domingo, 28 de julho de 2019

el huevo de oro

"El huevo de oro" deixa-se ler com calma, como calmo deixa-se fluir o outono veneziano. Não se trata exatamente de uma investigação policial canônica, de um crime que precisa ser desvendado. Donna Leon nos apresenta antes sim a curiosidade quase mórbida de seu comissário Guido Brunetti, curiosidade em descobrir as razões de um sujeito que é portador de óbvias deficiências físicas e mentais, com mais de quarenta anos, não estar inscrito de forma alguma nos registros oficiais de Veneza, ser um pária absoluto, um homem sem nome, nem passado, nem identidade, e que está morto, talvez por acaso. Antes de alcançar a razão para a morte deste sujeito desafortunado, Donna Leon oferece ao leitor boas reflexões sobre a sociedade italiana, os hábitos entranhados de sua gente, as regras de conduta distintas entre o Norte e o Sul, o uso da linguagem e dos dialetos para aproximar e afastar indivíduos, o crescente apego das pessoas às redes sociais, a hegemonia dos terríveis conceitos politicamente corretos, a rapidez ilusória dos equipamentos que permitem comunicação instantânea entre nós. Oferece também seus usuais mimos, digressões sobre questões filosóficas, questões de linguagem, questões culturais contemporâneas. Foa, o piloto de uma lancha de serviço da chefatura de polícia, veneziano há mil gerações, e a eficiente comissária Griffoni, siciliana exilada em Veneza, ganham relevo nesta trama, ajudam Brunetti a entender as ancestrais motivações para o crime. Narrativa policial bem engendrada, conduzida. Interessante. Vale!
Registro #1434 (romance policial #87)
[início: 13/05/2019 - fim: 18/06/2019]
"El huevo de oro" (Brunetti #22), Donna Leon, tradução de Maia Figueroa Evans, Barcelona: Editorial Seix Barral / Booket #2561 (Grupo Planeta Manuscrito), 1a. edição (2014), brochura 12,5x19 cm., 319 págs., ISBN: 978-84-322-2249-8 [edição original: The Golden Egg (Zürick: Diogenes Verlag AG / Penguin Randon House Group) 2013]

quinta-feira, 25 de julho de 2019

la cozinha de los finisterres

Há mais de dez anos li "Saber o no saber", primeiro dos volumes de uma coleção de livro dedicados a gastronomia presente nas histórias do detetive Carvalho, genial invenção de Manuel Vázquez Montalbán. Aos poucos, durante esta década de aventuras e prazeres, de aborrecimentos e fracassos, encontrei, procurando eu mesmo em balaios de velhos sebos espanhóis, ou por encomenda, os demais quatro volumes da coleção. "La cocina de los finisterres" é o quinto e último dos volumes. Nele Montalbán trata da culinária das autonomias do norte espanhol: Galícia, Astúrias, Cantábria e País Basco. Montalbán não é um iniciante, um neófito, um diletante. Ele escreve sobre o que bem conhece, oferece boas referências, contextualiza cada um de seus argumentos. O texto é super rico, informativo, gostoso de ler. Mais da metade do livro é dedicado as receitas, que podem ser facilmente encontradas ou pela função em uma refeição (entradas, acompanhamentos, pratos principais e sobremesas), ou por ordem alfabética. Uns poucos trechos de seus romances policiais ilustram o quê ele fez o detetive Carvalho dizer sobre cada culinária. Para cada uma das autonomias ele digressa sobre os pratos típicos, as particularidades que distinguem uma região da outra, sempre com um olho na geografia e no clima, sempre com um olho na história e tradições do lugar. A arte culinária para ele implica tanto em aprender-se o quê fazer em uma cozinha e quanto ao como se portar em uma mesa de refeições. O leitor é conduzido para o mar e a montanha, para o campo e os rios que correm para o mar, para as hortas e fazendas, para os mercados públicos, as festas típicas de cada uma das autonomias. Os capítulos dedicados a culinária galega e a do principado de Astúrias têm a mesma extensão, um quarto do livro; aquele dedicado a cozinha da Cantábria é um tanto menor (Montalbán alerta que durante séculos Cantábria era apenas a saída para o mar da hegemônica Castilla. O capítulo sobre a culinária do País Basco é o mais extenso e detalhado. Já nos anos 1980, quando conheci algo da cozinha basca, ela já se destacava no cenário gastronômico mundial. Lembro-me da primeira vez que a conheci, num longínquo final dos anos 1980, lá em Donostia/San Sebastián, quando tudo parecia acontecer em ritmo lento, de contos de fada, de encantamento e magia, quando saímos de copas, em busca de tapas e zuritos, que custavam "cinco duros", uma pechincha, "Drowning in honey, stingless", sempre, mas esta é outra história. Vamos em frente. Vale! 
Registro #1433 (gastronomia #39) 
[início 01/06/2019 - fim 20/06/2019]
"La cocina de los finisterres: viaje por las cazuelas de Galicia, Asturias, Cantabria y el País Vasco - Carvalho Gastronómico, vol.5", Manuel Vázquez Montalbán, ediciones B (Zeta Bolsillo) Penguin Random House Group (1a. edição) 2008, brochura 12,5x20, 320 págs. ISBN: 978-84-9872-108-9 [edição original: 2002]

segunda-feira, 22 de julho de 2019

sumchi

Lê-se esse pequeno livro com uma alegria incontida, página a página, nas quais acumulamos surpresas e espantos. Amós Oz registra em livro, numa linguagem que é ao mesmo tempo rica e acessível, especialmente ao público mais jovem - a quem o livro é direcionado - o que talvez seja mesmo um fragmento de sua memória, um recorte de sua própria vida. É quase um conto de fadas. Amós Oz descreve o que talvez tenha sido o momento vivido de sua metamorfose para ser um contador de histórias, sua transformação em um inventor literário, um escritor. O leitor encontra um narrador que vive em um Israel ainda administrada pelos ingleses. O narrador sabe que sua história é banal, poderia ser resumida em uma única frase, todavia, ao longo das poucas horas deste dia, para ele especial, o sujeito descobre os desdobramentos do amor, da amizade, das relações comerciais, da ética, da vida em sociedade, da estranheza que há entre pais e filhos, da existência do acaso, dos azares e das sortes. Livro realmente bem bacana. Li em um dia aziago, mas que me fez sonhar na noite seguinte como uma criança, como alguém liberto de toda culpa e preocupação. Recomendo. Vale! 
Registro #1432 (infanto-juvenil #48)
[início: 29/06/2019 - fim: 30/06/2019]
"Sumchi: uma fábula de amor e aventura", Amós Oz, tradução de Paulo Geiger, São Paulo: editora Schwarcz (Companhia das Letras / Penguin Random House), 1a. edição (2019), capa-dura 12,5x18 cm., 128 págs., ISBN: 978-85-359-3214-0 [edição original: 1978]

sexta-feira, 19 de julho de 2019

sentimental

Há dois ou três meses, lá na boa livraria Taverna, em Porto Alegre, encontrei este volume. Nunca havia lido nada de Eucanaã Ferraz, poeta e professor universitário carioca, já premiado e respeitado por seus pares. Neste seu "Sentimental", publicado em 2012, ele apresenta 57 poemas. As formas são bem variadas, as imagens calmas, nunca há agressividade neles, nos poemas. Ele fala do cotidiano, da vida, das viagens, de um apartamento, de animais, da arquitetura, da memória de fatos recentes. Há uns ecos da América espanhola, ou de viagens e inspirações paulistas e lisboetas, de poetas que talvez sejam seus precursores, poetas que talvez lhe sejam especialmente caros: Murilo Mendes, Ferreira Gullar, Sophia Andresen, Cícero, Wislawa Szymborska. Num dos poemas, "Só faço verso bem-feito", verso que ele achou na lavra de João Martins de Ataíde (via Câmara Cascudo), Eucanaã achincalha um poeta morto inominado, ri de alguém que o incomodava. Gostei do efeito. Preciso procurar mais cousas deste sujeito. Vamos a ver. Vale! 
Registro #1431 (poesia #116)
[início: 19/04/2019 - fim: 19/06/2019]
"Sentimental", Eucanaã Ferraz, São Paulo: editora Schwarcz (Companhia das Letras / Penguin Random House), 1a. edição (2012), brochura 14x21 cm., 91 págs., ISBN: 978-85-359-2167-0

terça-feira, 16 de julho de 2019

epigramas

Foi Luiz-Olyntho, querido amigo, em fevereiro do ano passado, no dia do lançamento do opus magnun de Abdon Grilo (seu potente estudo sobre o Ulysses de James Joyce), quem me cantou pela primeira vez essa joia rara de Marco Valério Marcial, editada pela Ateliê. Demorei, mas encontrei meu exemplar. Agora ele está aqui, perto de mim, todavia ainda estranhando seu lugar no coração selvagem de minha biblioteca. "Epigramas" é um livro arte, de um livro objeto, um pequeno milagre, pois sobreviveu aos séculos. Nele está reunido um robusto conjunto de 219 epigramas de Marcial, um "catalão" romano que viveu no primeiro século da era cristã. Epigramas são aforismos poéticos, cousas engenhosas que acrescentam à máximas aforísticas em prosa algo de invenção poética, algo de beleza, algo único que só os poetas sabem produzir. Alguns são curtos, curtíssimos, outros mais longos, quase registros de um diário, não exatamente epigramas, mas sim apontamentos de alguém que sabe aproveitar a vida, ri de si e de seus semelhantes. O tom sempre é dúbio, satírico, remonta a uma festividade, uma alegria incontida, um sarcasmo duro (isso talvez diria um acadêmico, um scholar, um homem das letras profissional). Eu mesmo leio essas pequenas máximas com uma espécie de sociologia selvagem, um compêndio de fofocas, de descrições de comportamentos sexuais, de bobas frases de duplo sentido, um manual de wit, de sagacidade, do tipo que usualmente costumamos associar também aos ingleses, talvez aos ingleses de um tempo mais afortunado. Enfim, Marcial parecia ter a inusual capacidade de resumir em breves aforismos o espírito de sua época, algo que lhe granjeou sucesso literário ainda em vida, sendo bastante conhecido tanto na Roma imperial, quanto nas províncias mais afastadas. A edição é bilíngue, e as notas, seleção, tradução e posfácio assinados por Rodrigo Garcia Lopes. O volume é composto por doze cadernos grampeados, presos por elásticos (e doze é exatamente o número de livros que Marcial publicou em vida, um mimo dos editores). Os cadernos, que são independentes, podem ser lidos simultaneamente por várias pessoas, em uma festa ou encontro literário. Acho que pode funcionar. É isso. Segue o baile. Vale! 
Registro #1430 (poesia #115) 
[início: 02/02/2018 - fim: 16/06/2019] 
"Epigramas", Marco Valério Marcial, tradução de Rodrigo Garcia Lopes, Cotia/SP: Ateliê Editorial, 1a. edição (2017), 14 cadernos grampeados, capa-dura, presos com elásticos, 14x21 cm., 522 págs., ISBN: 978-85-7554-80752-2 [edição original: circa 86 d.C.; organização original em inglês: Epigrams (D. R. Shackleton Bailey, Cambridge: Harvard University Press) 1993 e (Walter C. A. Ker, Cambridge: Harvard University Press) 1968]

sábado, 13 de julho de 2019

o eremita viajante

Esse livro me acompanha há quase dois anos. O recebi ainda no final de 2017, como se fosse um presente de Natal vindo de longe, ofertado por um generoso e amigo duplo meu. Pensei em ler um haiku por dia, a partir de janeiro de 2018, e terminar um tanto antes de alcançar meus 60 anos, mas não foi isto que aconteceu. Passei a ler com calma, uns poucos haikus de cada vez, se não tão vagaroso quanto previa meu projeto original, suficientemente lento para prolongar ao máximo um genuíno e raro prazer. "O eremita viajante" é a primeira publicação em português de todos os haikus conhecidos de Matsuo Bashô, o maior, mais seminal dos artífices deste gênero literário, o poeta nacional japonês, o sujeito que parece concentrar o espírito de todo um povo, de toda uma civilização. São 978 poemas, organizados pelo tradutor Joaquim Palma em ordem cronológica de composição, de 1663 a 1694, além de outros 24 não datados, totalizando portanto, 1002 poemas. O organizador e tradutor do livro escolheu também separá-los de acordo com as quatro estações do ano ("Outono", "Inverno", "Primavera", "Verão") e em dois conjuntos extras ("Ano Novo" e 'Outros"). Desta forma o leitor parece acompanhar trinta anos de vida e evolução poética de Bashô, experimentar com ele a passagem do tempo, num "the dark backward and abysm of time", como nos ensinou Próspero, ou melhor, Shakespeare. A edição é muitíssimo bem cuidada, completa. Inclui uma longa introdução, que nos ensina muito sobre Bashô, seu tempo e influências; sobre técnicas de composição do haiku e técnicas de tradução; além de um generoso glossário e uma detalhada bibliografia. Livros assim são uma festa para os sentidos, nos fazem um grande bem, pois ao mesmo tempo em que aprendemos  algo de todo um universo literário, somos estimulados a perceber nos fragmentos de nossas memórias, impregnadas pela passagem do tempo, o fluir das estações, o assombro daquilo que pode ser observado, sentido, vivido. O leitor aprende algo da disciplina filosófica zen, do desapego, da leveza, da fusão entre imagens e versos que talvez devam existir na base da composição de qualquer poema, sobretudo nos haiku, sendo muito mais importantes que a mera técnica, a mera contagem das sílabas, da métrica. Segundo o tradutor Joaquim Palma "(...) no fim da vida, nos seus derradeiros haikus, Bashô parece libertar-se quanto à exposição das emoções, às ações da vontade, à afirmação do eu".  Esse belo livro permanecerá em minha estante, sempre ao alcance da mão, como um viático, um eficiente lenitivo para todos os aborrecimentos desta vida. Sigamos. Vale!
Registro #1429 (poesia #114)
[início: 23/12/2017 - fim: 30/06/2019]

"O eremita viajante", haikus: obra completa, Matsuo Bashô, tradução de Joaquim M. Palma, Lisboa: Assírio & Alvim (Grupo Porto Editora), coleção documenta poetica 155, (1a. edição) 2016, capa-dura 15,2x21,2 cm., 424 págs., ISBN: 978-972-37-1920-8

quarta-feira, 10 de julho de 2019

operación desengaño

"Operación Desengaño" é um romance onde se transforma em ficção uma legítima operação de contra-espionagem empreendida durante a segunda grande guerra mundial: a de enganar os nazistas, fazendo-os acreditar que a invasão do continente europeu dar-se-ia pela Grécia e os Balcãs, e não pela Sicília, como de fato aconteceu. Duff Cooper, visconde de Norwich, o autor deste romance, foi diplomata e escritor. Ele teve notícia desta mirabolante trapaça e publicou em 1950 uma versão romantizada dos sucessos. Posteriormente, em 1953, Ewen Montagu, o oficial da inteligência naval britânica que de fato engendrou a coisa toda, publicou um relato documentando seu projeto. Mas o que vou registrar hoje aqui é só a metade ficcional do livro. Lê-se "Operación Desengaño" com genuíno prazer. Quase todo o livro trata da vida de um sujeito, Willie Maryngton, que era jovem demais para participar da primeira grande guerra e velho demais para participar da segunda grande guerra. Esta circunstância faz dele uma pessoa amargurada, deprimida, incapaz de decidir-se sobre o quê fazer da vida, eternamente imaturo. Maryngton ingressa no exército, serve durante longas temporadas na Índia, no Egito e no campo inglês, mas nunca chega a envolver-se em combates, como sempre desejou. Lembrei várias vezes do "Goodbye to all that", de Robert Graves, onde ele fala de sua terrível experiência com os horrores da primeira grande guerra. Duff Cooper constrói um personagem que o permite descrever muito vividamente a atmosfera inglesa do período entre guerras, com sua rígida estrutura de classes, códigos de conduta, disciplina militar, regras de sucessão familiar, clubes masculinos. Nos diálogos, toda a verve que estamos acostumados a associar aos ingleses como que transborda. É um livro realmente gostoso de ler, sem grandes sobressaltos, reviravoltas, muito bem escrito. Em breve vou conferir a segunda parte do livro, a documental, de Montagu, para conferir até que ponto Duff Cooper apropriou-se da realidade em sua divertida invenção literária. Sigamos. Vale!
Registro #1428 (romance #359)
[início: 13/06/2019 - fim: 14/06/2019]

"Operación Desengaño", Duff Cooper, tradução de Antonio Iriarte, prólogo de John JUlius Norwich, Madrid: Reino de Redonda, vol. 34, (1a. edição) 2019, capa-dura 14,5x23 cm., 402 págs., ISBN: 978-84-947256-3-0 [edição original: Operation Heartbreak (London: Rupert Hart-Davis) 1950]

sábado, 6 de julho de 2019

do que falamos quando falamos de amor

Neste volume encontramos dezessete contos de um dos grandes mestre do gênero, o norte-americano Raymond Carver, morto já há mais de trinta anos. São histórias sempre curtas, quase fragmentárias, de vidas de quem o leitor não precisa saber muito, apenas o que foi dito ali em poucas páginas. Seus contos são frequentemente ditos minimalistas, mas não são fáceis nem de ler, e muito menos de escrever. Lembro-me de ter lido alguns logo após ter visto "Short Cuts", um bom filme do sempre bom Robert Altman, mas isso também foi há quase trinta anos. Os contos de Carver gravitam sempre dificuldades de comunicação, vidas em desacerto, problemas com o álcool, momentos decisivos de alguém. Ele alcança fixar a atenção do leitor não com descrições detalhadas, correrias, mimos culturais, mas sim com diálogos algo diabólicos, que sintetizam todo um complexo contexto, conversas que nos magnetizam. Além dos diálogos os contos primam pelo uso exemplar da técnica de fluxo de consciência. Nem tudo precisa ser dito. Nem tudo precisa ser apresentado diretamente ao leitor. Não vou tentar resumir aqui os fatos das curtas histórias do livro. A mágica literária de Carver não está nos fatos em si, mas em como aqueles personagens são enredados em situações que cada um de nós compreende bem. Ao mesmo tempo, não se trata apenas de verossimilhança, mas da capacidade de desnudar nossa muita humana habilidade de mentir para nós mesmos, de negar a realidade, de fingir e, também, de amar. Grande escritor. Vale!
Registro #1427 (contos #165)
[início: 12/07/2017 - fim: 06/07/2019]
"De que falamos quando falamos de amor", Raymond Carver, tradução de Carlos Santos, Lisboa: Relógio D'Água Editores, 1a. edição (2015), brochura 13x20 cm., 150 págs., ISBN: 978-989-641-517-4 [edição original: What We Talk About When We Talk About Love (New York: Alfred A. Knopf) 1981]

quarta-feira, 3 de julho de 2019

a bloomsday postcard

No mês passado, no 16 de junho, domingo, ao contrário do que tinha feito reiteradamente durante trinta anos, resolvi não participar em um lugar público de uma festa literária que realmente me agrada, o Bloomsday. Estava aborrecido, casmurro demais, com questões ainda não resolvidas em minha vida, cansado. Não era hora de eventualmente ofender pessoas susceptíveis a meus caprichos, a meu humor variável, a meu eu irascível. Decidi ficar apenas com as meninas, Helga e Natália; com os gatos, Salen, Lilica, Kyo, Sissy e Nicolau; com os livros de minha biblioteca, sobretudo os livros de Joyce; com meu Bushmills; com a música de Marcelo Tápia e seus Irish Dreams. Um dos livros ao qual sempre retorno nesses festejos do Bloomsday é "A Bloomsday Postcard", de Niall Murphy, publicado originalmente no centenário do dia dedicado a comemorar os sucessos narrados no "Ulysses", que é o 16 de junho de 1904. Trata-se de um volume onde estão registradas reproduções de 252 cartões postais que foram enviados ou recebidos em Dublin em 1904. Murphy, um velho antiquário e comerciante de livros irlandês, reuniu esses 252 cartões e aproveita, tanto a imagem/ilustração quanto o texto escrito pelos remetentes, para falar da Irlanda, de Dublin, do povo irlandês, dos personagens literários que gravitam James Joyce, dos incidentes e passagens que são narradas no Ulysses. O resultado é muito especial. O leitor é conduzido pelos capítulos do Ulysses, enquanto Murphy mostra as associações que existem entre o texto do livro de Joyce e os múltiplos signos dos cartões postais. Um dos capítulos mais interessantes é aquele dedicado às Rochas Serpeantes, as Wandering Rocks, que Murphy metamorfoseia em Wandering Characters. Nesta parte do livro todos os postais fazem alusão a passagens específicas do livro e são apresentados verbetes em ordem alfabética de uma miríade de personagens nele citados. O leitor não precisa ser um aficionado pelo mundo literário de Joyce para aproveitar "A Bloomsday Postcard". Basta ter alguma curiosidade sociológica sobre a Irlanda e os irlandeses do início do século passado para garantir horas de diversão. Deve-se lembrar que praticamente não existia comunicação via telefone naquela época e o uso de cartões postais era uma forma popular, prática e efetiva de contato entre as pessoas. Segundo Murphy em Dublin ocorriam seis entregas diárias de correspondência de segunda a sábado (e uma aos domingos). Impressionante. A edição (da boa Lilliput Press) é uma maravilha, de excelente qualidade. Um dia com um livro como este não é um dia perdido. De resto, vamos a ver o que acontecerá no Bloomsday do ano que vem. Vale! 
Registro #1426 (livro de arte #30)
[início: 01/06/2019 - fim: 16/06/2019]
"A Bloomsday Postcard", Niall Murphy, Dublin/Ireland: Lilliput Press, 1a. edição (2004), brochura 17x24 cm., 322 págs., ISBN: 978-1-84351-43-X

segunda-feira, 1 de julho de 2019

la palabra se hizo carne

Neste volume, o vigésimo primeiro das adoráveis aventuras do comissário Brunetti engendradas por Donna Leon, acompanhamos a investigação sobre a morte de uma pessoa desfigurada, sem documentos, que aparece em um dos canales de Veneza. Brunetti, com a ajuda dos leais Viannello, Elettra, Pucetti e Foa, alcançam descobrir a identidade do sujeito e as razões de seu assassinato. Patta, o tolo questore que supervisiona a delegacia onde Brunetti trabalha, ganha alguma consideração neste volume, pois não usa sua influência e poder para ajudar um de seus filhos nos exames finais em sua universidade; Paola, sua engenhosa mulher, resolve com maestria questões acadêmico e/ou políticas em sua universidade; seus filhos, Chiara e Raffa, cresceram um bocado, e se espantam com o conhecimento do pai sobre a história italiana e a participação dos jovens italianos na primeira grande guerra mundial; Rizzardi e Bocchese, respectivamente, legista e cientista forense, que prestam serviços a Brunetti, aparecem episodicamente, mas mostram o caminho seguro que ele deve seguir na investigação. A trama envolve basicamente uma questão moral, onde a avareza funciona como motor de um crime. Um médico veterinário, que trabalha em um grande abatedouro, nas proximidades de Veneza, é morto. Donna Leon oferece ao leitor suas costumeiras reflexões sobre questões de meio ambiente, gastronomia, turismo, imigração, mobilidade social, corrupção, problemas educacionais e intrigas típicas da política italiana. Livro primaveril, sem acqua alta, sem grandes sobressaltos, sem caminhadas pela cidade, que se resolve no continente, longe dos canales, campos, fondamentas e sestieres de Veneza. Bem interessante. Vale!
Registro #1425 (romance policial #86)
[início: 30/05/2019 - fim: 05/06/2019]
"La palabra se hizo carne" (Brunetti #21), Donna Leon, tradução de Beatriz Iglesias Lamas, Barcelona: Editorial Seix Barral / Booket #2478 (Grupo Planeta Manuscrito), 1a. edição (2013), brochura 12,5x19 cm., 336 págs., ISBN: 978-84-322-1487-5 [edição original: Beastly Things (Zürick: Diogenes Verlag AG / Penguin Randon House Group) 2012]