabilidade, truculência e inadequação social. Acho as iniciativas e leis politicamente corretas uma marca negativa de nosso tempo, sobretudo no Brasil, onde qualquer tentativa de uniformização social está fadada ao fracasso. Paciência. O mundo real e o mundo dos livros estão repletos de lorpas, de pessoas grosseiras e irascíveis, selvagens ou abobalhadas, limitadas e patéticas com as quais é possível conviver, porém o que Fernando Perdigão criou é apenas um pastiche que serve para nos lembrar das muitas vantagens da boa educação. E é só por isso que registro seu livro aqui. Vamos em frente (afinal o Nabokov já nos ensinou que não devemos nunca levar personagens literários a sério).
[início: 30/06/2016 - fim: 18/07/2016]
"A pedido do embaixador: Um caso ordinário do incorrigível detetive Andrade", Fernando Perdigão, Rio de Janeiro: editora Record, 1a. edição (2015), brochura 13,5x20,5 cm., 239 págs., ISBN: 978-85-01-10479-3

quinta-feira, 1 de dezembro de 2016

ensino de filosofia e currículo

Há dois meses, o acaso, sempre um fiel camareiro, colocou Ronai Rocha e eu próximos em uma fila de aeroporto. Íamos num mesmo voo para São Paulo. Ali não podíamos conversar, mas ao fazermos escala antes de nos tocar o outro trecho da viagem, o dele mais ao norte, o meu mais a oeste, deste pródigo e desgraçado Brasil, conseguimos dividir uns pães de queijo e um café. Ele contou-me detalhes de uma notícia desagradável, relacionada a um livro que acabara de escrever e fora rejeitado por conta de uma chicana jurídica. Cerrei os dentes para não escarnecer em voz alta o nome da tola viúva do Paulo Freire que o havia prejudicado. A estupidez, já se sabe, sempre provoca calamidades. Paciência. Pouco tempo depois, já de volta, como Mário de Andrade, abancado à escrivaninha, só que em Santa Maria, na minha casa da Rua Quintino Bocaiúva, de supetão senti um friúme por dentro. Lembrei a história que ouvira do Ronai e da falta de tino e tato (sem falar da falta de instinto e competência editorial) de todos os envolvidos na rejeição do livro. Novamente, como o velho Mário, fiquei algo trêmulo, comovido. Resolvi reler a reedição de um livro que ele havia publicado em 2008 (e que já registrei aqui): Ensino de Filosofia e Currículo. Essa segunda edição passou por uma revisão completa e ganhou uma formatação mais caprichada. O texto atualizado discorre sobre os temas mais importantes relacionados ao ensino de filosofia (e de resto fala bastante sobre o ensino médio brasileiro). As ideias do Ronai não são apenas seminais. Ele as apresenta com clareza e sofisticação. Os argumentos são sólidos e o encadeamento deles sempre próximos do irrefutável (meus adjetivos tendem ser mais taxativos que os do Ronai, já se vê, mas é nele e em seu livro que o leitor deve confiar, não em mim). Sua discussão sobre as dificuldades na inserção da filosofia no currículo do ensino médio, sobretudo quando não se considera que cada uma das demais disciplinas também propõem conteúdos específicos que necessariamente devem ser conectados de forma didaticamente eficaz uns com os outros, é a chave do livro. O prefácio a essa segunda edição, assinado por Gisele Secco, dá conta do impacto do lançamento original do livro na comunidade de educadores e filósofos. Os argumentos de Ronai de certa maneira antecipam alguns dos desastres que acabaram por encetar a reforma do ensino médio atualmente em discussão (cabe dizer para os mais açodados ou simplesmente tolos que as linhas gerais da atual proposta de reforma já haviam sido delineadas pelo glorioso Ministério da Educação ainda no início do trágico governo anterior). Com a reforma nem o mais atrevido dos analistas sabe prognosticar qual será o futuro da formação básica dos estudantes brasileiros. Livro atualíssimo, "Ensino de Filosofia e Currículo" merece ser lido por todo aquele realmente interessado em filosofia e educação básica deste país. E eu, nem sempre otimista, estou seguro que aquele outro livro do Ronai, o livro explicitamente novo dele sobre o tema, encontrará em breve o caminho para sua edição. Ulalá. Vai ser divertido. Vale.
[início: 10/10/2016 - fim: 21/11/2016]
"Ensino de Filosofia e Currículo", Ronai Pires da Rocha, Editora da UFSM, 2a. edição (2015), brochura 15x24cm, 221 págs. ISBN: 978-85-7391-230-2