segunda-feira, 25 de abril de 2016

grande sertão: veredas

Eu havia decidido publicar um registro da leitura desta versão em quadrinhos do "Grande Sertão: Veredas" no dia 23 de abril, dia em que tradicionalmente são homenageados dois mortos ilustres: William Shakespeare e Miguel de Cervantes. Esse último 23 de abril era ainda mais especial, pois se passaram 400 anos da morte deles (há uma incorreção nas datas, mas isso pouco importa). As festividades na Inglaterra foram mais pomposas (há um portal dedicado a essas festividades, o Shakespeare 2016), mas os espanhóis também conseguiram produzir homenagens adequadas (encontrei uma boa palestra de Don Francisco Rico, maior especialista contemporâneo em Cervantes, no portal IV Centenario). Bueno. Na semana passada decidi que ninguém além do velho e bom Guimarães Rosa ficaria bem ao lado daqueles dois portentos, homenagearia os dois do jeito certo. Acontece que recebi e li exatamente no sábado 23/4 uma plaquete incrível, com um texto seminal do J.M. Coetzee, "Sobre a censura", texto que deveria ser lido por qualquer pessoa que se imagine um dia falar com propriedade sobre censura e opressão (ou que tenha interesse em literatura). Mas vamos voltar ao Rosa. Essa versão é assinada por Eloar Guazzeli, conhecido ilustrador e quadrinista gaúcho. Ele assina o roteiro da adaptação, que sabiamente resume-se apenas a selecionar do mar de palavras do Rosa os trechos mais emblemáticos e poderosos, apenas os excertos que melhor pudessem passar pela metamorfose para a linguagem das histórias em quadrinhos. Convenhamos, não deve ter sido uma tarefa fácil. As ilustrações são de um outro gaúcho, Rodrigo Rosa. O industrioso Marcos Strecker, diretor da editora Globo, o Guazzelli e o Rodrigo Rosa falam sobre o projeto em um "making-off" que está disponível no YouTube. Claro, nada substitui a leitura do original, mas um leitor saudoso de Riobaldo Tatarana, Diadorin e de todos os demais personagens ou das andanças deles pelos Gerais, saudades do itinerário mágico pelo sertão e pelas letras que João Guimarães Rosa inventou, gostará também desta adaptação. Vale.
[início: 21/04/2016 - fim: 23/04/2016]
"Grande Sertão: Veredas", João Guimarães Rosa, Roteiro de Eloar Guazzelli Filho, Ilustração de Rodrigo Rosa, São Paulo: Editora Globo (Coleção Biblioteca Azul), 1a. edição (2014), brochura 21x28 cm., 180 págs., ISBN: 978-85-250-5775-4

domingo, 24 de abril de 2016

o caminho poético de santiago

Aprendi neste livro que a lírica galego-portuguesa é uma variante regional da poesia trovadoresca, originária da Occitânia, no sul da França. Esses poemas, que foram escritos para serem cantados, muito embora apenas fragmentos das partituras correspondentes sejam conhecidos, têm como temática básica a expressão do amor, através de três tipos de cantares medievais: a cantiga de amor, a cantiga de amigo e a cantiga de escárnio e maldizer. A lírica compilada neste livro corresponde a produção de diversos poetas que viviam nos reinos centro-ocidentais da Península Ibérica (Galícia, Portugal, Leão e Castela) durante o período que vai da metade do século XII ao aproximadamente metade do século XIV. As trovas compiladas aqui são de sujeitos que viveram ou são identificados com a cidade de Santiago de Compostela, capital da Galiza (que é como se diz Galícia em galego) e importante destino de peregrinação desde o século IX. As cantigas foram selecionadas por três especialistas no assunto: a brasileira Yara Frateschi Vieira e os galegos Maria Isabel Morán Cabanas e José António Souto Cabo. A edição é muito bem cuidada. Estão nele reunidos 62 cantigas de 29 trovadores. A leitura é difícil, mas o leitor se acostuma aos poucos com a grafia e ritmo das canções. Para cada trovador há uma pequena nota biobibliográfica e comentários elucidativos das cantigas. Os autores incluíram um glossário e também uma lista de topônimos da cidade, sem os quais a leitura seria quase impossível. Uma extensa e variada bibliografia ajuda o leitor curioso a encontrar mais material sobre o assunto. Comecei a ler esse livro ainda no início do ano passado. Nunca consegui ler mais que duas ou três das cantigas em sequência. Alcançar o cifrado entendimento delas sem a ajuda das notas explicativas sempre era uma rara alegria. Há numa base de dados da Universidade Nova de Lisboa onde está disponibilizada a totalidade das cantigas medievais dos cancioneiros galego-portugueses. Além dos textos das composições originais encontra-se ali imagens dos manuscritos e pergaminhos originais (belíssimas iluminuras) e versões musicadas por músicos contemporâneos. Vale uma visita. 
[início: 03/03/2015 - fim: 16/04/2016]
"O caminho poético de Santiago: Lírica Galego-portuguesa", Yara Frateschi Vieira, Maria Isabel Morán Cabanas, José António Souto Cabo, São Paulo: Cosac Naify, 1a. edição (2015), brochura 14x21 cm., 224 págs., ISBN: 978-85-405-0802-6

sábado, 23 de abril de 2016

sobre a censura

É possível, como não?, que num futuro remoto um meteoro destrua partes significativas do planeta Terra, eventualmente a totalidade da América do Sul, o Brasil de norte ao sul, com todos os gloriosos pagos do estado do Rio Grande do Sul, inclusive os de nossa valorosa Santa Maria, cidade coração do Rio Grande e, com ela,  a Universidade Federal de Santa Maria. Todavia, caso entre ruínas fumegantes e destroços seja um dia encontrado esse pequeno livro, essa plaquete de 50 páginas (e que ainda exista alguém que saiba ler  português, claro!), a existência da UFSM estaria justificada. Que texto precioso encontramos aqui. Que notável capacidade de síntese encontramos nele. O texto principal é de J. M. Coetzee, um dos mais importantes escritores vivos, ganhador do prêmio Nobel de literatura em 2003. Trata-se da transcrição de uma palestra de pouco mais de 50 minutos proferida por ele em Porto alegre em 2013, parte de um projeto cultural chamado LiterCultura. Coetzee fala de seu assombro ao descobrir, em 2002, de documentos onde os censores de seus primeiros livros avaliam e justificam a pertinência do deferimento deles para publicação. Coetzee sempre soube que havia uma máquina de censura em seu país, conviveu com ela boa parte de sua vida literária. O que ele registra na palestra é seu entendimento retrospectivo das razões que motivaram os censores a não impediram a publicação de seus livros. Ele percebe que recebeu um tratamento especial, incomum. Ele descobre que seus censores eram pessoas normais, não exatamente burocratas a serviço de uma ditadura, mas antes pessoas que viam a si mesmas como seres civilizados que cumpriam com zelo seu dever (ele não cita, mas há paralelos entre a auto imagem neutra destes com a obediência devida dos nazistas a seus oficiais superiores). Eles eram bons leitores, em certa medida eruditos, argumentaram oficialmente em suas planilhas de avaliação que os méritos literários dos livros de Coetzee eram grandes o suficiente para justificar a publicação, principalmente pelo fato dos prováveis leitores formarem afinal um público diminuto, educado o suficiente para não comprometer a estrutura social e política do país, não colocarem  risco o Apartheid vigente. Coetzee descobre que vários destes censores eram pessoas de seu círculo social, não exatamente amigos, mas pessoas com quem vez ou outra privou de alguma intimidade. Ele, desde o início da carreira, um estudioso do tema, se debruça sobre o acaso de seus livros terem sido publicados e faz digressões poderosíssimas, que seguem seminais até terminar duro, ecoando algo do Lampedusa: "A verdade é que não existe essa coisa que chamamos de progresso quando se trata de censura - o pendor de identificar e atacar o objeto censurável é muito complexo e reside muito fundo dentro de nós. Quando nos é negado um objeto indesejado, encontramos outro. Quando mais as coisas mudam, mais se mantém as mesmas." Ulalá, como deve ter sido bom ouvir essa palestra, receber essas palavras pela primeira vez. Que sujeito! Mas a plaquete não se esgota com o texto de Coetzee. Especular ao texto transcrito da palestra encontramos um posfácio assinado por Kathrin H. Rosenfield e Lawrence Flores Pereira, dois conhecidos especialistas em Coetzee (já registrei aqui um livro organizado por eles, o "Lendo J.M. Coetzee"). Kathrin e Lawrence apresentam os argumentos principais de Coetzee com tal clareza e riqueza de detalhes que mesmo o mais neófito dos leitores, o sujeito menos familiarizado com Coetzee e sua obra entenderá as muitas sutilezas e camadas de entendimento do texto. Que sorte teve a UFSM em poder editar esse livro e oferecê-lo a nós. Que alegria.
[início/fim: 23/04/2016]
"Sobre a censura", J. M. Coetzee, tradução de Lawrence Flores Pereira, organização e posfácio Kathrin H. Rosenfield e Lawrence Flores Pereira, Santa Maria-RS: Editora da UFSM, plaquete 11,5x16 cm., 55 págs., ISBN: 978-85-7391-251-7

sexta-feira, 22 de abril de 2016

em busca do tempo perdido

Esta versão em mangá de "Em busca do tempo perdido" é um volume de uma série publicada originalmente pela editora japonesa East Press, criada em 2007 para difundir os clássicos da literatura para o público não exatamente entusiasmado em enfrentar as dificuldades dos textos originais. Já registrei aqui, desta mesma coleção, uma tradução para o inglês da versão em mangá do Ulysses. Assim como em relação àquele livro de James Joyce essa versão do ciclo de Marcel Proust tem soluções interessantes e tolices incríveis. Isso é previsível, afinal o conjunto de mais de 3500 páginas do original (na versão de bolso da Gallimard) não poderia metamorfosear-se em uma história em quadrinhos de 400 páginas. Paciência. Os episódios mais conhecidos dos sete volumes do ciclo estão lá. Encontra-se algumas das epifanias e imagens poderosas criadas por Proust, assim como as moças em flor em Balbec; os salões de Paris; os passeios pela alameda das acácias; os ensinamentos de Elstir e da avó de Marcel; entre dezenas de passagens emblemáticas com o Barão de Charlus, Gilberte, Oriane, Madame Verdurin, Saint-Loup, Odette e Charles Swann. Livreto para se divertir. Sempre há a esperança que um jovem leitor, curioso com os sucessos da versão em quadrinhos um dia se anime a enfrentar os desafios do original.
[início: 15/03/2016 - fim: 15/04/2016]
"Em busca do tempo perdido", Marcel Proust, tradução de Drik Sada, adaptação e ilustrações Equipe East Press, Porto Alegre-RS: editora L&PM (coleção Pocket vol. 1187 / mangá), 1a. edição (2015), 11x18 cm., 400 págs., ISBN: 978-85-254-3230-8 [edição original: Ushinawareta toki wo motomete (Tokyo: Manga de Dokura / East Press) 2009]

quinta-feira, 21 de abril de 2016

o sushiman

Ler esse livro (sobretudo apreciar suas reproduções fotográficas e ilustrações) é um descanso na loucura, um exercício zen, um mergulho sem fim em alegrias. Ganhei-o de presente de final de ano, não do ano passado, mas sim de um já remoto natal de 2014. Ganhei-o de um grande amigo que eu, ai de mim, vejo raramente, muito pouco, mas que sabe melhor que eu manter contato, contar histórias e tornar o acúmulo de aborrecimentos dos dias mais tolerável. Ganhei-o do Renato Cohen, amigo dos bons. Das dezenas de receitas que o livro oferece ao leitor fiz só umas poucas, aquelas que experimento sempre mas gosto de aprimorar. Trata-se de um livro de procedimentos, de técnicas, de métodos. Num dia apressado você esquece como cortar e retirar filés de peixes; como preparar uma omelete japonesa realmente fina e retangular; como não-temperar o arroz do sushi; como preparar um gengibre em conserva; ou quais são mesmo os molhos, caldos e cremes adequados para cada prato. O autor é um reconhecido especialista na área, Ronaldo Catão, empresário brasiliense, professor de culinária e dono da franquia O sushiman Sushi Express. Claro, um cozinheiro mais disciplinado e vocacionado que eu aproveitaria melhor o livro, já que há dias em que um sujeito quer mesmo é apenas inspirar-se, aguçar um tanto o olhar antes de ligar para um serviço de tele entrega (para talvez, só então, imaginar-se flanando em Akasaka, Ginza ou Shinjuku, como em uma cena do "Lost in translation" ou do "Tampopo", saciado, farto, agradecido). Kanpai Renato, kanpai!
[início: 25/12/2014 -fim: 17/04/2016]
"O sushiman: Técnicas, receitas e segredos", Ronaldo Catão, Brasília: Editora Senac-DF, 3a. edição (2014), brochura 21x28 cm., 356 págs., ISBN: 978-85-62564-36-9

quarta-feira, 20 de abril de 2016

o homem que corrompeu hadleyburg

Mark Twain conta nesta pequena história um rito de vingança, uma parábola sobre a queda do homem, uma descrição de como funciona uma sociedade disfuncional, povoada por pessoas inescrupulosas, uma sociedade incapaz de reconhecer seus muitos defeitos, sua vocação para o erro e a mentira. O narrador de Twain fala da sociedade norte-americana do final do século XIX, mas aos olhos de um leitor brasileiro, já acostumado com a podridão irreversível em que afundou esse desgraçado país, trata-se de uma história bastante ingênua, um conto de fadas infantil. Bueno. A trama da história é um bocado intrincada e não vale a pena eu detalhada toda aqui. Um sujeito decide expor a enorme hipocrisia e falta de caráter dos moradores de uma pequena cidade do interior dos Estados Unidos. Para acabar com a reputação da cidade e de seus moradores ele deixa aos cuidados de um casal um saco de ouro e instruções para que ele seja entregue a única pessoa dali que num passado remoto emprestou-lhe dinheiro e o fez largar o vício do jogo. Num envelope selado, que deveria ser aberto pelas autoridades da cidade, em uma cerimônia pública, o sujeito escreve uma frase que apenas ele e o bom samaritano que o acolheu deveriam saber e decifrar. O morador que assim fosse identificado, assim revelar-se, teria direito ao ouro. O caso ganha repercussão nacional e todos os probos cidadãos da cidade de alguma forma imaginam ser merecedores do prêmio. Twain mantém o suspense até os parágrafos finais, mas o leitor não tem tempo de afeiçoar-se a qualquer um dos personagens para poder torcer para que um deles seja o vencedor. O curioso da história é o procedimento do autor em ir revelando só aos poucos, em episódios algo cômicos, algo sarcásticos, as falhas de caráter dos personagens, as tentações que experimentam, os argumentos que utilizam para se auto-enganar. Esse livro faz parte de uma coleção de histórias curtas (A arte da novela, da Grua Livros, originalmente produzidas pela Melville House Publishing, da qual já li "A briga dos dois Ivans", "A lição do mestre", "O colóquio dos cachorros", "Michael Kohlhass", "O véu erguido" e "O homem que queria ser rei"). 
[início: 16/04/2016 - fim: 17/04/2016]
"O homem que corrompeu Hadleyburg", Mark Twain, tradução de Ronaldo Bressane, São Paulo: Grua livros, 1a. edição (2015), brochura 13x18 cm., 95 págs., ISBN: 978-85-61578-50-3 [edição original: The man that corrupted Hadleyburgh / (New York: Harper & Brothers) 1900]

domingo, 17 de abril de 2016

só faltou o título

Contar muito do que é narrado em "Só faltou o título" rouba alguma coisa dele. É um livro que se deixa ler com facilidade, um bom thriller que oferece hilários momentos para o leitor. Edmund, o protagonista, é um homem de quarenta e poucos anos, gaúcho, diplomado em escrita criativa, porém escritor fracassado; inepto para quase tudo na vida, mas que alcança ser um assassino eficaz. É autoindulgente e caricato o tempo todo. Ele conta os sucessos de sua vida, prisão e julgamento. O ritmo é frenético, um truque para não deixar o leitor se cansar deste protagonista com quem não suportaríamos conviver no mundo real (nem tampouco no mundo mágico das letras). Edmundo é o rei dos clichês, das platitudes, dos lugares comuns, dos epítetos verborrágicos, frasista intoxicado pela própria voz, contador de histórias de ninar bêbados. No jogo proposto por Pujol seu personagem flerta com a realidade, busca tornar sua patética vida em material digno para um romance definitivo, campeão de vendas, admirado pela crítica; mas passa o tempo todo espalhando pistas falsas sobre si, sua vítima, seu livro ainda não escrito, lentamente se dissociando, fugindo das mãos do narrador (ou talvez sendo abandonado por ele, numa brincadeira metaliterária). A Porto Alegre que brota das páginas do livro é uma cidade culturalmente paralisada, narcisista, uma cidade aprisionada em estereótipos. O romance é uma longa descida aos infernos da mente do protagonista, guiado por um Nietzsche de almanaque (o narrador da história afinal, o litero-gaudério criador do romance). Dá para se divertir um bocado com esse livro. Vale.
[início: 11/04/2016 - fim: 13/04/2016]
"Só faltou o título", Reginaldo Pujol Filho, Rio de Janeiro: Editora Record, 1a. edição (2015), brochura 15,5x23 cm., 320 págs., ISBN: 978-85-01-10566-0

sábado, 16 de abril de 2016

sim, eu digo sim

Em um de seus poemas Auden pergunta: "para onde?" (é no A Voyage, no início da última seção -Whither-: "Where does this journey look which the watcher upon  the quay, / Sanding under his evil star, so bitterly envies, / As the mountain swim away with slow calm strokes / And the gulls abandon their vow? / Does it promise a juster life?". Pois eu senti-me assim, perguntando-me "para onde?", quando abri no sábado passado esse volume mágico do Caetano Galindo, esse volume todo dedicado a sua leitura do Ulysses, de James Joyce, livro que ele tão bem traduziu. Acontece que o Galindo, capitão de longo curso nas cousas joyceanas, optou por não publicar esse seu guia de leitura junto com sua tradução, em 2012. Reclamo disto há tempos, mas ele teve lá suas boas razões. Se é que entendi bem sua ideia é que um neófito das cousas do Ulysses deveria tentar ler o livro ao menos uma vez (quem somos nós para furtar de um leitor do prazer de ler o Ulysses pela primeira vez?). Terminado o portento (maldição), aí sim esse leitor deveria iniciar uma nova leitura, desta feita guiado por ele, metamorfoseado numa Ariadne, num Virgílio, num Milton, um guia que não apenas apenas explica as passagens mais bizarras e cifradas do livro, mas antes apresenta o jogo de leitura proposto por Joyce, oferece alguma luz para que cada leitor possa entender mais, aprender mais, divertir-se mais. Galindo explicita que seu guia possibilita uma leitura acompanhada, uma leitura que chama a atenção aos detalhes que não podem passar despercebidos. A parte inicial do livro, dedicada a apresentação de seu projeto, de sua proposta de como seu livro deve ser usado, merece destaque. São quase cinquenta páginas poderosas, dedicadas ao que é o livro, ao que é crítica literária, ao que são vozes narrativas, a quais são os temas, as simetrias e estrutura do livro. Trata-se de um texto não acadêmico, mas construído com todo o rigor que um texto acadêmico precisa ter. Um leitor curioso pode até parar ali e, inspirado por ele, ir ler algo do Bakhtin, do Anthony Burgess, do Harold Bloom, fortalecer os músculos um tanto, para logo voltar ao bom combate com o Joyce arbitrado por ele. Após essa introdução Galindo apresenta cada um dos dezoito episódios do livro. Aprendi um bocado em cada um deles. Um leitor já calejado, curioso sobre o formato proposto por ele, pode ler suas considerações sobre seu capítulo favorito, pode comparar suas impressões com as dele. Estou seguro que quanto maior é o conhecimento prévio de um hipotético leitor sobre o Ulysses maior é o aproveitamento deste guia (o Galindo, talvez por conta daqueles olhos míopes dele, sabe ver camadas e camadas de coisas no Ulysses). O livro termina com as inevitáveis listas de leituras recomendadas e um útil índice remissivo. Deixo aqui apenas a remisssão fundamental, aquela onde ele mantém atualizadas uma miríade de informações sobre o Ulysses (Sim, eu digo sim), uma página onde a geografia do livro pode ser melhor entendida (Walking Ulysses) e uma lista de traduções para o português dos textos do Joyce, trabalho feito pela Denise Bottmann (Não gosto de plágio). Se eu tivesse um guia deste tipo, lá em 1982, quando, inspirado pelo Ivan Lessa, decidi embarcar em uma primeira leitura, em fazer uma primeira viagem de descobrimento do Ulysses, talvez o mundo fosse diferente hoje. Sei lá. O que devemos mesmo é agradecer ao Galindo por nos mimosear com um livro tão bom. E bom divertimento. Estamos a dois meses do Bloomsday afinal de contas. Ainda dá tempo de começar a ler o Ulysses.
[início: 09/04/2016 - fim: 15/04/2016]
"Sim, eu digo sim: Uma visita guiada ao Ulysses de James Joyce", Caetano W. Galindo, São Paulo: editora Schwarcz (Companhia das Letras), 1a. edição (2016), brochura 14x21 cm., 375 págs., ISBN: 978-85-359-2700-9

sexta-feira, 15 de abril de 2016

brincando com o conta-gotas

O Antonio Rodrigues Neto foi meu colega no IFUSP. Ele sempre preocupou-se em encontrar o jeito certo de ensinar as coisas que sabia. E era também sempre o sujeito com o humor mais refinado, irônico, da turma. Em uma sexta-feira de abril de 1986 ele convidou um pequeno bando de físicos para vermos o cometa Halley, lá nos altos da Serra da Cantareira. Foi um fiasco, não por culpa dele, claro, mas sim do Halley, que ficou tímido no céu, decepcionando a todos. Mas nós nos divertimos à beça e esperamos o sol nascer, já algo intoxicados e prometemos nos reunir na próxima aparição, em 2061. Bons tempos. Neste seu pequeno livro, primeiro volume de uma coleção da editora SESI-SP, ele apresenta uma proposta para despertar a curiosidade pelo conhecimento matemático. Ele parte de um conta-gotas, objeto do cotidiano de qualquer criança que toma vacinas ou remédios, e propõe uma brincadeira, um método, cujo objetivo é calcular o número de gotas que podem ser encontradas em frascos, copos, garrafas, baldes, caixas d'água, até que, progressivamente aumentando a escala,  chegar ao volume dos grandes reservatórios de uma cidade. Claro, o que ele disfarçadamente alcança é ensinar ao leitor conceitos matemáticos básicos: as quatro operações matemáticas, frações, unidades de medida, regra de três. No final do livro ele incluiu uma seção dedicada a preservação ambiental e aos hábitos saudáveis que possibilitam alguma economia de água. A linguagem é simples, descontraída, mas também precisa, correta. Seguro que esse pequeno livro vai divertir e ensinar muita gente. Parabéns Toninho.
[início: 11/04/2016 - fim: 13/04/2016]
"Brincando com o conta-gotas", Antonio Rodrigues Neto, São Paulo: SESI-SP editora (Educação; Coleção: Para gostar de matemática), 1a. edição (2014), brochura 12x18 cm., 80 págs., ISBN: 978-85-8205-272-3

segunda-feira, 11 de abril de 2016

el levante

Publicado originalmente em 1990 "El Levante" foi escrito por Mircea Cartarescu entre 1987 e 1989, período em que a Romênia estava nos estágios finais da desastrada ditadura comunista presidida por Nicolae Ceausescu. Originalmente tratava-se de um extenso poema épico, com seus 7000 versos alexandrinos divididos em doze cantos. Posteriormente (não consegui apurar esta informação com precisão, talvez em 1998) Mircea Cartarescu metamorfoseou sua epopeia em algo mais parecido com um romance, uma narrativa em prosa, que mantém várias e longas inserções poéticas do original (ele imaginou que esse procedimento facilitaria as traduções de sua história). Entendi no prólogo incluído no livro (assinado por Carlos Pardo) que a versão em prosa é substancialmente diferente da original, pois essa teria sido inspirada e teria alcançado o efeito produzido por James Joyce em um dos episódios de seu "Ulysses" (O gado do Sol), sendo afinal um exercício linguístico sobre o romeno completo e poderoso. "Levantul" (no original romeno) é um conto de fadas, um livro de aventuras, o divertido roteiro de uma história em quadrinhos, um exercício brutal de pós-modernismo. Mesmo com tudo aquilo que deve estar "lost in translation", primeiro do romeno para o espanhol (obra da tradutora Maria Ochoa), e depois deste para o português (minha tradução mental afinal de contas), ri o tempo todo e consegui entender parte das alusões, jogos de palavras, citações da cultura pop, referências filosóficas e literárias distribuídas pelo livro. Há várias camadas de leitura (Cartarescu é um professor universitário e trabalha justamente com teoria literária, crítica, história da literatura romena). Assim como nos romances de Umberto Eco encontramos fusões entre o erudito e o popular. Ao lado de uma digressão sobre Diegese (por Bakhtin) ou Clínamem e Téssera  (por Harold Bloom) ou ainda sobre o Aleph (por Borges), seguem-se diálogos banais de personagens que parecem pertencer ao universo de Homero, Cervantes, Robert Louis Stevenson, Jonathan Swift e Júlio Verne; parecem brotar das histórias das 1001 noites contadas por Sherazade para o Sultão. Há vezes em que a ironia do autor parece endereçada a algum contemporâneo seu (talvez a um mau escritor ou mau político, quem sabe). A cada um dos doze cantos acompanhamos os sucessos da viagem de Manoil, um poeta, rumo a uma Bucareste tiranizada, seguindo o caminho que um dia Jasão fez com seus argonautas em busca do Velocino de Ouro, das ilhas gregas do Mar Egeu às enseadas do Mar Negro. Ele progressivamente arrebanha um grupo de revolucionários, todos comprometidos com a libertação dos Valacos, seu povo, dominado por invasores romanos. Segundo o projeto revolucionário deles é o mundo oriental quem liberta. Em algum momento Cartarescu é abduzido para o poema e passa a interagir com os personagens e auxiliá-los nas façanhas heroicas. Quase no final do poema o próprio sujeito que lê (eu, no presente caso) é incluído no livro e se entende com os protagonistas da história. Faz-se um balanço crítico do resultado poético e da empreitada revolucionária, entre taças de café ("o espelho negro do qual nasce o poema", diz um dos narradores) e Jidvei (um vinho popular romeno), reunidos todos ao redor do fogo, como todos os povos fazem quando querem ouvir um poeta contar suas histórias, um aedo recitar seus versos. É um 30 de outubro, a mulher do escritor serve petiscos. O bebê, filho do escritor, finalmente dorme. Alguém encontra um livro, já desgastado pelo tempo, perdido num berço, o abre, começa a ler a história, infinitas vezes. Bem divertido esse Cartarescu. Taruki! Paluki?
[início: 04/03/2016 - fim: 08/04/2016]
"El Levante", Mircea Cartarescu, tradução de Maria Ochoa de Eribe Urdinguio, Madrid: editorial Impedimenta, 1a. edição (2015), brochura 14x21 cm., 237 págs., ISBN: 978-84-15979-38-8 [edição original: Levantul (Bucaresti: Cartea Romanesca), 1990]

sexta-feira, 1 de abril de 2016

killing and dying

Já registrei aqui pelo menos seis outros livros de Adrian Tomine ("Sleepwalk and Other Stories", "Summer Blonde", "Shortcomings", "32 Stories", "New York Drawings" e "Scenes from an impending marriage"). "Killing and Dying" é seu trabalho mais recente. São seis histórias, muito distintas entre si, cada uma delas muito especial. Li algumas várias vezes, sempre extraindo delas algo novo a cada leitura. Dizer que trata-se de um livro de histórias em quadrinhos (ou em bom português de uma graphic novel) não dá a real dimensão do trabalho de Tomine. Ele sabe contar histórias, descrever sentimentos, fazer com que o leitor se interesse pelo destino de seus personagens, partilhar de suas escolhas. Suas histórias são urbanas, contemporâneas, de um mundo complexo e em constante transformação. Ele foca sempre a condição humana, o impacto de experiências cotidianas, sempre banais e irrelevantes, no destino de cada um. Em quase todas elas se expõe um conflito entre gerações ou, ao menos, entre um grupo social e um outro, imediatamente mais velho ou mais novo. Em todas os protagonistas vivem angustiados e/ou em crise, mas não há exatamente tristeza neles, antes parecem anestesiados da vida, displicentes e conformados. Tomine usa técnicas de ilustração distintas para cada história, contrasta imagens coloridas e em preto e branco, as enquadra e narra de forma diferente, sabe quando o silêncio torna-se mais poderoso que uma enxurrada de frases, nunca esgota o assunto, tornando múltiplas as interpretações. Os temas parecem simples: um sujeito que trabalha com jardinagem decide experimentar o mundo das artes plásticas; uma garota tem seu perfil modificado em uma rede social; um casal descobre só ter em comum a paixão por um time de beisebol; uma mulher escreve para o filho uma história de sua infância; uma garota tímida acredita ser capaz de tornar-se uma comediante profissional; um rapaz tem a compulsão de viver parte da vida de outra pessoa. Olho. Esse é o tipo de sujeito que vale a pena acompanhar. 
[início: 04/03/2016 - fim: 31/03/2016]
"Killing and dying: stories", Adrian Tomine, Montreal: Drawn and Quarterly, 1a. edição (2015), capa-dura 17x24 cm., 124 págs., ISBN: 978-1-77046-209-0