sábado, 30 de março de 2013

serena

Publicado em meados de 2012, "Serena" é o romance mais recente de Ian McEwan. Já li um bocado de coisas dele (os registros podem ser encontrados aqui). Confesso que gosto particularmente dos romances e contos mais antigos, principalmente "O jardim de cimento" e "Primeiro amor, últimos ritos (textos que lhe valeram imediato reconhecimento e a alcunha de Ian "macabro", por serem sombrios, violentos, agressivos). "Serena" não tem nada de sombrio, trata-se antes de uma história de amor, ainda que algo disfarçada (uma versão feminina de "O inocente", um outro dos livros antigos dele, outra imersão no universo das histórias de espionagem dos tempos de guerra fria). Ainda há uma outra diferença fundamental entre eles: "Serena" é produto de um escritor que domina muito melhor seus recursos, que faz melhor uso de procedimentos metaliterários, que sabe controlar aquilo que oferece ao leitor (e com isso torna o livro um tanto mais interessante que a banalidade do tema pode de fato, e intrinsicamente, oferecer). A protagonista da história é Serena Frome, que conta acontecimentos de sua vida quarenta anos atrás, quando era uma típica garota inglesa do início da década de 1970, época de crises financeiras e políticas, dos conflitos mais sangrentos entre católicos e protestantes na Irlanda do Norte (e também os anos que antecedem a guerra do Yon Kipur e a primeira grande crise de abastecimento de petróleo). Após formar-se sem muitos méritos na universidade ela se envolve com um sujeito mais velho (que ficaremos sabendo depois tratar-se de alguém que vazava segredos aos russos) e é recrutada pelo Serviço Secreto Britânico. Esse, com poucos recursos, desaparelhado, uma sombra de seu congênere norte-americano, envolve a garota em um projeto obviamente condenado ao fracasso: seduzir um promissor jovem escritor para que ele - sem o saber - seja subsidiado pelo governo, escreva livros "anti-comunistas", favoráveis às políticas britãnicas daquela época e, com isso, influencie a opinião pública. Serena não é exatamente talhada para o ofício e acaba se apaixonando (antes pelos contos e logo pelo autor dos contos, o tal jovem escritor, Tom Healy). O fracasso do projeto é fácil de explicar. Qualquer sujeito que tenha lido um tanto de marxismo sabe como o aburguesamento de parte das classes proletárias é algo intrínsico na lógica do capitalismo, já que o arrivismo sempre faz com que o sujeito renegue - ou reinvente - seus projetos e sonhos de juventude. E é isso que acontece com Tom e Serena, que passam a viver uma vida de prazeres, hedonista, às custas do erário público. McEwan inclui longas descrições dos contos de Healy (talvez 10% de todo o livro) que são terrivelmente tediosas (mesmo me parecendo remeter exatamente aos primeiros contos do próprio McEwan). Em "Serena" McEwan fala de mundos literários possíveis, de carreiras literárias possíveis, como aquela de um escritor mediano que desloca suas histórias para temas que justificam e explicam as escolhas morais que faz após alcançar o sucesso inicial, ou a de um escritor forte que entende a armadilha em que se meteu e a inverte, transformando-a em uma ficção poderosa, ou talvez, numa terceira de muitas possibilidades, talvez a dele próprio, que afinal de contas nunca deve ter encontrado uma espiã/musa inspiradora como Serena em sua vida, mas que construiu uma carreira de sucessos. Sem seus registros pós-modernos o livro é de uma chatice dos diabos. Na história que se conta, após muito sexo e mais que melosas cenas de amor, chegamos a um desfecho e descobrimos o truque que acaba por explicar a existência do livro que acabamos de ler (que obviamente não posso detalhar ainda mais aqui, por mais canalha que acabem sendo estes meus registros). Bobagem. "Serena" é apenas um livro apenas mediano. Paciência.
[início: 17/03/2013 - fim: 28/03/2013]
"Serena", Ian McEwan, tradução de Caetano W. Galindo, São Paulo: editora Companhia das Letras, 1a. edição (2012), brochura 14x21 cm., 382 págs., ISBN: 978-85-359-2121-2 [edição original: Sweet Tooth (London: Jonathan Cape) 2012]

quarta-feira, 27 de março de 2013

calendário

Encontramos neste belo livro editado pela Oficina Raquel não uma, mas onze séries de poemas. André Dick mostra muita versatilidade, nos temas, no tamanho e no ritmo dos poemas. A linguagem, refinada, oferece ao leitor algumas surpresas. É um livro difícil (ao menos para mim, o menor dos anões desta paróquia), mas que recompensa o leitor com construções, metáforas, imagens e narrativas muito especiais. Estou seguro que nem a erudição dos poemas, nem as citações de vários poetas fortes não são artifícios bestas, mas o resultado de muito trabalho. A geografia dos temas também surpreende: somos transportados sobretudo a um mundo eslavo, do leste europeu, mas também viajamos ao sopé dos Alpes, nas escarpas francesas de Grenoble, aos gramados do Central Park, em Nova Iorque, ou ainda aos campos do interior do Rio Grande do Sul. "Calendário" ganhou o Prêmio Açorianos de Literatura em 2011, mas isso é um detalhe, o livro saberá defender-se sozinho.
[início: meados de 2012 - fim: 23/03/2013]
"Calendário", André Dick, Rio de Janeiro: editora Oficina Raquel, 1a. edição (2012), capa-dura 13x18,5 cm., 132 págs., ISBN: 978-85-61129-20-0

segunda-feira, 25 de março de 2013

mrs. dalloway

Lembro-me de ter lido "Mrs. Dalloway" pela primeira vez ainda nos tempos em que vivia na São Paulo dos Campos de Piratininga, "drowning in honey, stingless",  (mas, ai de mim, só soube quão doces eram aquelas delícias muito tempo depois). Ao saber que Denise Bottmann havia sido contratada para produzir uma nova versão para o português acompanhei seu projeto de tradução através do altamente recomendável blog traduzindo mrs. dalloway. Recentemente o livro foi publicado. E que dias bons experimentei relendo-o! Justo os dias derradeiros deste glorioso verão. Virgínia Woolf conta sua história utilizando-se de fluxos de consciência emaranhados. A história e os pensamentos da protagonista, Clarissa Dalloway, na Londres dos anos pós-primeira grande guerra, tangencia uma miríade de outras. Clarissa, uma mulher nos seus cinquenta anos, confortável em sua vida anódina, organiza uma recepção (ela é conhecida por preparar festas como esta regularmente). Ela passa o dia relembrando fragmentos de sua infância; de suas escolhas afetivas; de seus relacionamentos, com o marido (Richard), a filha (Elizabeth) e sobretudo três amigos: Peter Walsh (um antigo pretendente), Hugh Whitbread (um sujeito irritante) e Sally Seton (a amiga que um dia foi mais íntima). Como contraponto às futilidades do mundo aristocratico de Clarissa, Virgínia Woolf descreve os sofrimentos de um veterano de guerra, Septimus Smith, que está prestes a sucumbir a um colapso nervoso, apesar dos esforços empreendidos por sua mulher (Lucrezia) e dois médicos (Bradshaw e Holmes) para mitigar seus tormentos. Não consigo imaginar (e de resto não é nem um pouco necessário) um resumo de livros como "Mrs. Dalloway". O papel e a força de cada personagem no livro não pode ser subestimado (por menor que sejam as passagens e associações dedicadas a cada um). A narrativa passa por uma legião deles, que têm sua cota de tempo e espaço. O que apreciamos no livro está nos detalhes, nas frases soltas, nas conexões que a autora - e sobretudo cada leitor, a cada leitura, alcança fazer. Os temas desenvolvidos por Virgínia Woolf também são instigantes: o mundo colonial, a divisão de classes inglesa, as agruras da guerra, a homossexualidade, o feminismo, a complexidade das doenças mentais. Virgínia Woolf não é nem um pouco condescendente com sua protagonista ("Ela provinha da mais indigna das classes - a dos ricos com um leve verniz de cultura"). Mas um leitor não precisa gostar do caráter ou do comportamento dos personagens de qualquer ficção, mas sim dos efeitos que os livros provocam. E esse deslumbramento Virgínia Woolf alcança produzir. De qualquer forma não consigo imaginar-me gostando de uma senhora Dalloway como gosto de um senhor Bloom. E talvez seja por isso que sempre imagino que o dia estival que entorpece cada um dos personagens, fazendo deles brotar a história (que é a história de um eterno presente congelado, como numa fotografia), poderia ser o mesmo 16 de junho de Leopold Bloom, o mesmo Bloomsday, o mesmo dia em que James Joyce escolheu para ambientar seu Ulysses. Bom divertimento.
[início: 17/03/2013 - fim: 20/03/2013]
"Mrs. Dalloway", Virginia Woolf, tradução de Denise Bottmann, Porto Alegre: LPM editora (coleção LPM pocket, vol. 1033), 1a. edição (2012), brochura 105x18 cm., 224 págs., ISBN: 978-85-254-2622-2 [edição original: Mrs. Dalloway (London: Hogarth Press) 1925]

sexta-feira, 22 de março de 2013

o uniforme

Em seu blog Cláudio B. Carlos informa irônico que é um "poeta da nulidade", um "filósofo do nada", mas ele sabe preencher essa nulidade ou nada com livros, muitos livros. Apesar de jovem sua produção, na forma de livros de poesias e de narrativas curtas, já reúne 35 volumes, a maioria individuais, apesar dele participar de algumas coletâneas e antologias. Descobri "O uniforme" por acaso. Talvez eu devesse classificar as narrativas como contos curtíssimos (ou mini-contos). São 28 textos registros curtos, produzidos entre 2002 e 2005, quando Cláudio ainda morava no Rio Grande do Sul (hoje ele é um mineiro da gema - se é que não me engano). Seus registros são muito pessoais, que alcançam um bom tom. Quero dizer com isso que não me parecem piegas, longe disto. Antes são corajosos exercícios de estilo, onde estão recolhidas memórias e experiências. Seriam invenções? Claro, mesmo  memórias podem ser inventadas, mas algo de verdade sempre deve transparecer em narrativas deste tipo. Vou procurar outras cousas deste industrioso sujeito.
[início - fim: 19/03/2013]
"O uniforme", Cláudio B. Carlos, Caxias do Sul: editora Maneco, 1a. edição (2007), brochura 12x18cm., 48 págs.,  ISBN: 978-85-7705-050-5

quinta-feira, 21 de março de 2013

a máquina de madeira

Em "A máquina de madeira" Miguel Sanches Neto ficcionaliza a história do padre Francisco João de Azevedo, um sujeito nascido na Paraíba, no início do século XIX, que teria inventado um protótipo do que viriam a ser as primeiras máquinas de escrever. Ele chegou a apresentar sua invenção em uma exposição de produtos nacionais que contou com a presença do Imperador dom Pedro II, em 1861, onde chegou a ganhar uma premiação importante, mas seus esforços por produzir sua máquina em escala industrial nunca alcançaram éxito. Amparado pela mulher, alguns amigos e a certeza de ter dado o melhor de si Azevedo acaba morrendo esquecido, miseravelmente triste e derrotado. O romance é bem escrito, não é linear, faz uso de várias vozes e diferentes procedimentos narrativos, prendendo a atenção do leitor. Enfim, é um romance honesto e interessante, mas a bem da verdade não empolga, pois o fato do leitor saber que toda aquela melancolia que encontra no livro é uma coisa muito própria do Brasil, que no final as verdadeiras máquinas de escrever foram fabricadas nos Estados Unidos, que o caso do padre Azevedo é apenas mais um dos fracassos brasileiros aborrece em demasia (ao menos aborrece um casmurro como eu). Para uma pessoa que tenha nascido no início do século XXI máquinas de escrever serão objetos tão anacrônicos quanto caldeiras a vapor ou fitas K7. O resultado seria parecido caso Sanches Neto escrevesse um romance futurista no qual um jovem pesquisador brasileiro (pago com dinheiro de programas duvidosos como o recente "Ciência sem fronteiras") descubra uma aplicação fantástica relacionada a nanotecnologia, computação quântica, neurobiologia ou robótica, tente convencer o governo brasileiro da viabilidade econômica de suas idéias e as veja serem implementadas mais rapidamente por laboratórios americanos ou europeus. Como disse noutro dia um amigo, o James, definitivamente a administração pública no Brasil não funciona (Miguel Sanches Neto nos ensina que nunca funcionou), dinheiro demais é jogado no lixo, compra-se coisas que serão simplesmente inúteis, faz-se adaptações por tomar decisões erradas, se gasta mais dinheiro pelo simples fato de todos serem obrigados a evitar burocracia e os burocratas. Quase tudo isso que escrevi acima é uma bobagem afinal de contas, não tem nada a ver com a proposta do livro, que se defende bem sozinho. Talvez a função dos livros seja mesmo provocar reflexões deste tipo nos leitores e este mérito Miguel Sanches Neto tem. Vamos em frente.
[início: 28/02/2013 - fim: 17/03/2013]
"A máquina de madeira", Miguel Sanches Neto, São Paulo: editora Companhia das Letras, 1a. edição (2012), brochura 14x21 cm., 245 págs., ISBN: 978-85-359-2192-2

quarta-feira, 20 de março de 2013

o homem é um grande faisão no mundo

Ainda em 2010 li "O homem é um grande faisão no mundo", de Herta Müller, em sua tradução espanhola, mas ao tomar contato dias atrás com o interessante "Sempre a mesma neve e sempre o mesmo tio" resolvi voltar aos textos de ficção dela. A história é terrível, mas lemos o livro com prazer. Agora que sei alguma coisa de factual sobre a vida de Herta Müller (principalmente o processo kafkiano que passou para conseguir emigrar da Romênia para a Alemanha, no final dos anos 1980) a história ganha algo mais, como se a realidade do que foi vivido por ela ressoasse de outra forma naquilo que é inventado (Javier Marías - citando Isak Dinesen - já nos ensinou: Também a realidade tem de ser inventada). Não tenho muito que acrescentar ao que já escrevi antes. "É um livro interessante, que se lê quase de um folego só. Apesar de curto, é realmente bem escrito, está repleto de imagens lindíssimas e descrições muito poderosas. Nunca havia lido nada sobre a Romênia, apesar de conhecer um tanto sua terrível história recente. Um país que experimenta uma ditadura brutal como a Romênia só se redime mesmo por acaso. Herta Müller conta uma história envolvendo a minoria alemã de uma região da atual Romênia (ela conta a vida oprimida neste país, uma verdadeira ratoeira). Com o final da segunda guerra mundial esta minoria passa a ser hostilizada e prejudicada economicamente. O sonho de todos eles é conseguir um passaporte que viabilize a emigração para a rica Alemanha, que emergiu pujante poucos anos após a guerra, enquanto a Romênia se afundou na pobreza intrínsica do modelo socialista. Um operador do moinho de uma pequena cidade desta região de minoria alemã vive com sua mulher e filha. A primeira viveu na Rússia comunista as agruras do pós-guerra. A garota tem planos de emigrar e formar uma família (e é ela quem vai conseguir - a alto custo - os passaportes para a família). Há vários personagens interessantes: um prefeito corrupto, um padre venal, um carpinteiro misógino, um peleteiro cruel, um guarda-noturno cansado. Há muitas cenas fortes no livro: uma masturbação, um velório sobre a chuva, a escolha de um presente para a filha, uma caminhada pelas montanhas, a descrição dos hábitos das corujas, a nostalgia da cidade. Apesar do tema ser forte o livro é muito delicado. Se é que ainda existe um tolo neste mundo que ainda se ilude com as experiências cruéis do comunismo, deveria ler este livro antes de voltar a emitir algum juízo besta. Bueno. Gostei muito de ler. Aprendi um tanto". É isso. Recomendo Herta Müller uma vez mais. E vamos em frente.
[início - fim: 15/03/2013]
"O homem é um grande faisão no mundo: Um conto", Herta Müller, tradução de Tercio Redondo, São Paulo: editora Companhia das Letras, 1a. edição (2013), 14x21 cm., 133 págs., ISBN: 978-85-359-2216-5 [edição original: Der Mensch ist ein großer Fasan auf der Welt: Eine Erzählung (Berlin: Rothbuch Verlag) 1986]

terça-feira, 19 de março de 2013

sempre a mesma neve e sempre o mesmo tio

Em "Sempre a mesma neve e sempre o mesmo tio" encontramos 18 discursos e palestras de Herta Müller, escritora romena radicada na Alemanha que recebeu o Nobel de literatura em 2009. Dois dos discursos são exatamente aqueles proferidos em distintas cerimômias de entrega do Nobel. Metade dos demais correspondem a agradecimentos pela outorga de vários prêmios literários (a maioria alemães), a outra metade a palestras feitas em congressos e eventos. Treze textos são recentes, da segunda metade dos anos 2000, cinco ainda dos anos 1990, mas nada muito remoto (o texto mais antigo tem menos de 18 anos). De qualquer forma há alguma repetição de argumentos e histórias, de metáforas e figuras de linguagem, reiterações nas suas lembranças e em suas terríveis denúncias. Herta Müller nasceu no Banato, uma região do oeste romeno (e do sul da Hungria e leste da Sérvia) bem definida geograficamente desde os tempos dos romanos e que ficou longos anos sob controle do Império Otomano, e posteriormente dos Habsburgos, do século XV ao XIX. A partir do final da primeira grande guerra esta região tornou-se majoritariamente um enclave de língua e cultura alemã entre povos eslavos. Após a segunda grande guerra a Romênia ficou sob a zona de influência da União Soviética e viveu sob uma tosca ditadura durante quase cinquenta anos. Os cidadãos do Banato de origem alemã foram particularmente perseguidos nos anos de ditadura comunista que lá se instalou. Herta Müller nasceu em 1953 e conseguiu emigrar para a Alemanha apenas em 1987. Dizer que ela emigrou é um eufemismo, pois os descendentes de alemães eram basicamente vendidos pelo governo romeno aos alemães (doze mil marcos por pessoa, preço da tabela comunista dos anos 1980). Em seus discursos acompanhamos a análise de questões linguísticas do romeno e do alemão; trechos quase líricos onde ela fala da neve, dos campos, dos pássaros e dos lobos; relatos sobre a vida e a obra de autores como Jürgen Fuchs, Oskar Pastior, Elias Canetti, Theodor Kramer, Emil Cioran e Max Blecher; lembranças do pai (que foi oficial da SS), da mãe (que passou cinco anos escravizada pelos russos) e dos avós; mas sobretudo suas reflexões sobre o impacto do controle comunista sobre os indivíduos. Neles Herta Müller fala da loucura que foram os anos da ditadura comunista romena; do enorme esforço do aparelho do estado para controlar as coisas mais simples da vida dos cidadãos; do preço incalculável em vidas e recursos financeiros desperdiçados naqueles dias; do grotesco que eram os argumentos dos senhores do poder; da lógica perversa dos tiranos; das legiões de ignorantes subservientes, que são o esteio de todas as ditaduras; das técnicas de tortura e encarceramento; dos sofrimentos que sua mãe e tantos outros daquela geração experimentaram em campos de trabalhos forçados na URSS. Nos textos que correspondem aos anos posteriores à queda do Muro de Berlin Herta Müller denuncia a continuidade dos serviços de espionagem e tortura estatal romena, inclusive utilizando-se de remanescentes do comunismo.As imagens que ela invoca são sempre poderosas (o livro chega a ser tóxico, pela surpreendente, quase cruel, dissecação do comportamento humano). Para ela a Romênia é mesmo o país do fracasso universal. Nota Bene: Tenho lá minhas dúvidas, há legiões de entusiastas do stalinismo aqui no Brasil, prontos para prender, torturar e matar qualquer indivíduo que não se submeta a seu dirigismo, suas mentiras, suas loucuras. O Brasil tem uma relação com a estupidez e o atraso, uma vocação para a escravidão mental, que poderiam vir a surpreendê-la, mas é melhor deixá-la em paz com seus fantasmas pessoais.
[início: 08/03/2013 - fim: 15/03/2013]
"Sempre a mesma neve e sempre o mesmo tio", Herta Müller, tradução de Claudia Abeling, São Paulo: editora Globo (coleção Biblioteca Azul), 1a. edição (2012), 14x21 cm., 244 págs., ISBN: 978-85-250-5160-8 [edição original: Immer Derselbe Schnee und Immer Derselbe Onkel (Munich: Carl Hanser Verlag) 2011]

sábado, 16 de março de 2013

ulysses

Ler a transcriação de um portento como o "Ulysses" de James Joyce no formato de histórias em quadrinhos não é exatamente uma epifania, algo que se deva levar exatamente à sério, mas como sou um joycemaníaco completo não me furtei de experimentar a idéia assim que soube dela. Trata-se de uma colaboração criativa, de um grupo que se especializou na arte da transformação de clássicos da literatura ao formato mangá (a editora One Peace Books começou em 2006 como divulgadora de literatura japonesa em inglês, mas tem oferecido textos ocidentais também). O trabalho de produção do texto e as imagens não são assinados. Um coletivo (Variety Art Works) parece ser o responsável pela condensação. O designer da capa e a pessoa responsável pela tradução do original japonês são identicados, mas não se sabe quando a versão foi publicada pela primeira vez no Japão. Paciência. O resultado não é ruim, mas obviamente condensado demais para que um sujeito possa dizer que conhece o Ulysses original de Joyce. Apenas algumas passagens emblemáticas de cada um dos 18 capítulos do livro são apresentadas. Algumas soluções são realmente interessantes, outras algo equivocadas, literais ou frouxas demais, sem nada das sutilezas de Joyce. Falta também algo do humor de Joyce no livro (claro, o mangá oferece alguma graça, mas nada que se compare ao que Joyce faz). De qualquer forma é divertido ver Bloom, Molly, Stephen e tantos outros personagens com aqueles olhos enormes característicos dos mangás. Após esta familiarização talvez um jovem leitor se anime e algum dia enfrente o original (ou uma das dezenas de traduções disponíveis: a quinta delas em português está sendo prometida pela portuguesa Relógio d'água ainda para esse ano). Os prazeres que o Ulysses oferece nunca se esgotam, já se sabe. E vamos em frente.
[início - fim: 16/03/2013]
Ulysses: Manga Classics Readers, James Joyce, transcriação (texto e imagens de Variety Art Works), edição de Marie Lida, tradução de Glenn Anderson, New York: One Peace Books, 1a. edição (2012), 12,5x18 cm, 384 págs., ISBN: 978-1-93548-19-5

quarta-feira, 13 de março de 2013

dias de faulkner

Com este pequeno livro Antônio Dutra aproxima o leitor de William Faulkner, mas trata-se de uma aproximação descompromissada, mais divertida e brincalhona que didática ou professoral. "Dias de Faulkner" ganhou o Prêmio MEET Jovem Literatura Latino-Americana de 2008. Dutra faz uso de uma viagem que Faulkner fez ao Brasil em 1954 para participar de um congresso de escritores (parte não explícita do esforço do governo americano em divulgar sua política de boa vizinhança com a América Latina durante a guerra fria). A viagem durou menos de uma semana, de 08 a 14 de agosto, e coincide com boa parte dos dias turbulentos do final do segundo governo de Getúlio Vargas (o atentado contra Carlos Lacerda na Rua Tonelero - do Rio de Janeiro - que agudiza a crise, aconteceu no dia 05 de agosto e Getúlio suicida-se pouco depois, no dia 24 de agosto). Mas Faulkner pouco se intera  por esses sucessos (afinal de contas o congresso é em São Paulo e ele nem percebe que seu avião passa pelo Rio de Janeiro na viagem de volta), nem tampouco participa ativamente do congresso de escritores, limitando-se a comparecer a algumas recepções, jantares e entrevistas, não contribuindo para os debates literários ou conversas com outros escritores. Dutra cria passagens interessantes, faz com que seu Faulkner ficcional digresse sobre seus dias em Paris (esperando tornar real um encontro com James Joyce); fale sobre suas influências literárias (confessadas e inconfessadas); escancare seu desconforto com a viagem, principalmente com os objetivos estratégicos que o governo americano espera alcançar com ela; lembre de sua fazenda no Mississippi; flerte com uma mulher com ambições literárias; se aproxime sem rancor apenas de jornalistas e jovens estudantes; beba um bocado (Dutra não consegue fugir do lugar comum ao registrar o alcoolismo de Faulkner); e esqueça no hotel todos os livros que ganhou durante a estadia. Razoável. Há engenho e invenção no livro, que se equilibra entre a boa pesquisa factual dos dias de Faulkner no Brasil e tudo aquilo que pode ter sido inventado por Dutra, mas é algo demasiadamente pequeno e fugaz para entusiasmar o leitor. Quando começamos a nos interessar pelo assunto Faulkner já embarca de volta aos Estados Unidos e abandona o Brasil de vez (não exatamente entusiasmado com o que viu, já se sabe). Paciência.
[início: 20/02/2013 - fim: 21/02/2013]
"Dias de Faulkner", Antônio Dutra, São Paulo: Imprensa Oficial do Estado de São Paulo (Consulado Geral da França em São Paulo, MEET- Maison des Écrivains Étrangers et des Traducteus de Saint-Nazaire), 1a. edição (2008), brochura 12,5x19cm, 132 págs., ISBN: 978-85-7060-611-2

segunda-feira, 4 de março de 2013

danúbio

Tempos atrás don Robson Reis mostrou-me um filme onde o espectador é convidado a navegar pelo Danúbio e refletir sobre os gregos e os alemães, sobre poesia e tecnologia, guerra e mitologia, numa potente aula sobre a historia recente da Europa, a multicultural e complexa Europa (o filme é The Ister, de 2004, dirigido por David Barison e Daniel Ross, baseado em um curso do filósofo alemão Martin Heidegger). Lembro-me de associar o filme imediatamente com Danúbio, de Claudio Magris, mas não consegui me organizar à época para começar sua leitura. Já no final de 2011 Charlles Campos, leitor dos bons, entusiasta e persuasivo como poucos, começou a incentivar-me a enfrentar as maravilhas de Magris. Mas como os livros teimam sempre em entregar-se apenas se o comprometimento adequado lhes é oferecido, comecei e abandonei a leitura várias vezes, claro. Recentemente, no dia dos 88 anos de meu pai, encontrei o ritmo e a disposição certa para minha viagem pelo Danúbio. E escrevo hoje, dia de meus 52 anos, também eu seguindo um curso mas forçando atalhos, também eu acumulando escolhos, me alimentando de afluentes, procurando e fertilizando meu delta, talvez já próximo demais do grande mar da decrepitude. Proust, em seu "Os prazeres e os dias", já nos ensinou que O mar há de consolar todo aquele que já passou pelos primeiros aborrecimentos. É por isso que penso que talvez as águas de um grande rio também tenham algo deste grande poder, de nos consolar e nos fazer entender melhor. E é talvez por isso que fiquei tão renovado ao terminar de ler esse livro. Mas chega de tergiversar. Danúbio foi publicado originalmente em 1986, portanto antes da queda do muro de Berlim, do fim da União Soviética, da separação de Tchecos e Eslovacos, dos conflitos étnicos nos Balcãs, da consolidação do projeto de unificação da Europa e de tantas cousas que aconteceram naquela região, mas o Danúbio de Magris não é exatamente um ensaio ou algo que deva ser lido com fins puramente didáticos, não é um livro onde "está faltando algo da história". Enfim, se é que o leitor procura uma classificação objetiva do que se trata nesse livro, prefiro confundí-lo ainda mais e usar a definição do próprio Magris, que diz seu livro ser um "romance afogado". Magris percorre muito mais que os quase 3000 mil quilômetros do Danúbio. Das nascentes ao delta não há apenas o curso do rio, as fronteiras que demarca, as grandes cidades que se enfeixam nele, as pequenas cidades (que mesmo distantes) são influenciadas por ele, as sucessivas camadas de histórias, o infindável acumulo de vidas, de batalhas, de registros das experiências humanas. Magris digressa, argumenta, explica, por vezes detalha, noutras apenas cita algo seminal. Lembra um tanto o ritmo dos livros de Sebald (mas as digressões de Sebald são mais sintéticas, mais distantes, menos pessoais). Há um conceito/termo no livro que é fundamental. Magris usa Mitteleuropa (que o tradutor para o português preferiu não traduzir do alemão) para definir não apenas a região central da Europa, mas aquele todo (histórico, político, geográfico, cultural, mitológico) que é basicamente percorrido e definido pelo Danúbio. O livro é dividido em nove capítulos que por sua vez se desdobram em muitos outros, quase textos independentes, onde Magris oferece ao leitor proposições quase sempre ricas e interessantes. Aprendemos algo sobre a arquitetura, a topografia e a náutica; sobre a história dos Habsburgos; sobre a literatura de Franz Kafka, Elias Canetti, Robert Walser e tantos outros; a filosofia de Wittegenstein, Lukács; a música de Wagner, Strauss e Haydn; e muitos causos: sobre Ovídio, Freud, Kraus, Marco Aurélio, Sissi, Hitler, Goethe; Hölderin e muitos outros personagens; e as caudalosas histórias de romanos, gregos, eslavos e turcos. As passagens mais divertidas são aquelas onde o narrador de Magris é acompanhado por Anka, uma sedutora e curiosa avó, que fala das coisas que sabe sobre a região (principalmente no trecho dos Balcãs). O texto de Magris é tão potente, sua erudição tão encantadora e cativante, as informações que oferece tão bem conectadas num mosaico, chave de leitura para tantos temas áridos, que há vezes que o leitor pode até ficar tentado a acreditar que tudo o que aconteceu na Europa após a queda do muro de Berlin está de alguma forma suspeitado no livro, mas ele é apenas um texto, um romance, algo que oferece reflexões. Enfim (e para evitar mais confusões neste texto já confuso), Danúbio não é um exercício de futurologia, que alguém açodado poderia tentar usar para pinçar do livro passagens onde fatos histórico do futuro - do escritor de 1986 - são antecipados ou insunuados por ele. Magris simplesmente constata que há padrões no comportamento humano, que mesmo décadas e séculos são períodos curtos de tempo afinal de contas, que nada que é humano pode ser congelado, fixado para sempre. Enfim, aquele rio por onde os argonautas fugiram do povo da Cólquida (com o precioso Velocino de Ouro, ajudados por Medéia que foram) mil anos antes do início de nossa Era Comum é o mesmo rio dividido e disputado por alemães e austríacos, eslovacos e húngaros, sérvios e croatas, romenos e búlgaros. Uma providência que mostrou-se realmente útil foi a de imprimir um mapa com percurso do rio. Anotei um bocado desta vez, tanto no livro quanto sobre o mapa, pontuando as observações de Magris com meu entendimento do relevo, das fronteiras, dos acidentes de percurso, das histórias de todos os povos que o Danúbio já viu passar. Grande livro.
[início: 22/02/2013 - fim: 04/03/2013]
"Danúbio", Claudio Magris, tradução de Elena Grechi e Jussara de Fátima Mainardes Ribeiro, São Paulo: editora Companhia das Letras (Companhia de Bolso), 1a. edição (2008), brochura 12,5x18 cm., 443 págs., ISBN: 978-85-359-1337-8 [edição original: Danubio (Milano: Garzanti Libri) 1986]