quinta-feira, 31 de janeiro de 2013

la ruta joyce

Junto com a "Dublinés", biografia desenhada de James Joyce, encomendei de Alfonso Zapico essa sua outra graphic novel, "La ruta Joyce". Apesar de brotar da vida e da obra de Joyce esse livro tem um outro propósito, descrever a gênese e desenvolvimento de um projeto, aquele que tornou-se o "Dublinés" que conhecemos. Para isso Zapico fez, entre setembro de 2008 a junho de 2011, um conjunto de viagens que todo joyceano e/ou admirador da obra de Joyce gostaria de fazer. Ele sai de Angoulême, na França, onde vive, com seu caderno de esboços, mochila e câmera fotográfica, as vezes sozinho, outras vezes com sua mulher, Manuela, primeiro para Dublin, depois, refazendo basicamente os caminhos que o próprio Joyce fez ao longo da vida, indo a Trieste, Paris e Zürich. Em uma das viagens a Dublin ele participa ativamente de um Bloomsday, a festa literária que é comemorada todo 16 de junho em homenagem a Joyce. As viagens são espaçadas, ele volta sempre a Angoulême, discute seu projeto com os colegas da Maison des Auteurs d'Angoulême, participa de eventos literários, congressos dedicados a obra de Joyce, encontra pesquisadores e especialistas em sua obra. Mas são suas descrições das cidades aquilo que prende o leitor ao livro. Ele é mesmo um grande observador e sabe pontuar os dados factuais relacionados à Joyce com suas impressões sobre a política, economia e cultura européia de hoje, num contraste que torna o livro mais que apenas um exercício de estilo. O livro serve a vários propósitos. Pode ser consultado como um bom guia de viagens (as informações dele sobre os horários impossiveis de alguns museus ou a penúria de alguns, verdadeiros caça-níqueis que somente usam o nome de Joyce, sem de fato servirem como fonte de informação ou prazer, são excelentes). Pode ser consultado como uma separata de seu portfólio, um recorte sentimental de seu livro anterior. Os projetos humanos sempre tem algo de errático. É razoável que aquilo que planejamos e aquilo que finalmente podemos apresentar como resultados sejam diferentes (as vezes substancialmente diferentes). Pois "La ruta Joyce" chega ao fim nos apresentando esse sentimento, como se Zapico nos desse um presente mais, compartilhando conosco a impressão de ter aprendido mais do que pode apenas registrar em livro e nos convidando a experimentar, nós também, esses caminhos, essas rotas. Deve ter mesmo sido uma experiência seminal essa a dele.
[início: 13/01/2013 - fim: 19/01/2013]
"La ruta Joyce: Dublín - Trieste - París - Zúrich", Alfonso Zapico, Bilbao: Astiberri ediciones, 1a. edição (2011), brochura 15x21 cm, 206 págs., ISBN: 978-84-15163-42-8

quarta-feira, 30 de janeiro de 2013

dublinés

No último 12 de janeiro, véspera do dia em que celebravamos os 72 anos da morte de James Joyce, recebi três livros que tratam de sua obra. "Dublinés", o primeiro deles que li, é uma graphic novel, muito bem editada pela Astiberri, excelente editora sediada no País Basco. O autor é um jovem e premiado asturiano, Alfonso Zapico, que nos últimos anos vive e trabalha na cidade francesa de Angoulême, conhecida por sediar anualmente um grande festival de quadrinhos. O tema dificilmente não poderia ser mais caro a mim: uma biografia de James Joyce. O resultado é muito bom. O livro é confessadamente inspirado na robusta biografia de Joyce assinada por Richard Ellmann, mas usa também informações de uma outra história em quadrinhos, o engraçado Joyce para principiantes (de David Norris e Carl Flint), além de dois outros bons livros repletos de ilustrações (James Joyce's Ireland, de David Pierce, e Faithful Departed, de Kieran Hickey). O livro de Zapico oferece ao leitor um panorama bastante rico e detalhado sobre a vida e a obra de Joyce. Dublinés (que em português é dublinense, no singular, gentílico que Zapico adota provisoriamente para escrever e desenhar sua história) é bem dividido em seis capítulos temáticos, onde descreve cronologicamente (i) a vida familiar e os antepassados de Joyce; (ii) sua infância e juventude em Dublin; (iii) seu encontro com Nora Barnacle e saída da Irlanda; (iv) os tempos de exílio e pobreza em Trieste; (v) os anos em que viveu em Paris, até a publicação do Ulysses e (vi) os conturbados anos onde alcança grande reconhecimento, divide-se entre a produção do Finnegans Wake e a esquizofrenia de sua filha Lúcia. Certamente um leitor interessado em conhecer algo sobre James Joyce encontrará informações valiosas neste livro. Só encontrei um erro realmente importante, aquele em que Zapico grafa como 02 de dezembro de 1921 o dia em que Joyce recebeu o primeiro exemplar do Ulysses (quando a data certa é o dia de aniversário de Joyce, 02 de fevereiro de 1922). Mas esse é um detalhe besta. O livro reúne um número significativo dos causos que frequentemente são associados à Joyce, com leveza e um tanto de ironia. Não se trata de um compêncido de datas e fatos, mas uma reflexão realmente particular sobre o universo joyceano. O traço de Zapico é agradável, nada poluído ou pesado, parece que ele usa sempre sutis efeitos de aquarela nas ilustrações. Haverá muito mais James Joyce por aqui. E isso é muito bom.
[início: 13/01/2013 - fim 16/01/2013]
"Dublinés", Alfonso Zapico, Bilbao: Astiberri ediciones, 1a. edição (2011), capa-dura 18x24,5 cm, 232 págs., ISBN: 978-84-15163-04-6

terça-feira, 29 de janeiro de 2013

últimas palavras

Nesse pequeno livro acompanhamos as últimas palavras de um grande polemista, de um sujeito que nunca teve medo de defender suas idéias. Dele já havia lido o seminal "Deus não é grande", um impressionante ensaio onde ele defende as vantagens da inteligência e do secularismo, em contraposição ao obscurantismo, a fé religiosa e o medo. Hitchens descreve como descobriu por acaso que estava com câncer já em estágio avançado, justamente no dia em que seu livro de memórias alcançava o primeiro lugar em uma lista de livros mais vendidos nos Estados Unidos (a vida sabe proporcionar ironias deste tipo). Sabendo que os ateus jamais devem oferecer consolo ele não pede solidariedade nem palavras de incentivo. Estóico que era, ele apenas pede que o leitor acompanhe suas digressões, como num rito de despedida. Se um leitor ficar com dúvidas se deve ou não ler o livro não deve experimentar o primeiro parágrafo, incrívelmente sedutor: "Mais de uma vez em minha vida acordei com a sensação de estar morto. Mas nada me preparou para o começo da manhã de junho em que recobrei a consciência sentindo-me como que acorrentado a meu próprio cadáver." Depois de um início como esse é impossível largar o livro, por mais que as detalhadas descrições de quimioterapias, radioterapias e outros procedimentos médicos sejam devastadoras. De qualquer forma trata-se de um livro curto, como curtos foram os dias que se seguiram a descoberta de seu câncer, já que pouco mais de um ano e meio o separaram da morte. Carismático, vibrante, hiper-ativo, Hitchens viveu uma vida plena, e como ateu determinado, soube escolher seus embates, direcionar sua inteligência e língua afiada, esgrimir sua lógica e argumentos demolidores até o final. Para ele o que deve-se evitar com fúria é imergir no "reino da ilusão", acreditar nos programas que incentivam a "idiotice das metáforas que comparam os tratamentos como batalhas contra o câncer que sejam possíveis de serem vencidas". Os auto-enganos sempre custam caro.
[início: 27/01/2013 - fim: 29/01/2013]
"Últimas palavras", Christopher Hitchens, tradução de Alexandre Martins, Rio de Janeiro: editora Globo, 1a. edição (2012), brochura 14x21 cm, 91 págs., ISBN: 978-85-250-5274-2 [edição original: Mortality (New York: Twelve Books / Hachete Book Group) 2012]

segunda-feira, 28 de janeiro de 2013

sr. bliss

Num dia tão absurdo, tão terrível, quando uma vez mais somos lembrados que a vida é mesmo breve, um sopro, um acaso; que pouco importa o futuro e o passado, restando-nos os eventuais prazeres e fardos de um dia como única cousa boa e memorável; que a morte seguirá sempre ceifando sua cota diária, sem critério, limite ou temor; que a estupidez, cupidez e incúria sempre cobrarão caro demais, afastadas das leis, punição e bom senso que estão, eis que continuar os projetos de leitura se torna algo patético e inútil. Pensei em começar o réquiem literário de Christopher Hitchens, "Últimas palavras", mas achei soturno demais para um dia que já se apresentava duro, mas encontrei nos guardados esse "Sr. Bliss", que havia separado para as delícias das férias e de dias mais preguiçosos. Tolkien nunca publicou essa espécie de capricho, uma historieta que produziu e ilustrou ainda nos anos 1930 mas que só foi publicada em livro, postumamente, em 1982. A edição brasileira é muito bem cuidada, reproduz em fac-símile os textos e ilustrações de Tolkien nas páginas ímpares e as espelha a uma tradução do texto original nas páginas pares. A história é curiosa, descreve um dia de um sujeito (o Sr. Bliss, amigo de uma impressionante girafa-coelho), que compra um carro amrelo e experimenta aventuras incríveis com seus vizinhos, com comerciantes e mascates de sua região, com um policial excêntrico, com ursos comedores de bananas e repolhos, e segue experimentando uma série de acidentes rodoviários, almoços elaborados e  passagens por florestas perigosas e escuras até um intrincado final. No início o livro parece uma brincadeira produzida apenas para entreter garotos entediados em um dia de chuva (como Tolkien realmente fez para seus filhos, originalmente), repleta de ilustrações coloridas e pouco texto, mas aos poucos um texto elaborado e vívido se apresenta, demonstrando que um escritor de verdade nunca trai suas habilidades, sua imaginação, sua arte. Acho que vou enviar esse divertido, estimulante, alegre, espirituoso e rico livro para doña Clara, minha sobrinha, vamos a ver.
[início 27/01/2013 - fim 28/01/2013]
"Sr. Bliss", J.R.R. Tolkien, tradução de Monica Stahel, São Paulo: editora WMF Martins Fontes, 1a. edição (2012), capa-dura 25,5x19,5 cm, 104 págs. ISBN: 978-85-7827-632-4 [edição original: Mr. Bliss (London: George Allen & Unwin) 1982]

domingo, 27 de janeiro de 2013

a síndrome de copérnico

Foi don Ernani, golfista e leitor disciplinado, amigo de longa data, quem me alcançou esse livro. Trata-se de um thriller psicológico, publicado originalmente em 2007. Loevenbruck apresenta uma história movimentada, que prende o leitor curioso em saber como as questões propostas por ele serão resolvidas, mas que não me parece muito original, paciência. O livro começa com um atentado terrorista no grande centro financeiro de Paris, La Défense. É algo claramente inspirado nos atentados terroristas do 11 de setembro, nos Estados Unidos, mas o que realmente incomoda o leitor são os paralelos explícitos aqueles romances de Robert Ludlum dedicados às aventuras do assassino desmemoriado Jason Bourne. É muito parecido para que o leitor fique de fato entusiasmado. O personagem de Ludlum é dos anos 1980 (e seus filmes foram lançados a partir dos anos 2000), mas o protagonista de Loevenbruck já foi gestado após os atentados terroristas de New York (2001), Madrid (2004) e Londres (2005) e, de um jeito torto, enaltece as atividades de legítimos terroristas de estado, numa espécie de contradição ética, se é que se pode entender essas atividades clandestinas à luz de alguma inteligência, justificativa ou valor. De qualquer forma o que torna o livro interessante são as digressões psicológicas, aquelas dedicadas a entender como opera um esquizofrênico, uma mente perturbada ou submetida a uma radical programação psicológica. O leitor acaba ficando curioso nos dedobramentos da história (e Loevenbruck consegue manter sua narrativa afinal de contas), mas falta algum estofo para esse livro ser realmente meritório. Vamos em frente.
[início 01/01/2013 - fim 03/01/2013]
"A síndrome de Copérnico", Henri Loevenbruck, tradução de Maria Alice Araripe de Sampaio Dória, Rio de Janeiro: editora Bertrand Brasil, 1a. edição (2011), brochura 15,5x23 cm, 504 págs. ISBN: 978-85-286-1500-5 [edição original: Le Syndrome Copernic (Paris: éditions Flammarion) 2007]

segunda-feira, 21 de janeiro de 2013

do que eu falo quando eu falo de corrida

Nunca havia lido nada de Haruki Murakami. Mas esse "Do que eu falo quando eu falo de corrida" não é nenhum de seus romances mais conhecidos (Norwegian Wood, Kafka à beira-mar, Pinball/1973 ou 1Q84). Trata-se de relato biográfico, onde Murakami descreve sua prática como maratonista e triatleta (e a influência destas atividades físicas, incrivelmente contínuas e de alto desempenho, em sua vida e produção literária). As reflexões não são exatamente originais (todo aquele que já praticou exercícios regularmente as conhece e/ou vivencia, cedo ou tarde), mas são considerações realmente interessantes. Segundo ele praticar exercícios regularmente é uma atividade solitária e naqueles momentos em que corremos, nadamos, usamos uma bicicleta ou mesmo nos exercitamos em uma academia) nos transportam a uma espécie de transe similar ao alcançado quando lemos (ou escrevemos, como no caso dele) ficção. O relato alterna passado e o presente na forma de digressões biográficas. Ficamos sabendo como ele abandonou uma aparentemente promissora atividade comercial (como dono de um bem sucedido bar de jazz em Tóquio), arriscando-se a viver de sua produção literária - como ele começou a escrever relativamente tarde (já tinha quase trinta e cinco anos quando publicou seu primeiro livro) não estava muito seguro da viabilidade do projeto. Ele diz também como começou a correr todos os dias para relaxar do tempo em que ficava concentrado na escrita e como passou a progressivamente a correr distâncias mais longas, até determinar-se a correr ao menos uma maratona todos os anos a partir de então. Após ter completado mais de vinte e cinco maratonas, ter começado a praticar triatlo e ter experimentado uma corrida de 100 Km (uma legítima ultra-maratona), Murakami parece satisfeito, tanto com os livros que escreveu, quanto de sua superação pessoal. Apesar do risco inerente de relatos desta natureza tornarem-se registros algo místicos, revelações espirituais e filosóficas, Murakami consegue manter-se objetivo, sem resvalar para sentimentalismos, pieguices ou bobagens de auto-ajuda.  Talvez livros assim só sejam de fato interessantes para aqueles que de fato gostem de correr ou nadar regularmente. Vamos em frente (e a ver se encontro algum de seus romances, para descobrir se ele tem mesmo estofo). Vale.
[início 15/12/2012 - fim 17/12/2012]
"Do que eu falo quando eu falo de corrida: um relato pessoal", Haruki Murakami, tradução de Cássio de Arantes Leite, Rio de Janeiro: editora Objetiva, 1a. edição (2010), brochura 15x23 cm, 150 págs. ISBN: 978-85-7962-027-0 [edição original: Hashiru Koto Ni Tsuite Kataru Toki Ni Boku No Kataru Koto / 走ることについて語るときに僕の語ること (Tóquio: Bungeishunjū) 2007]

domingo, 20 de janeiro de 2013

um ganso em toulouse

Quem me falou com algum entusiasmo sobre esse livro foi don Titi Roth, artista plástico - e gastrônomo - dos bons (sempre escudado nas aventuras literárias e da vida pela Dèsirée, claro). Mas isso foi há muitos anos, sei lá quantos. Noutro dia, dando uma arrumada nos guardados, dei com "Um ganso em Toulouse" escondido entre outros que tratavam da boa arte da cozinha (junto com livros que tratavam das vantagens óbvias do hedonismo). O autor desse "Um ganso em Toulouse" é Mort Rosenblum, jornalista americano muito experiente, principalmente nas áreas de política, economia e conflitos armados, e que trabalhou muitos anos como correspondente estrangeiro na Europa. Radicado em Paris desde meados dos anos 1970 ele acabou conhecendo bem a França e os franceses. Em "Um ganso em Toulouse", publicado originalmente em 2000, ele conta histórias que gravitam o mundo da gastronomia, da culinária, dos vinhedos e dos restaurantes, mas no fundo todas elas têm algo de ensaios sociológicos disfarçados. Talvez eu esteja exagerando, talvez sejam apenas reflexões pretensamente sociológicas, tentativas de entender uma sociedade complexa sem muita metodologia e rigor. De qualquer forma o texto de Rosenblum é envolvente, um belo exemplo de "new journalism" aplicado, onde a narrativa jornalística se funde bem com as liberdades literárias próprias da ficção. Cada um dos 19 artigos do livro devem ter sido escritos no intervalo entre a queda do muro de Berlin (1989) e o fim do século XX. Enquanto todos os europeus parecem temer os sinais da nova ordem política e econômica (e os franceses em particular parecem temer as mudanças de sua identidade nacional com os novos rumos da União Européia) Rosenblum viaja pelo país e pergunta aos franceses "se a cozinha da França está declinando", compilando com algum humor as respostas que recebe. O viés de analista político e correspondente de guerra sempre transparece nas entrevistas. Rosenblum fala com a gente do setor primário da economia (produtores de vinhos e de queijos, criadores de animais de grande porte, peixes e aves); com grandes chefs, sócios-proprietários de restaurantes estrelados pelo guia Michelin, mas também com proprietários de modestos albergues e tabernas do interior francês, com amigos e vizinhos, gente que ele encontra nos mercados e no campo. Talvez o mundo esteja se transformando depressa demais para que livros como este sirvam como guias secundários de viagem (frente ao que acompanhamos pelos jornais hoje em dia, tudo o que Rosenblum conta parece ser mais contemporâneo do mundo do pós segunda grande guerra, da guerra fria, e não de algo vivído apenas há quinze anos). Todavia, ainda assim, é um bom livro, adequado para aqueles interessados na cultura, tradições e hábitos franceses. Acho que vou procurar outros livros desse sujeito (há mais na pilha hedonista de onde veio esse). 
[início 06/01/2013 - fim 17/01/2013]
"Um ganso em Toulouse e outras aventuras culinárias na França", Mort Rosenblum, tradução de Talita M. Rodrigues, Rio de Janeiro: editora Rocco (coleção Prazeres e Sabores), 1a. edição (2003), brochura 14x21 cm, 376 págs. ISBN: 85-325-1515-0 [edição original: A goose in Toulouse and Other Culinary Adventures (New York: Hyperion Books) 2000]

segunda-feira, 14 de janeiro de 2013

a loucura do almayer

"A loucura de Almayer" é o primeiro dos livros publicados de Joseph Conrad. Ele começou a escrevê-lo no final dos anos 1880, quando ainda trabalhava na marinha mercante inglesa, atividade que desempenhou por mais de dez anos. A publicação é de 1895, ano em que abandona a carreira de marinheiro e toma a decisão de tornar-se escritor. Ele narra os desdobramentos dos sonhos de riqueza de um sujeito de origem holandesa que vive isolado em um entreposto comercial em Bornéo, uma das grandes ilhas do sudeste asiático. Quando jovem Almayer - por cupidez - casou-se com uma princesa malaia (e/ou pirata) que havia sido feita prisioneira por seu empregador, Tom Lingard. Os dois (Almayer e Lingard) são os únicos brancos em uma vizinhança onde vários potentados islâmicos e hindus disputam o poder. Almayer tem uma filha, Nina. Quando Lingard volta à Europa, deixando-o a administrar seus negócios, Almayer acredita que terá finalmente acesso às grandes riquezas dele, escondidas na floresta. Nina é a força motriz deste projeto, pois seu plano é voltar a Holanda e apresentar, orgulhoso, sua filha à sociedade. Almayer acredita que o poder local será transferido aos ingleses e investe todo o dinheiro que ainda tem na construção de um porto fluvial e um grande bangalô (que permanecerá inacabado, tornando-se assim, metaforicamente, a tal "loucura de Almayer" que dá nome ao livro). Lakamba, o velho rajá local, trabalha contra este projeto, todavia Alamayer se aproxima de um outro príncipe malaio, um jovem de origem hindu, Dain, que se apaixona por sua filha (que, afinal de contas, também é descendente de príncipes malaios). Assim, gradativamente, a história deixa de ser a narrativa típica de aventuras pelos mares do sul para tornar-se a narrativa do conflito mais fundamental entre amor e ciúme, conflitos que invariavelmente levam os homens para a destruição, a loucura e a morte. O texto é bem inventivo, há vários planos temporais na história, que se alternam e cobram atenção do leitor. Ainda tenho alguns livros de Conrad para tirar das prateleiras. Cousa boa.
[início 03/01/2013 - fim 06/01/2013]
"A loucura do Almayer", Joseph Conrad, tradução de Julieta Cupertino, Rio de Janeiro: editora Revan, 1a. edição (1999), brochura 14x21 cm, 196 págs. ISBN: 85-7106-170-X [edição original: Almayer's Folly (Londres: T. Fisher Unwin) 1895]

sexta-feira, 11 de janeiro de 2013

finisterra

Conheci Hugo Crema virtualmente, através de uns bons e-mails e de eventuais conversas cifradas típicas do twitter. Discutimos sobre a literatura brasileira contemporânea, jornalismo, crítica, tonterias sobre a Espanha e, claro, sobre literatura espanhola, cousa que ambos apreciamos muito. Quando li seu "Finisterra" não fiquei realmente surpreso, pois sabia que se tratava de um sujeito que conhece seu ofício, apesar de ser ainda um bocado jovem (os jovens costumam ter todos os defeitos de velhos como eu, acrescidos por um outro, certamente dominante: o da inexperiência). Bueno. Depois li contos dele publicados no e-book "O cachorro provisório", igualmente bons. Sobre a trama de "Finisterra" prefiro falar pouco, pois Saulo, Nilza e Vivianne são personagens que devem se apresentar sozinhos (não há porque ser eu quem quebre o encanto que a primeira leitura do livro provoca). Só acresento o que já disse a ele meses atrás: A Finisterra geográfica, ponto mais ocidental das escarpas ondulantes da Galícia, na Espanha, é um ponto de chegada. Já a narrativa compacta e segura de Hugo Crema nesse seu "Finisterra" parece ser um surpreendente porto de partida. O romance cobra atenção e engenho do leitor, mas o recompensa com algo realmente arrebatador. Não há artificialismos no texto, as digressões são estimulantes, os diálogos vívidos. A narrativa, técnica e precisa, denuncia um sujeito que já leu muito e que sabe contar com originalidade uma boa história. Hugo parece desafiar seus leitores a se aproximar, sem interferências, de seus protagonistas. Se na Finisterra geográfica é a vastidão do mar e seus ruídos que consolam o viajante, no "Finisterra" literário de Hugo Crema o que assombra e seduz o leitor é a contenção, aquilo que não é dito, o silêncio duro das coisas. Olho, temos aqui um bom livro e um bom escritor.
[início 28/12/2012 - fim 02/01/2013] 
"Finisterra", Hugo Crema, Rio de Janeiro: editora Baluarte, 1a. edição (2012) brochura 14x21cm, 108 pág. ISBN: 978-85-66031-10-2

domingo, 6 de janeiro de 2013

zurbarán

Nestes últimos dias, vagabundo, aproveito para retomar leituras interrompidas, terminar os projetos antigos, consultar indicações dos amigos, passar os olhos pela biblioteca procurando algo novo. Claro, sempre aberto às surpresas, ao acaso, ao azar, como sempre deve ser. Um dos livros que estava a esperar dias assim é esse "Zurbarán", de Cees Nooteboom. Hoje é o dia de reis e o dia dos ointenta anos de minha mãe, doña Victória. Depois de falar com ela pelo telefone sabia que teria de dedicar-me a algo que traria lembranças de coisas caras a ela, imergir um tanto no mundo das artes, do epifânico, do mítico. E assim, com Nooteboom, Zurbarán e Vic passei um domingo realmente agradável. O texto de Cees Nooteboom é curto, mas seminal. Assim como sobre a vida em seus romances ele fala aqui sobre arte com exuberância, critério e propriedade (seu "O enigma de la luz" é uma daquelas maravilhas que demoramos para esquecer). Não me surpreendi com sua força. Nas descrições dos quadros ele usa passagens que já encontramos no seu "El desvío a Santiago" (naquele ele confessa que esse último foi pensado para justificar suas viagens por toda a Espnha até os quadros de Zurbarán). Os quadros de Zurbarán são sombrios, soturnos, pesados, carregados de simbolismo e dor. Nooteboom alcança transportar até às palavras a impressão estética que nossos olhos, neófitos e imperfeitos que são, captam, mas não sabem interpretar. Obviamente nada supera a experiência de ver os quadros, mas as pranchas com as reproduções, cinquenta delas (grandes e impressas em papel de boa qualidade) valorizam o projeto. Nunca pude viajar com doña Vic a Madrid, passearmos juntos num dia estival e mágico por lá, mas mostrar a ela livros e fotografias ao voltar das viagens sempre lhe fizeram um grande bem. Vale. Agora sim começou o ano bom. Parabéns uma vez mais minha cara. 
[início 05/01/2013 - fim 06/01/2013] 
"Zurbarán: El pintor del misticismo", Cees Nooteboom, tradução María Condor, Madrid: ediciones Siruela (La biblioteca azul - série Mayor #13), 1a. edição (2011) capa-dura 26,5x31cm, 132 pág. ISBN: 978-84-9841-561-2 [edição original: Zurbarán & Cees Nooteboom. (Essay) Amsterdam: Atlas, 1992 / Zurbarán: Schilderijen 1625-1664 / Zurbaránk (reisverhalen), Amsterdam: Schirmer/Mosel, 2011]