quarta-feira, 30 de março de 2011

maigret na escola

O problema de ler vários romances policiais ao mesmo tempo - mesmo quando se tratam de romances bem escritos como são os de Georges Simenon, é que nos entediamos mesmo. O roteiro é sempre o mesmo. Acontece algo inusitado, um detalhe bobo ou algo fora da rotina. O comissário Maigret põe sua maquinaria mental para funcionar e voilá: a solução do enigma se apresenta para o leitor (e ponto final, como sempre nos ensina don Tailor Diniz sobre o que se fazer em um romance policial). Bueno. No caso deste "Maigret na escola" o comissário condói-se de um jovem professor de província que busca por sua ajuda para um caso nebuloso. Uma velha senhora, vizinha da pequena escola rural onde ele dá aulas é morta com um tiro de espingarda. Como ele e sua mulher não são bem quistos na comunidade ele torna-se automaticamente suspeito, apesar de não haver nenhuma prova forte contra ele. A curiosidade de Maigret (e a vontade de consumir ostras e um bom vinho branco na região costeira de L'Aiguillon-sur-Mer) levan-no a atender a solicitação do jovem professor. O caso é banal, mas faz com que Maigret relembre sua juventude, ele também um provinciano, criado no campo. Apesar da resistência da população local Maigret rapidamente localiza quem de fato atirou e matou a velha senhora. Nada que um leitor atento não possa inferir logo no início, mas a versatilidade e o domínio do ofício de Simenon fazem com sigamos com o livro até o final. Preciso ler coisas com mais estofo. Esta é a verdade. [início 13/03/2011 - fim 14/03/2011]
"Maigret na escola", Georges Simenon, tradução de Paulo Neves, editora L&PM Pocket (v. 925), 1a. edição (2011), brochura 10,5x18 cm, 176 págs. ISBN: 978-85-254-2104-3 [edição original: Maigret à l'école, Presses de la Cité (França), 1954]

segunda-feira, 28 de março de 2011

maigret sai em viagem

Nesta história de Simenon o comissário Maigret se envolve com o mundo dos endirenhados, sempre acima de qualquer suspeita. O caso de assassinato é banal. Um sujeito é encontrado morto em um hotel cinco estrelas, afogado em uma banheira. A mulher com quem esta envolvido, também hospedada neste hotel, desaparece e é a principal suspeita. Com a ajuda de seu ex-marido, um rico financista belga, logra se afastar rapidamente da curiosidade dos jornais sensacionalistas. Maigret segue a pista certa desde o início. De Paris a Monte Carlo, de lá a Genebra e logo de volta a Paris em um par de dias. Uma noite a mais circulando pelos corredores do hotel e se familiarizando com o ritmo do local e das vizinhanças é o que basta para Maigret descobrir como o assassino, seu suspeito particular desdo o início, cometeu o crime. Ao ser desmascarado o sujeito percebe a inutilidade de negar sua participação. Nos livros de Simenon os fundamentos dos romances policiais são explícitos. Pouco nos surpreendem. Nos enredamos rapidamente com a história. É uma espécie de vertigem. Ele não dá ao leitor muita chance de refletir e imaginar o que vem a seguir (apesar do óbvio da elucidação de um crime qualquer nas últimas páginas). Para escapar da realidade de um dia que cheire a tédio nada melhor que livros desta natureza. O livro discute superficialmente sobre a estrutura de classes francesa. Há um momento em particular na história onde Maigret trai seu provincianismo, situação que o aborrece sobremaneira, quase impedindo-o de raciocinar adequadamente. Nisto há um anacronismo temporal, pois as relações entre o poder, a justiça e a riqueza, mesmo em uma sociedade reconhecidamente estanque como a francesa, mudaram muito nos cinquenta anos que se passaram desde a publicação original do livro. Paciência. [início 12/03/2011 - fim 13/03/2011]
"Maigret sai em viagem", Georges Simenon, tradução de Alessandro Zir, editora L&PM Pocket (v. 889), 1a. edição (2010), brochura 10,5x18 cm, 164 págs. ISBN: 978-85-254-2053-4 [edição original: Maigret voyage, Presses de la Cité (França), 1958]

sábado, 26 de março de 2011

a primeira investigação de maigret

Tânia Lopes é uma amiga querida e dela ganhei um vale presente em livros (ela bem que me conhece). Bueno. Arrematei um livro do Ondjaki (jovem escritor angolano que vou logo resenhar por aqui) e para arredondar o valor total do vale peguei este Simenon, que estava à mão e é sempre garantia de diversão (ligeira, mas consistente). Se Simenon escrevia rapidamente seus leitores não deixam por menos. É impossível começar uma de suas histórias e não querer saber o desfecho de uma vez. Em um par de horas liquidamos com a expectativa. O curioso neste volume é que se trata do primeiro caso concreto em que Maigret se envolve. Em 1913, ainda um jovem assistente e plantonista noturno em uma delegacia de bairro, ele tem sua obstinação e intuição postos à prova em uma questão nebulosa, envolvendo herdeiros de burgueses endinheirados e arrivistas. Sofisticados e enganadores ou não, de qualquer forma há um crime para se resolver. O modo como Simenon descreve a engenharia mental do inspetor é algo raro de se apreciar. Maigret é um policial que segue os manuais de instruções e as leis de seu ofício. Nesta história Simenon tenta criar a atmosfera de seu aprendizado mundano, ou seja, de como ele aprende a interagir - e a tirar proveito profissional disto - com os diferentes tipos humanos, com os distintos personagens da complexa sociedade em que vive. Vamos em frente. [início 11/03/2011 - fim 12/03/2011]
"A primeira investigação de Maigret", Georges Simenon, tradução de Áurea Weissenberg, editora L&PM Pocket (v. 367), 3a. edição (2006), brochura 10,5x18 cm, 200 págs. ISBN: 85-254-1337-2 [edição original: La première enquête de Maigret, Presses de la Cité (França), 1949]

segunda-feira, 21 de março de 2011

um diário russo

Durante quarenta dias entre agosto e setembro de 1947 John Steinbeck e Robert Capa viajaram por algumas das repúblicas soviéticas. Os dois sentiam-se algo incomodados com o clima beligerante entre americanos e soviéticos no pós-guerra, nos anos iniciais do que viria a ser conhecido por guerra fria. Aliados na luta contra Hitler, os dois impérios dividiram zonas de influência e se acusavam de transgressões e objetivos inconfessos nesta partilha. Ambos possuiam artefatos atômicos e já se imaginava que uma nova guerra seria inevitável. Steinbeck já era um escritor respeitado, vencedor de um prêmio Pulitzer (ele viria a ganhar o Nobel em 1962). Capa um foto-jornalista mais do que experimentado em reportagens deste tipo. Ambos foram simpatizantes do socialismo real, como parte significativa dos intelectuais no pós-guerra. Steinbeck propõe-se fazer uma reportagem honesta, que apenas registre o que ele vê, sem comentários políticos ou análises conjunturais profundas. Apesar das restrições ao trânsito de extrangeiros que o regime soviético fazia à época os dois conseguiram visitar Kiev (na atual Ucrânia), Stalingrado (atualmente Volvogrado) e os balneários da Georgia, além da capital Moscou, que na época da viagem festejava com pompa e orgulho seus 800 anos. Steinbeck e Capa registraram o dia a dia da população, conversaram com pessoas de todos os tipos (embora seja razoável supor que todas tinham sido de alguma forma selecionadas pelo serviço secreto soviético). Capa fez cerca de 4000 fotografias. O livro inclui uma centena delas. Fotos de paz e não de guerra, como aquelas impressionantes de seu livro "ligeiramente fora de foco". São fotos que contam uma história paralela ao texto (como costuma acontecer com os bons fotógrafos). O texto de Steinbeck é jornalístico, sem firulas ficcionais, mas através do qual aprendemos o quão bom escritor ele foi. Como bom prosista ele consegue registrar vividamente o humor das situações absurdas sem se tornar piegas ou chato. A meu juízo ele exagera nas críticas às idiosincrasias de Capa (seus hábitos noturnos e ablusões matinais, seu zêlo com os negativos das fotografias e reclamações frente as limitações impostas pelos russos). Capa contribui com um texto curto, duas ou três páginas que ele chama de "uma queixa justificada", onde ele reclama da convivência forçada com Steinbeck e das vicissitudes da viagem. É um livro interessante e válido ainda hoje, entretanto parece que eles falam de um mundo tão distante que ninguém poderia mais nele se reconhecer (a meu juízo porque o mundo tornou-se muito mais artificial e hipócrita do que naqueles dias). [início 01/03/2011 - fim 08/03/2011]
"Um diário russo", John Steinbeck, fotografias de Robert Capa, tradução de Claudio Alves Marcondes, editora Cosac Naify, 2a. edição (2010), capa-dura 16x23 cm, 328 págs. ISBN: 978-85-7503-951-9 [edição original: A russian journal, Viking Press (USA), 1948]

sábado, 19 de março de 2011

cartas a um jovem escritor

Fiquei tão irritado com a banalidade de um livro noutro dia (o maçante "Para ser escritor") que resolvi experimentar este pequeno livro de Mario Vargas Llosa. "Cartas a um jovem escritor" foi publicado originalmente em 1997. Os comentários de Vargas Llosa são sóbrios e a linguagem bastante precisa. Ele não adjetiva excessivamente, não se traveste de moralista ou pontifica modas e tendências. Não é um livro técnico sobre o ofício de se escrever profissionalmente, mas antes um livro sobre as técnicas do romance. Pacientemente, mas sem digressões muito longas, Vargas Llosa descreve aquilo que é imprescindível na construção de um livro. Ele sabe ser retórico, faz o leitor perguntar-se pelas motivações que podem levá-lo a escrever, perguntar-se do porque escolher o rigor e a disciplina inerentes ao ato de escrever, ao ato de inventar realidades, ao invés de se esforçar por viver a realidade da vida. Ele dá conselhos e descreve a arquitetura dos romances: desde a escolha de uma voz e elaboração de personagens, até a estrutura espacial e temporal das histórias, passando pelo estilo, níveis de realidade, truques narrativos e intertextualidades possíveis. É o tipo do livro que leva o leitor a sério e não se contenta em apenas listar conceitos e teorias acadêmicas (nem a ser auto-indulgente e cabotino, como me parece o caso do livro de Charles Kiefer). Cabe registrar que em 1997 Vargas Llosa já tinha construído uma obra literária consistente e respeitada, já tinha recebido o prêmio Cervantes, mas os exemplos que ele dá em seu livro são pinçados de Flaubert e Joyce, de Henry James e Joseph Conrad (dentre vários outros romancistas realmente fortes). Vargas Llosa diz ao leitor que o esforço verdadeiro e a disciplina, a honestidade intelectual, as leituras sistemáticas e o amadurecimento podem levá-lo a desenvolver um estilo, alcançar um poder de persuasão literário realmente poderoso. [início 03/03/2011 - fim 04/03/2011]
"Cartas a um jovem escritor: ´toda a vida merece um livro´", Mario Vargas Llosa, tradução de Regina Lyra, Rio de Janeiro: editora Elsevier (Alegro), 1a. edição (2006), brochura 12x18 cm, 181 págs. ISBN: 978-85-352-2110-7 [edição original: Cartas a un juven novelista, Planeta (Barcelona) 1997]

terça-feira, 15 de março de 2011

suicídios exemplares

Os livros de Enrique Vila-Matas são garantia de histórias disparatadas e provocações mentais. Ele parece sempre convidar o leitor a entrar em uma espécie de jogo, mas também dá a entender que ele - senhor de seus castelos de ficção - é mesmo um completo trapaceiro. "Suicídios exemplares" foi publicado originalmente em 1991, pouco depois de "Una casa para siempre" e antes de "Hijos sin hijos". São dez contos, enfeixados por um prólogo e um posfácio onde Vila-Matas apresenta e exemplifica seu projeto: proporcionar ao leitor momentos de reflexão sobre a idéia do suicídio (na verdade sobre a miríade de formas pelas quais se pode experimentar coisas parecidas com o suicídio: viver vidas sem sentido, mentir a si mesmo, perder-se por amor, escrever romances de ficção). Nas dez histórias estamos sempre perto do mar, somos apresentados a citações que podem ou não serem corretas, rimos sem pudor do bizarro e da morte. Em um dos contos uma garota faz uma viagem sentimental à cidade onde seu pai radicou-se e descobre que ele ali fundou uma seita de suicídas. Em um outro um sujeito esconde sua condição de estrangeiro em uma ilha por quarenta anos, período em que escreve em segredo romances potencialmente agressivos, denunciadores da vaidade e hipocrisia dos ilhéus. Numa história descreve como um ator deixa-se desgraçar lentamente quando percebe não ter talento algum. Em uma outra história acompanhamos um garoto que descobre o poder das palavras cruéis com as quais pode ferir simultaneamente detratores e colegas. Em todas as histórias há equilíbro entre sarcasmo e humor. Na mais divertida delas, "Pedem que eu diga quem eu sou", Vila-Matas inverte seu nome e torna-se um personagem satânico, terrível, que parece responder não a seu personagem interlocutor, mas a cada um dos eventuais leitores. Ele identifica o ofício de escritor com o de uma deidade poderosa, que cria e destrói sem motivação ou culpa. Ele parece dizer que a idéia e a lembrança do suicídio, ao se manifestar em qualquer escolha ou ato da vida (como amar, viajar, escrever, interagir, relembrar, inventar) é o que nos permite suportar as reiteradas desventuras que experimentamos. São contos realmente muito bons. [início 06/02/2011 - fim 01/03/2011]
"Suicídios exemplares", Enrique Vila-Matas, tradução de Carla Branco, São Paulo: editora Cosac Naify, 1a. edição (2009), brochura 15,5x22,5 cm, 208 págs. ISBN: 978-85-7503-796-6 [edição original: Suicidios ejemplares, Anagrama (Barcelona) 1991]

domingo, 13 de março de 2011

o mau vidraceiro

Em "O mau vidraceiro" Nuno Ramos reuniu 62 contos. A maioria deles tem uma ou duas páginas, concisos e diretos que são. Gostei particularmente de um punhado deles: "deusa gorda", "o deus leitor", "quem fala?", "regras para a direção do corpo", "angenor", "separação", "autoajuda", "o último ofício", "os lutadores". Não são exatamente histórias, mas sim idéias que funcionam como uma espécie de aforismo encorpado, reflexões que se recortam e se oferecem ao leitor. Ele fala sempre do estranho que é o comportamento humano, do bizarro que há nas justificativas dos homens para seus atos. Há experimentação formal no texto e uma boa dose de inventividade nos temas que ele escolhe. Os dois textos mais longos, "testamento" e "o amor varre tudo", são muito bons. Não é um livro exatamente fácil de se ler, mas o leitor ganha e se diverte muito com seu esforço. Ainda estou as voltas com um outro livro de Nuno Ramos (Ó). De alguma forma eles dois se comunicam, mas eu preciso terminr o Ó (parece um mantra isto) para poder pensar direito. Veremos. [início 20/10/2010 - fim 01/03/2011]
"O mau vidraceiro", Nuno Ramos, São Paulo: editora Globo, 1a. edição (2010), brochura 14x19 cm, 265 págs. ISBN: 978-85-250-4876-9

quarta-feira, 9 de março de 2011

viaje a la alcarria

Incluí este "Viaje a la Alcarria" na categoria de novelas mais por preguiça. Trata-se de um livro de viagens, um livro onde se conta a experiência de uma viagem, porém tudo é burilado e ficcionalizado com muita técnica, de forma que não se trata exatamente de um guia, mas sim de algo realmente poderoso. Camilo José Cela escreve o livro em terceira pessoa, contando os sucessos e as andanças de um "el viajero", que podemos identificar com ele ou não. A região que "el viajero" percorre é a Espanha rural do pós-guerras (pós segunda grande guerra e pós guerra civil espanhola). Uma Espanha que não havia ainda nem começado a se curar das lutas e excessos dos anos 1930 (um processo de cura que a meu juízo ainda não se completou, mas esta é outra história, que não faz parte deste livro). "Viaje a la Alcarria" foi publicado originalmente em 1948. O itinerario (pelas serras da região de Guadalajara) foi percorrido uns dois anos antes. Cela retrabalhou o texto várias vezes e chegou a um formato final, que é o reproduzido nesta edição que li, apenas no início dos anos 1960. Hoje este caminho é uma rota turística encampada pelo poder público (o da comunidade de Castilla-La Mancha), uma rota onde se pretende proporcionar contato com a Espanha profunda que pretensamente recusa adaptar-se ao mundo contemporãneo. "El viajero" recolhe histórias, causos engraçados e poesias, fala com todos que se dispõem de tempo para uma prosa, faz perguntas. Por vezes é um filólogo amador, um geólogo curioso, um galanteador contumaz, um político ladino e um diplomata hábil. É um livro tocante, que encanta o leitor. Os sujeitos que ele encontra e com quem eventualmente conversa parecem vívidos, como se de alguma forma estivéssemos a seu lado na caminhada, observando-o. Há algo neste livro que lembra do tratamento utilizado por Cees Nooteboom em seu maravilhoso "El desvío a Santiago", que já resenhei aqui. Encontrei várias páginas eletrônicas que fazem menção ao legado histórico e turístico deste livro. Gostei particularmente do texto de Ruta de Camilo José Cela en su viaje a la Alcarria e do itinerário para uma trilha usando bicicletas no wikiloc (uma comunidade de trilheiros). Tudo muito divertido, como sempre deve ser. [início 17/12/2010 - fim 28/02/2011]
"Viaje a la Alcarria", Camilo José Cela, Barcelona: editorial Random House Mondadori (Debolsillo - contemporânea), 1a. edição (2003), brochura 12,5x19 cm, 213 págs. ISBN: 84-9759-256-5 [edição original: Revista de Occidente (Barcelona) 1948]

segunda-feira, 7 de março de 2011

à sombra das raparigas em flor

"À sombra das raparigas em flor" é um livro que fala dos prazeres - e dos perigos - da inteligência. No volume anterior de "Em busca do tempo perdido" aprendemos algo do amor e da paixão, experimentamos como podem ser mutáveis o tempo e a memória, comparamos nosso comportamento na juventude e na maturidade. Já neste segundo volume somos apresentados ao processo de entendimento do mundo, ou melhor, de várias das facetas possíveis do mundo, que um sujeito ao crescer é forçado a experimentar. Vivemos todos os dias, um a cada vez, e a cada vez somos uma metamorfose, uma mutação, do dia anterior. O livro é divido em duas partes. Na primeira, "em torno da sra. swann", encontramos o narrador se esforçando para conhecer a menina Gilberte que vislumbrou de longe, e se apaixonou, quando era mais jovem, em Combray. Há sempre um jogo de contrastes nesta parte: entre o diplomata Norpois e o médico Cottard (aquele mais articulado, porém falso; este aparentemente tolo, porém correto); entre o entendimento de uma obra de arte pela leitura (pela inteligência) e a fruição da mesma obra de arte (pela experiência física); entre a idéia de um amor (do narrador por Gilberte, fugaz) e a construção real de uma amizade (do narrador por Odette, marcante). Já na segunda parte, "nome de terras: o nome", há um câmbio no tempo e na ambientação. O narrador já não está apaixonado por Gilberte e viaja com a avó para uma temporada nas praias de Balbec. Ali ele aprende alguns dos jogos da mundanidade, ou seja, de como operam as relações de classe, entre aristocratas e burgueses, entres estes e trabalhadores assalariados. Proust nunca faz um juízo autêntico de valor, mas antes nos apresenta o mundo como ele é, sem concessões. E a verdade do sentido da vida que ele alcança nos mostrar é cruel. Um sujeito não precisa já ter experimentado todos os prazeres e aborrecimentos da vida para imergir neste livro (imergir em todo o ciclo proustiano). A capacidade de Proust de nos surpreender (com suas construções, suas metáforas, sua lógica, seu enfoque) é algo que paira sobre todo o livro. Em " à sombra das raparigas em flor" conhecemos novos e poderosos personagens, entre eles Robert Saint-Loup, Palaméde de Guermantes e Albertine Simonet. Esta segunda parte é como um rosário de aulas de educação dos sentidos. O narrador é apresentado aos personagens bizarros da cidade à beira mar; à generosidade da marquesa de Villeparisis; à ambivalência - e depois as surpresas - de Sant-Loup; ao amor pela literatura de Bergotte; à rusticidade dos Bloch; ao enigma que é Charlus; ao entendimento da arte e da vida, enfim, à experiência do pintor Elstir; aos amores serpeantes (e cambiantes) que tem por Albertine, Andrée, Gisèle e Rosemonde. Mais do que tudo o narrador é apresentado a sua personalidade, aos câmbios de seu entedimento das coisas. Neste volume qualquer leitor pode vir a se ver retratado. Ora encontramos uma frase reiterada que nos é familiar, ora concordamos com uma particular forma de entender o mundo, ora sorrimos por ver a mesma maneira que utilizamos para reagir a certos estímulos, ora compartilhamos os compromissos da vida que escolhemos. Sempre é um grande prazer ler este livro. Devemos ser gratos aos autores que nos proporcionam prazeres desta natureza. Haverá mais Proust aqui este ano, seguro que sim. [início 18/01/2011 - fim 27/02/2011]
"À sombra das raparigas em flor: Em busca do tempo perdido (vol.2)", Marcel Proust, tradução de Mário Quintana, São Paulo: editora Globo, 3a. edição, revista (2006), brochura 16x23 cm, 669 págs. ISBN: 85-250-4226-9 [edição original: À l´ombre des jeunes filles en fleurs (éditions Gallimard), 1919]

sexta-feira, 4 de março de 2011

a veces un caballero

Terminei de ler este "A veces un caballero" no dia 22 de fevereiro, dia em que o Aguinaldo Severino original, meu pai, fez seus 86 anos (há uns 70 certamente um perfeito cavalheiro). Escrevo estes apontamentos hoje, 04 de março, dia em completo meus 50 anos. Mas eu, se as vezes me comporto como um cavalheiro, o faço provavelmente mais por descuido que por hábito. Bueno. "A veces un caballero" é um livro muito bom. Javier Marías reune 104 crônicas, publicadas originalmente entre novembro de 1998 e fevereiro de 2011. Como um genuíno "antena da raça" ele antecipa temas e debates. Por exemplo, em uma das crônicas ele questiona o valor e a necessidade de uma lei aprovada pelo parlamento sueco onde um ato sexual consumado sem preservativos passava a ser considerado uma espécie de estupro. Escrita há dez anos esta crônica poderia parecer irrelevante, mas é exatamente esta lei que hoje esta sendo utilizada para extraditar Julian Assange, o fundador do wikileaks, para a Suécia (e de onde provavelmente será extraditado para Guantánamo, como quer os EUA). Noutra crônica ele desdenha da estupidez em se advogar que nas flexões de gênero todos os substantivos sejam biformes (cousa que nos dias que correm uma nova senadora da república brasileira - patética que é - se orgulha em defender). Em uma outra ele fala com derrisão da má qualidade do jornalismo praticado pelas novas gerações de jornalistas de seu país. E para citar apenas mais uma (dentre a centena restante) ele nos lembra em uma delas o quão fácil é cair na tentação do xenofobismo, apontando os pequenos deslizes do cotidiano com os quais os europeus do oeste e americanos do norte (de dez anos atrás, incrível) já sinalizavam segregar minorias, livres-pensadores e imigrantes. Defendendo em primeiro lugar sempre a liberdade individual e o bem coletivo não há tema, por irrelevante que seja, longe de suas análises e desconstruções, de sua ironia e sarcasmo. O que realmente me encanta em seu texto é sua capacidade de oferecer ao leitor um tempo de reflexão imerso em sua prosa. Ao mesmo tempo em que acompanhamos sua linha de raciocínio, refletimos e eventualmente o contra-argumentamos mentalmente. Nestes dias de imbecilidade reinante (principalmente no Brasil, onde muita gente parece ter orgulho de ser iletrado ou se comportar como massa de manobra) acompanhar suas reflexões e argumentos é um privilégio. Javier Marías é mesmo o sujeito mais lúcido, o articulista intelectualmente mais honesto e o pensador mais corajoso que li nestes últimos tempos. A frase completa (mais bem o lema) que Marías utilizou para definir o nome deste seu livro é: "A veces un caballero debe dejarse engañar". Talvez seja assim que eu deva fazer. Talvez seja através de reflexões desta natureza que homens como ele ou meu pai alcançaram algum conforto intelectual, alguma sabedoria prática, alguma ferramenta para louvar a liberdade nestes tempos tão medíocres. Vamos a ver. [início 01/02/2011 - fim 22/02/2011]
"A veces un caballero", Javier Marías, Madrid: Alfaguara (Grupo Santillana de ediciones) , 1a. edição (2001), brochura 14x22 cm, 398 págs. ISBN: 84-204-4289-5

quinta-feira, 3 de março de 2011

para ser escritor

Como já disse o James Joyce (aqui transcrito pelo inigualável Haroldo de Campos) "Eu poderia assentar-me assalvo neste balado da barcarrola até o grasn´ido de Sant´Agarças à horipêndula das poupas, atéolo infim do infhélio no horuscante, jùbilojazendo à carneirosa relampinave, e prestar um semiouvido oniraberto ao tamburlido narcejo dos embuscados tiradores...". Digo isto pois eu poderia assentar-me assalvo deste "Para ser escritor" do Charles Kiefer e apenas dizer que nunca o li ou não o conheço. Mas prefiro registrar aqui que este livro é muito ruim. A edição é até bonita, mas transformou em 160 laudas algo que não deve chegar nem a metade disto. É também um livro requentado, composto por umas quarenta e tantas postagens retiradas de um blog mantido pelo autor e publicadas em 2009 e 2010. A maioria delas são platitudes enfadonhas, de uma banalidade sem fim. Há afirmações que ofendem a inteligência de qualquer sujeito, que podem causar alguma agitação em uma sala de alunos semiletrados, mas que não se sustentam. Dizer que "Escritores não leem outros escritores" foi a que mais me incomodou. O sujeito parece não conhecer Pound, Henry James, J.M. Coetzee, Philip Roth, para citar só quatro bons leitores que também são bons escritores, inclusive de ensaios sobre os outros escritores que leram. Bobagem como dizer que foi Ezra Pound quem leu os originais de Proust e os jogou no lixo, que Shakespeare era um plagiador que seria provavelmente processado se publicasse suas peças hoje em dia ou que após três meses de aulas seus alunos são capazes de apresentar suas produções, aparentam revelar que os textos foram mesmo escritos descompromissadamente para um blog e não sofreram nenhuma revisão crítica posteriormente. Outras bobagens, como chamar de "plasma de elétrons" o suporte físico dos livros eletrônicos só devem mesmo incomodar quem sabe o que é plasma. Paciência. Este é mesmo o tipo de livro que a Dorothy Parker dizia devermos jogar pela janela, com força. [início 20/02/2011 - fim 21/02/2011]
"Para ser escritor", Charles Kiefer, São Paulo: editora Leya, 1a. edição (2010), brochura 14x21 cm, 159 págs. ISBN: 978-85-8044-024-9

quarta-feira, 2 de março de 2011

em busca do tempo perdido

Não há muito que acrescentar ao que escrevi tempos atrás da primeira parte da adaptação em quadrinhos de "Um amor de Swann" feita por Stéphane Heuet. Nada substitui a leitura do original [meus comentários sobre os volumes originais estão em "No caminho de Swann", "À sombra das raparigas em flor", "O caminho de Guermantes"]. Mas ao menos um sujeito desavisado pode entrar no clima dos livros, experimentar uma ou outra alegria com as belas soluções gráficas que Heuet encontra ao ilustrar o sofrimento de Charles Swann e a displicente crueldade de Odette de Crécy. Heuet é um publicitário e artista plástico belga de cinquenta e poucos anos que decidiu adaptar para os quadrinhos alguns dos romances que formam o ciclo de sete volumes do "Em busca do tempo perdido". Mesmo no original francês ele só alcançou preparar uma fração bastante pequena do projeto (dois terços do primeiro volume e metade do segundo). Neste ritmo ele precisará de toda uma outra vida para terminar de adaptar o ciclo. Mas inegavelmente ele consegue dar alguma vida aos personagens, relevo à ambientação e mostra tino ao escolher certas passagens produzidas por Proust. É um outro tipo de experiência. Quem optar por ficar apenas com esta adaptação não poderá dizer que conhece o texto de Proust, mas cada um sabe o que faz ou não com seu tempo. Para os verdadeiros prazeres da inteligência proporcionados por Proust há que se ler o texto original e pronto. A edição continua bem cuidada, traz um mapa da Paris retratada no livro, bem como uma espécie de glossário, onde os personagens são apresentados, incluíndo informações complementares, dirigidas àqueles pouco familiarizados com a obra de Proust e que possibilitam uma apreciação mais prazeirosa do livro. [início 18/02/2011 - fim 19/02/2011]
"Em busca do tempo perdido - Um amor de Swann (parte2)", Marcel Proust, adaptado e desenhado por Stéphane Heuet, tradução de André Telles, editora Zahar, 1a. edição (2011), capa dura 21x28 cm, 52 págs. ISBN: 978-85-378-0488-9 [edição original: À la recherche du temps perdu (Un amour de Swann - volume II) Guy Delcourt productions, Paris 2008]

terça-feira, 1 de março de 2011

la paciencia de la araña

Encontrei três livros do Camilleri em uma das caixas verdes que mandei da España no ano passado. Ulalá, cousa boa. Os romances policiais de Andrea Camilleri são sempre bem escritos (o sujeito tem oitenta e cinco anos e já escreveu um tanto sobre tudo afinal de contas). A historia de "La paciencia de la araña" segue os sucessos de "Guinada na vida". Salvo Montalbano convalece lentamente de seus ferimentos (mais psicológicos que físicos) e parece não ter mais a disposição e o tino de continuar sua rotina de investigador. A justiça italiana é falha, os criminosos que prende também vítimas de um sistema corrompido, os anos e a solidão imposta por seu estilo de vida o deprimem. Livia tira férias para ficar a seu lado e ele se afasta formalmente de seus deveres como comissário. Um sequestro inusitado, de uma jovem filha de pais falidos, mobiliza toda a polícia de sua região. Seus comandados (Fazio, Augello, Catarella) parecem confiar mais em Montalbano que em seu substituto. O instinto de investigador fala mais alto que o desconforto físico. Ainda que informalmente Montalbano participa como coadjuvante na investigação e é ele quem alcança solucionar o intrincado sequestro. Como todo bom personagem Montalbano evolui com o tempo, ganha matizes insuspeitos em sua personalidade. Bom livro. [início 10/02/2011 - fim 12/02/2011]
"La paciencia de la araña", Andrea Camilleri, tradução de María Antonia Menini Pagès, Barcelona: ediciones Salamandra, 4a. edição (2008), brochura 13,5x22 cm, 253 págs. ISBN: 978-84-9838-001-9 [edição original: La pazienza del ragno (Sellerio editore) Palermo 2004]