segunda-feira, 26 de maio de 2014

niña

"Niña", de Enrique Vila-Matas, faz parte de uma coleção de textos da editora Alfaguara dedicada ao público infantil. Nela só encontramos o ouro fino da literatura em español: Mario Vargas Llosa, Eduardo Mendoza, Almudema Grandes, Arturo Pérer-Reverte (que é o coordenador editorial da coleção) e Javier Marías - cuja contribuição, "ven a buscarme", já resenhei aqui. "Niña" conta a história de uma menina de cinco anos que começa a se alfabetizar, que inicia sua jornada no mundo mágico das letras, das palavras e dos livros. A menina se assusta com as primeiras dificuldades de aprender a ler e se surpreende quando descobre que apenas vinte e sete letras podem ser combinadas para produzir quaisquer palavras e idéias. As ilustrações são realmente muito boas, assinadas por Anuska Allepuz, uma jovem artista plástica madrileña atualmente radicada em Londres. Procurarei os outros livros desta coleção, seguro que sim.
[ínicio - fim: 23/05/2014] 
"Niña: Mi primer Enrique Vila-Matas", Enrique Vila-Matas, ilustrações de Anuska Allepuz, Madrid: Alfaguara Infantil (Santillana Ediciones Generales / Grupo Prisa), 1a. edição (2013), capa-dura 25x23 cm., 33 págs., ISBN: 978-84-204-1400-3

domingo, 25 de maio de 2014

em linha reta

Acredito que se pedirem para o Tailor Diniz escrever uma história sobre o mais inusitado dos temas (Incas venusianos, escravas brancas na Malásia, senhores de engenho no Recife colonial, pistoleiros de Laredo em crise existencial ou monges tibetanos em férias no Caribe) ele vai se sair bem. O cara sabe contar uma história. Claro, as que ele realmente escreveu são bem menos amalucadas das que sugeri acima. No caso desse "Em linha reta", último livro dele publicado, somos apresentados a algo que mescla o clima das histórias de mistério, de detetives, com o fantástico, numa espécie de flerte com o realismo mágico. Na verdade esse formato aparente do livro mascara um tanto o que eu acredito ser a verdadeira preocupação dele: explorar a hipocrisia de nossos tempos ou, ao menos, aquele comportamento muito em moda atualmente em que todos nós brasileiros parecem cobrar algum respeito as regras e ao poder estabelecido enquanto simultaneamente nos imaginamos cada um o primeiro a merecer alguma espécie de exceção ou isenção às mesmas regras (o Brasil nunca foi para amadores, mas ultimamente a coisa parece ter se complicado mais). Porque digo isso? Primeiro porque o título do livro lembra um poema de Fernando Pessoa em que ele abusa da ironia ao fazer crítica social e explicitar os problemas de seu tempo (Pessoa pergunta: "Então sou só eu que é vil e errôneo nesta terra?"). Em segundo lugar por conta de em seu romance anterior, "A superfície da sombra", Tailor já ter trabalhado com o tema das fronteiras. Naquele caso havia uma fronteira geográfica, entre o Rio Grande do Sul e o Uruguay, mas também sinais de uma fronteira entre sonho e delírio (lembro-me de ter associado seu livro a Traumnovelle, de Arthur Schnitzler), agora é essa fronteira menos objetiva que domina completamente o livro. Em terceiro e último lugar porque a narrativa de Tailor acaba provocando o leitor a entender se aquilo que se acaba de ler é na verdade uma alegoria, um sonho, o produto da mente de alguém que passou por uma violência indizível, absurda, e que plasma seu sofrimento com elementos menos agressivos de sua memória afetiva: a música, a tecnologia, o churrasco, os cavalos, a literatura, ou se trata da realidade objetiva - porém kafkiana, como sempre acontece - experimentada por alguém. Li em algum lugar que Tailor imaginou estes dois últimos romances como partes de um tríptico. Assim sendo: ojo!,  haverá um terceiro livro onde estas questões deverão ser retomadas. É só termos paciência e esperar don Tailor nos presentear com mais um de seus bons livros. Nota bene: Perdi o lançamento em Porto Alegre no final de maio mas não perderei a próxima chance de conseguir uns minutos de prosa com ele sobre esse seu livro. Principalmente porque penso agora que a acepção correta seja pensar em "fronteira" como a margem do mundo habitável e não o limite  de um mundo em relação ao outro (que merecem leis e tratamentos diferentes), mas essa é outra história e eu sou o menor dos anões desta paróquia) . Vamos a ver.
[início: 12/05/2014 - fim: 13/05/2014]
"Em linha reta", Tailor Diniz, São Paulo: Editora Grua, 1a. edição (2014), brochura 14x21 cm., 127 págs., ISBN: 978-85-61578-32-9

sábado, 24 de maio de 2014

4-3-3 e o porteiro do estádio

São doze histórias que gravitam o mundo do futebol. O título do livro, 4-3-3, faz menção a um esquema tático típico do final dos anos 1960 e início dos anos 1970 (hoje em dia o mais popular é o 4-5-1). Onze textos são escritos por autores que emulam cada uma das posições dos jogadores dentro de campo (goleiro, lateral-direito, zaqueiro-central, quarto-zagueiro, lateral-esquerdo, centromédio, meia-direita, meia-esquerda, ponta-direita, centroavante e ponta-esquerda) e um outro utiliza-se da figura de um porteiro de estádio na narrativa. Algumas histórias são organizadas em torno da posição dos jogadores de forma mais fidedigna, ou seja, o que é narrado associa-se mais diretamente com a função daquele jogador dentro de campo, noutras esta ligação é mais frouxa ou inexistente. Isso não é exatamente um problema, mas como o projeto está organizado nesta representação, talvez fosse o caso de explorar melhor o posicionamento tático (no futebol) com a técnica e/ou proposta de cada um dos contos. A última das histórias acaba se destacando por ser a última (claro), por ser desenvolvida através de cartas e por dar conta, ao menos lateralmente, da gênese do futebol no Rio Grande do Sul (afinal é um time gaúcho, o Sport Club Rio Grande, o mais antigo clube de futebol do Brasil em atividade). Quem gosta de futebol se identificará com as histórias compiladas nesse livro, afinal o futebol, território ao qual se debruçam curiosos de todas as classes sociais, presta-se a qualquer experimento cultural, antropológico, sociológico, histórico e, porque não, literário. Além disso, compilações desse tipo sempre são interessantes para todo aquele curioso sobre a produção literária contemporânea (no caso, desta pequena cidade do interior do Rio Grande do Sul, nossa Santa Maria da Boca do Monte). E vamos em frente (sem esquecer que a copa do mundo de futebol está logo ali, nos esperando, sabe-se lá com que terríveis conseqüências).
[início: 27/04/2014 - fim: 05/05/2014]
"4-3-3 e o porteiro do estádio", Athos Ronaldo Miralha da Cunha (organizador), Antônio Cândido de Azambuja Ribeiro, Francisco Ritter, Iuri Müller, José Luiz dos Santos, Maria da Graça Rodrigues, Odemir Tex Junior, Orlando Fonseca, Pedro Brum Santos, Raul Giovani Cezar Maxwell, Tânia Lopes, Vitor Biasoli, Porto Alegre: editora Movimento (coleção Rio Grande, volume 156) / Santa Maria - RS: editora Athena Livros e Revistas, 1a. edição (2014), brochura 14x21 cm., 80 págs., ISBN: 978-85-7195-225-6

sexta-feira, 23 de maio de 2014

barba azul

Em vinte anos de carreira literária Amélie Nothomb já publicou vinte e um romances (além de um bocado de contos e adaptações cinematográficas). Claro, são livros curtos (nada dela em geral tem mais que cem, cento e cinqüenta páginas) mas também nada dela é irrelevante ou banal, nada deixa o leitor indiferente ou entediado. "Barba azul" é de 2012 e dialoga com seu livro de estréia, "Higiene do assassino", de 1992. Nesse, um irascível escritor, ganhador de prêmio Nobel de literatura, escolhe um conjunto de jornalistas para dar uma entrevista (onde humilha sistematicamente cada um) e é desnudado pela última deles, uma jovem e bela repórter, que ao final da entrevista, numa hábil inversão, o domina mentalmente. Em "Barba azul" Amélie Nothomb toma de empréstimo o conhecido conto infantil de Charles Perrault para confrontar, na mundana e sofisticada Paris contemporânea, uma jovem e imatura professora belga com um velho e maniático aristocrata espanhol. Os diálogos são diabólicos e divertidos. Assim como no conto infantil a jovem Saturnine Puissant sabe que compartilhar a mansão de Elemirio Nibal y Mílcar envolve um risco, já que as oito inquilinas que foram suas predecessoras desapareceram misteriosamente. A única advertência de seu anfitrião quando recebeu a nova locatária é a interdição de um quarto escuro. Sua curiosidade e autoconfiança fazem com que ela se decida pela experiência (além do mais ali ela vive num conforto extraordinário, incompatível com a renda que possui). Durante o dia ela continua a sair para suas aulas no Louvre e ele continua isolado do mundo (vulgar e aborrecido, em suas palavras) lendo clássicos místicos de Ramom Llull ou atas da inquisição espanhola. Nas noites invariavelmente ela é convidada para jantar com Elemiro, que é um habilidoso e criativo cozinheiro. Nessas breves noites ela entende melhor o caráter de seu anfitrião (algo mais que um louco ou provocador) e num jogo de sedução que é mais intelectual que sexual (e a exemplo da donzela na história original de Perrault) ela progressivamente o domina. Eles compartilham o jantar e taças de "champagne", mas também suas idéias sobre a beleza, a perfeição, o amor e a arte (o sujeito se imagina um fotógrafo). Há muito de esquemático no livro (afinal ela readapta à contemporaneidade uma história infantil que tem mais de trezentos anos) mas ela sustenta habilmente a tensão até os parágrafos finais. Pouco importa o destino dos dois protagonistas. O que está em foco no livro são as relações entre homens e mulheres, as fronteiras entre o desejo e a consumação, entre individualidade e vida em sociedade. Fazia tempo que não lia nada dela (e só li 8 de seus 21 romances). Talvez seja a hora de voltar a esse bom hábito. Félicitations Amélie.
[início: 19/05/2014 - fim: 20/05/2014]
"Barba azul", Amélie Nothomb, tradução de Sergi Pàmies, Barcelona: Editorial Anagrama, 1a. edição (2014), brochura 14x22 cm., 138 págs., ISBN: 978-84-339-7884-4 [edição original: Barbe bleue (Paris: Éditions Albin Michel) 2012]

quinta-feira, 22 de maio de 2014

sobre la escritura: james joyce

Parte de uma coleção de textos de referência dedicados àqueles que têm ambição literária (e que portanto devem aprender a ler bem antes de aprender a escrever bem), nesse pequeno livro estão compilados textos curtos retirados de livros de James Joyce. A idéia é oferecer uma imersão no estilo joyceano e nos temas que são recorrentes em sua obra. O editor é Federico Sabatini, um professor universitário italiano. Sabatini assina um prólogo curto, onde apresenta seu projeto e as diretrizes que justificam a escolha das passagens originais de Joyce. O livro inclui uma pequena bibliografia (cabe dizer que livros de referência sobre Joyce contam-se em centenas, senão milhares de títulos). Trata-se então de algo um tanto vampiresco, mas a potência daquilo que tem vocação aforística em Joyce sustenta o livro. O leitor encontra dois conjuntos de textos. No primeiro estão aqueles onde Joyce fala o ofício artístico, da arte. Essa parte está dividida naquilo que pode ser entendido como suas definições a priori sobre literatura (no sentido em que ele já defendia quase todas estas idéias muito antes de ter editado seu primeiro livro): sua natureza; o efeito das epifanias; o processo da escritura; os estilos literários; a importância da imaginação; a necessidade de conhecer outras línguas; as relações com editores e críticos. No segundo estão textos específicos sobre a vocação literária, sobre as qualidades que um artista, escritor, crítico ou editor deve ter. Quem está familiarizado com a obra de Joyce sabe o quão diabolicamente cruel o sujeito sabia ser quando avaliava o trabalho dos outros. Portanto, nesse conjunto estão os textos mais ácidos e divertidos (nem sempre incontestáveis, claro). Federico Sabatini utiliza-se de um conceito de Vico para defender o procedimento que ele considera adequado ao nos aproximarmos de um autor tão seminal quanto Joyce: devemos lê-lo correndo riscos (perigosamente). Se é que eu entendi bem a idéia é não se dar por satisfeito com a primeira leitura (nem com as seguintes), tentando sempre fazer novas associações, procurar novas referências, novas abordagens, que impliquem num conhecimento maior sobre aquilo sobre o qual nos debruçamos. O Bloomsday está chegando. Talvez seja através de livros descompromissados assim que um leitor curioso das cousas joyceanas deveria se aproximar dele. 
[início: 04/05/2014 - fim: 07/05/2014]
"Sobre la escritura: James Joyce", James Joyce, Federico Sabatini (editor), tradução de Pablo Sauras, Barcelona: Alba Editorial (coleccíon Guías del escritor / Textos de referencia), 1a. edição (2013), brochura 14x21 cm., 116 págs., ISBN: 978-84-8428-861-9 [edição original: James Joyce. Scrivere pericolosamente. Riflessioni su vita, arte, scritura (Roma: Mininum Fax) 2011]

quarta-feira, 21 de maio de 2014

dicionário amoroso de curitiba

Como nos ensina o corretíssimo Ricardo Freire devemos sempre "viajar nas viagens". Pois semanas atrás estava eu em Curitiba numa missão acadêmica e eis que encontrei num jornal, durante o café da manhã, informações sobre o lançamento de "Dicionário amoroso de Curitiba" (as coincidências nunca são irrelevantes e Hegel estava certo quando disse que os jornais são a oração matinal do homem civilizado). Como os queridos don Caetano e doña Sandra andavam ariscos, envolvidos num compromisso sério, rumei sozinho para o local do lançamento do livro (a boa Livrarias Curitiba). A sessão de autógrafos propriamente dita aconteceu após um bate-papo entre autor, ilustrador e editor (respectivamente Marcio Renato dos Santos, Osvalter Urbinati e Rosel Soares). Marcio apresenta ao leitor 42 verbetes onde fala de cousas que ele acredita identificarem especialmente sua Curitiba. São antes reflexões descompromissadas que crônicas, antes invenções de um biógrafo generoso que história ou jornalismo, antes um registro contemporâneo dos dias da cidade que um flerte com sua mitologia. Marcio fala de pessoas (uma miríade delas, que esse leitor neófito pouco conhece: Guido Viaro, Karol Conká, Roberto Gomes e Jamil Snege, por exemplo) e de lugares (Passeio Público, Santa Felicidade, Torto Bar, Museu Oscar Niemeyer, Feira do Largo da Ordem), mas a maioria dos verbetes falam daquilo que é sempre imaterial porém define as cidades (os hábitos - fiéis camareiros; as experiências com o clima; o censo das tribos urbanas; os segredos quase inconfessáveis; a memória afetiva daquilo que jamais é factual). Osvalter Urbinati assina 11 boas ilustrações. Senti falta de um verbete com "X", mas isso é coisa de quem gosta de ordenar o mundo. Livro divertido, que se não é confessadamente um guia, serve para para que um curioso sobre as coisas de Curitiba possa imergir um tanto nela. Vale.
[início: 06/05/2014 - fim: 08/05/2014]
"Dicionário amoroso de Curitiba", Marcio Renato dos Santos, Anajé/Bahia: Editora Casarão do Verbo, 1a. edição (2014), brochura 15x23 cm., 165 págs., ISBN: 978-85-61878-36-8

terça-feira, 20 de maio de 2014

schmidt recua

De Louis Begley já li vários livros, inclusive os dois anteriores onde o protagonista é o mesmo Albert Schmidt deste recém publicado "Schmidt recua" (falo dos bons Sobre Schmidt e Schmidt libertado que li antes deste blog começar a ser abastecido com minhas resenhas, paciência). Todavia há algo neste novo Schmidt que me pareceu artificial demais, demasiado inverossímil. Talvez seja o papel que o sexo tem na narrativa, talvez o fato dos personagens serem idealizados demais, mas como não senti esse desconforto na leitura dos livros anteriores preciso pensar um tanto mais nisso. De qualquer forma lê-se "Schmidt recua" com prazer, Begley sabe contar sua história. Encontramos Schmidt com setenta e oito anos, nas festas de final de ano (de 2008 para 2009) durante a transição do governo George W. Bush para o de Barack Obama. Begley narra o reencontro de Schmidt com um amor tardio, o amor por Alice (que tem 63 anos e é viúva de um antigo "protégé" seu, um advogado chamado Tim Verplanck). Entretanto a história que o leitor irá acompanhar não será a dos desdobramentos deste reencontro, mas sim aquela de treze anos antes, quando Schmidt e Alice se apaixonam pela primeira vez. Begley utiliza esse artifício, esse deslocamento no tempo, para revisar detalhes da trama dos dois livros anteriores, contando algo mais sobre a doença e a morte de sua esposa Mary; o casamento, a família, o colapso nervoso, a recuperação e a morte de sua filha Charlotte; os dias de gravidez de uma antiga amante, Carrie; as aventuras românticas de seu empregador, Mike Mansour, de um de seus grandes amigos, o cineasta Gil Blackman e de Joe Canning, um escritor casado com uma amiga de infância. Há temas recorrentes em seu texto: o antissemitismo; a mundanidade; a política internacional; o uso prático da psicanálise; a história americana contemporânea; as tensões do sexo entre pessoas de gerações muito diferentes; as questões de herança, partilha e posse de grandes bens materiais. Em algum momento do livro ecos de Lawrence Durrell e Marcel Proust me arrebataram. Comecei a ver em Popov (um namorado de Alice) Bloch, em Schmidt e Mansour uma mescla dos humores de Balthazar, Mountolive e Nessin, em Alice algo de Justine e Oriane. Talvez seja por conta destas evocações que eu tenha seguido com o livro até o final (apesar de suas imperfeições, que aborrecem um tanto).
[início: 08/05/2014 - fim: 12/05/2014]
"Schmidt recua", Louis Begley, tradução de Rubens Figueiredo, São Paulo: editora Companhia das Letras, 1a. edição (2014), brochura 14x21 cm., 400 págs., ISBN: 978-85-359-2380-3 [edição original: Schmidt Steps Back (New York: Alfred A. Knopf Doubleday Publishing Group / Random House / Bertelsmann) 2012]

domingo, 11 de maio de 2014

sofia e mônica

A história é sobre duas garotas adolescentes, gente jovem que experimenta as alegrias e os aborrecimentos da amizade. O formato deve algo ao teatro ou cinema, pois um roteiro parece querer brotar do livro, com cenas bem demarcadas e vívidos diálogos curtos. O texto se divide em três vozes distintas: as das duas garotas, que produzem uma espécie de diário e a de um narrador que descreve o destino delas. Na primeira temporada de férias escolares (em que as duas ficam sozinhas num apartamento, longe dos pais) elas fazem um pacto. Mas pactos existem para serem rompidos, o mundo real sempre se encarrega de nos lembrar disto. Leonardo Brasiliense alcança manter o texto interessante e verossímil, sem ser piegas nem abusando de truques dramáticos. O livro inclui um conjunto de fotografias cuja narrativa complementa sutilmente o texto. Ao descobrirmos os destinos de Sofia e Mônica encontramos vestígios de nossas escolhas, nossos pactos, nossos amigos. Viver é sempre para amadores.
[início: 28/04/2014 - fim: 29/04/2014]
"Sofia e Mônica", Leonardo Brasiliense, Porto Alegre: Edelbra editora, 1a. edição (2014), brochura 14x21 cm., 92 págs., ISBN: 978-85-66470-42-0

domingo, 4 de maio de 2014

café com lucian freud

Em agosto passado vi a exposição de Lucian Freud organizada pelo MASP. Eram sobretudo gravuras e lembro-me de ter ficado aborrecido por não rever a potência de seus óleos (ok, haviam alguns, mas nada que impactasse como aqueles que vi no Thyssen-Bornemisza e no Reina Sofia tempos atrás). Fiz aqui um registro do belo catálogo que acompanhava a exposição paulista. Foi doña Marilu Kahl, grande amiga, quem me avisou naquela mesma época sobre a existência dessa deliciosa biografia: "Café com Lucian Freud". Publicado originalmente em 2013, dois anos após a morte do artista, é resultado de reiterada convivência entre biógrafo e biografado. Geordie Greig é um jornalista inglês que teve a sorte de ser incluído/aceito no restrito círculo de amizades de Freud e conseguiu, ao longo dos últimos dez anos da vida de seu biografado, uma série de entrevistas (ou antes, conversas informais, descontraídas) que se transformaram num livro. A edição é muito boa, incluí 46 reproduções fotográficas coloridas que por si formam uma bela narrativa do biografado; um índice e a árvore genealógica de Lucian (que o liga ao avó Sigmund Freud e aos 14 filhos reconhecidos como seus). Encontramos nele muita informação factual e história, além de fofocas divertidas e a descrição de alguns dos muitos causos mirabolantes vividos por Freud). Greig registra simultaneamente a genialidade do artista e a intratabilidade do sujeito. Charmoso e carismático, irascível e disciplinado, desde jovem Freud relacionou-se indistintamente com a alta sociedade inglesa e com gangsters, agiotas e outros sujeitos durões da Londres suburbana de seu tempo. Frequentemente Freud pagava suas dívidas de jogo com quadros (que hoje valem milhões) e utilizava os serviços dos mesmos gangsters para os quais devia dinheiro quando queria ameaçar alguém ou recuperar um quadro que não gostaria que fosse vendido para terceiros ou leiloado. A vida sexual de Freud percorre todo o livro, afinal ele teve 14 filhos reconhecidos como seus (muito embora exista quem defenda que ele pode ter tido até uma dezena mais, eventualmente assumidos por outros pais). A narrativa de Greig leva o leitor por seus relacionamentos, às mulheres que ele amou e odiou, ao distanciamento com que se ele relacionava com as pessoas que amava - a sua maneira, a forma como administrava as amizades: frequentemente provocando intrigas sob o pretexto de manter todos afastados de sua vida privada. Devia ser uma experiência incrível privar da companhia de Freud, participar de seus longos cafés da manhã ou sessões de pintura, ser convidado para ser um de seus modelos (praticamente a única forma de relacionamento que ele realmente praticava), mas devia ser igualmente arriscado contrariá-lo ou se indispor com ele. Pelo que se depreende do livro nenhuma emoção mundana ou convenção social afetava ou restringia seu comportamento, nenhuma barreira ética ou moral o impedia de manter seus hábitos, por mais condenáveis que fossem. Lucian Freud era o exemplo acabado de alguém desprovido de culpa, era o sujeito mais livre que se pode alcançar ser (ao menos ele o foi no século XX, em seus 88 anos). Como não gostar desse velho e intratável senhor.
[início: 26/04/2014 - fim: 29/04/2014]
"Café com Lucian Freud: Um retrato do artista", Geordie Greig, tradução de Waldéa Barcellos, Rio de Janeiro: editora Record, 1a. edição (2013), brochura 15,5x23 cm., 307 págs., ISBN: 978-85-01-40414-5 [edição original: Breakfast with Lucian (London: Jonatahn Cape / The Random House Group) 2013]

sábado, 3 de maio de 2014

o caminhante solitário

Em "O caminhante solitário" W.G. Sebald conta seis histórias, seis biografias. Como usualmente em seus livros suas deambulações dão-se sobretudo pelo espaço ou geografia, fisicamente, já que ele percorre os caminhos já experimentados pelos autores sobre os quais fala. Mas no caso desse livro em particular são antes as viagens por sua memória afetiva (através da lembrança daqueles que o influenciaram desde a juventude, que o acompanharam desde o início de suas jornadas de estudos e prazeres) que o leitor irá acompanhar. As digressões de Sebald são ricas em associações  e informações. Seus biografados são cinco escritores e um pintor: Johann Peter Hebel, um cronista alemão da revolução francesa e ascensão alemã do início do século XIX (um conservador progressista, algo místico, que editava almanaques); Jean-Jacques Rousseau, o grande filósofo iluminista (que na época descrita por Sebald se encontrava ferozmente perseguido por governos e igreja, exilado em uma ilha no lago de Biel/Bienne); Edward Mörike, um poeta romântico alemão que foi muito popular em sua época (os primeiros três quartos do século XIX); Gottfried Keller, um poeta e escritor suiço (de língua alemã) que foi muito influenciado pela doutrina de Rousseau por um retorno do homem a natureza e cujas obras são politicamente engajadas; Robert Walser, um outro escritor suiço cujas obras influenciaram a geração imediatamente posterior a sua (aquela de Stefan Zweig, Franz Kafka, Walter Bejamin, Hermann Heese e Robert Musil); Jan Peter Tripp, um artista plástico alemão, amigo de infância de Sebald e ainda ativo profissionalmente. Como nos demais livros de Sebald que já li há várias reproduções de fotografias e obras de arte distribuídas pelo texto. Sebald ressalta nesses curtos ensaios a introspecção, solidão, isolamento e/ou exílio que seus biografados experimentaram, como se tentasse entender através deles algo sobre a loucura ou a depressão que se abate nos homens. O nome do livro é inspirado em um de seus personagens, Jean-Jacques Rosseau, que publicou seu "Les Rêveries du promeneur solitaire" em 1778. Os devaneios solitários de Sebald propiciam um contraste entre eventos revolucionários do início do século XIX e do mundo contemporâneo em experimentamos desde a queda do muro de Berlin. Não se trata de reflexões típicas de sociólogos ou economistas, claro, mas sim de um escritor que consegue localizar em textos de ficção já antigos aquilo que se parece com respostas a nossas dúvidas e reclamações contemporâneas. Assim como para os escritores do século XIX as ilusões do contrato social iluminista já eram óbvias, basta consultar os jornais diários para reconhecermos que o progresso e o liberalismo não estão em nossa ordem do dia. Também hoje o impulso democrático parece ser incapaz de nos poupar de gente saudosa do fascismo e outras doutrinas totalitárias (principalmente nesse país podre e doente que é o Brasil). 
[início: 25/04/2014 - 29/04/2014]
"O caminhante solitário: Sobre Gottfried Keller, Johann Peter Keller, Robert Walser e outros", W.G. Sebald, tradução de Telma Costa, Lisboa: Editorial Teorema, 1a. edição (2009), brochura 15,5x23,5 cm., 163 págs., ISBN: 978-972-695-886-4 [edição original: Logis in einem Landhaus: Autorenporträts über Gottfried Keller, Johann Peter Hebel, Robert Walser und andere (Munich: Carl Hanser Verlag GmbH) 1998]

sexta-feira, 2 de maio de 2014

mis documentos

De Alejandro Zambra já li seus três outros romances ("Bonsai", "La vida privada de los árboles" e "Formas de volver a casa") e seu livro de ensaios ("No leer"). "Mis documentos", lançado no início desse ano, é um híbrido, algo entre contos e relatos autobiográficos ("mesmo a realidade precisa ser inventada", já nos ensinaram Isak Dinesen e Javier Marías). São onze narrativas, que por vezes parecem memórias de um sujeito/narrador que viveu a vida do autor Alejandro Zambra e noutras parecem invenções de alguém que assina Alejandro Zambra. Dos onze textos sete são dedicados a alguém, o que para mim infere algum tipo de cumplicidade entre o que é narrado e as experiências vividas entre o autor e aquele para quem é dedicada a história (como se ele tomasse de empréstimos as memórias destas pessoas). Há temas que se repetem: os gatos; os casais separados; o ofício de escritor ou professor; o futebol; as experiências do exílio e da solidão; o sexo como mecânica, não como emoção ou prazer. A história e a política recente do Chile (pelo menos desde os anos 1980 para cá) transbordam das narrativas, mas não são demasiado cansativas. O texto sempre é fluido. Lemos com prazer quase tudo (só achei tolo e artificial, cheio de frases feitas e "boutades" ligeiras o conto que descreve as tentativas de um sujeito em livrar-se do tabaco). De qualquer forma Alejandro Zambra é tipo do sujeito que não esgota nossa curiosidade sobre ele, o tipo de escritor que parece nos prometer sempre algo novo e seminal. Não é pouco.
[início: 26/03/2014 - 27/04/2014]
"Mis documentos", Alejandro Zambra, Barcelona: editorial Anagrama (narrativas hispánicas), 1a. edição (2014), 14x22 cm., 207 págs., ISBN: 978-84-339- 9771-5

quinta-feira, 1 de maio de 2014

viagem numa peneira

Em "Viagem numa peneira" encontramos uma seleção de 45 "limericks" e outros poemas curtos de Edward Lear. "Limericks" é uma forma poética bem humorada, musical, onde se abusa dos jogos de palavras e do absurdo das proposições. Edward Lear não foi o inventor dessa forma, mas ajudou muito em popularizá-la e difundi-la. A organização e tradução desta edição brasileira é assinada por Dirce Waltrick do Amarante (de quem já resenhei aqui outras traduções, sobretudo de coisas de James Joyce: Cartas a Nora, Os gatos de Copenhage, O gato e o diabo). Sua seleção inclui "Limericks" ilustrados propriamente ditos (publicados originalmente em "A book of Nonsense", de 1846); adaptações ilustradas do Abecedário, da botânica nonsense e das árvores nonsense de Lear além de quatro poemas mais longos e canções (A Coruja e a Gatinha; Os Jamblins; O galanteio do Iongui-Bongui-Bô; Sr. Lear, conhecê-lo é um prazer!). Dirce W. do Amarante assina também uma longa apresentação e detalhadas notas de tradução, que contextualizam a produção poética de Edward Lear. A edição original em inglês completa pode ser acessada na remissão: http://issuu.com/edercardoso/docs/viagem_completa_ingles_site/4?e=0. O esforço da tradutora é louvável mas não consegui encontrar graça nas construções de Lear. São rimas muito simples, que parecem apropriadas apenas para crianças que começam a se alfabetizar, a experimentar a magia dos sons e das palavras. Talvez coisas assim possam ter função pedagógica (ou terapêutica), mas elas não conseguiram arrancar alegria deste velho e cansado senhor. Paciência (e vamos em frente). 
[início: 14/10/2013 - fim: 14/01/2014]
"Viagem numa peneira", Edward Lear, tradução de Dirce Waltrick do Amarante, São Paulo: editora Iluminuras (coleção Livros da tribo), 1a. edição (2011), brochura 15,5x23 cm., 160 págs., ISBN: 978-84-7321-364-5 [edições originais: A Book of Nonsense (primeira edição, London: Thomas McLean) 1846; (terceira edição, London: Routledge, Warne e Routledge) 1861; More Nonsense Pictures, Rhymes, Botany, etc. (London: Robert Bush) 1872]