segunda-feira, 28 de fevereiro de 2011

o amigo de infância de maigret

Quando você quer se distrair mesmo de algum problema do dia a dia nada como este tipo de romance policial. Os livros de Simenon são esquemáticos e previsíveis, o senso moral sempre aponta para a mesma direção, o leitor sempre encontra um terreno seguro à suas expectativas. Claro, um sujeito acaba se aborrecendo com estas leituras. Há romances policiais mais elaborados e desafiadores; há romances - mesmo convencionais - que pedem algo mais do leitor; há miríades de clássicos que devemos nos esforçar por ler. Mas há os dias de vagabundagem e os dias de se ler Simenon. Na trama deste livro Maigret recebe em seu escritório na polícia judiciária um colega de seus tempos de escola, exatamente o "bobo" da turma, o sujeito que vivia de pequenos expedientes divertidos para alcançar ajuda nas tarefas e escapar da punição de suas faltas. Este sujeito presencia o assassinato da mulher com quem vivia e envolve Maigret na investigação propositalmente. Esta mulher tinha vários amantes fixos (o amigo de Maigret é apenas o mais constante). Maigret toma o depoimento dos amantes (cada um a sua vez surpreso por saber das infidelidades da amante, os caminhos da paixão são mesmo sinuosos). Rapidamente Maigret consegue elucidar a trama e descobrir a motivação do crime. Nada espetacular, mas vale as horas de leitura. [início - fim 06/02/2011]
"O amigo de infância de Maigret", Georges Simenon, tradução de Rejane Janowitzer, editora L&PM Pocket (v. 793), 1a. edição (2010), brochura 11x18 cm, 173 págs. ISBN: 978-85-254-1907-1 [edição original: L'ami d'enfance de Maigret, Presses de la Cité (França), 1968]

sábado, 26 de fevereiro de 2011

um doce aroma de morte

Noutro dia minha amiga Regina falou com entusiasmo do livro que tinha acabado de ler: "O búfalo da noite", de Guilhermo Arriaga. Anotei o nome do autor (lembrei depois que o conhecia por conta de seus roteiros e filmes) e acabei encontrando, dias depois, este "Um doce aroma de morte". É um livro muito bom. O enredo prende o leitor do começo ao fim. Pouco nos importamos com o desfecho, como se aqueles personagens amalucados (mais certo seria dizer desgraçados, viventes de um México assustador, primitivo) continuassem a nos seguir após terminarmos o livro. Em um povoado mexicano pequeno e distante de tudo um rapaz encontra, alertado por uns garotos, uma moça nua e morta. Por conta de sua reação inicial em cobrir por pudor o corpo da morta ele é imediatamente identificado como seu namorado e escalado para vingá-la. Um equívoco quase simétrico escala um caixeiro viajante como o suspeito oficial da morte da moça. Os bizarros personagens inventados por Arriaga que povoam o livro alimentam, cada um a seu modo, por estupidez atávica ou sabedoria prática, todas as confusões e boatos cruzados, tornando o ritual de vingança uma obrigação moral do rapaz. Seria apenas um livro divertido se não soubessemos que o mundo real - de qualquer lugar, miserável ou não - é mesmo assim, tem esta natureza torta. Arriaga sabe mesmo contar uma história. Preciso encontrar outros livros deste sujeito. [início 04/02/2011 - fim 05/02/2011]
"Um doce aroma de morte", Guilhermo Arriaga, tradução de Joana Angélica d´Avila Melo, Rio de Janeiro: editora Gryphus, 1a. edição (2007), brochura 14x18 cm, 172 págs. ISBN: 978-85-60610-01-3 [edição original: Un dulce olor a muerte, La otra orilla (editorial Belacqva) Colombia 1994]

terça-feira, 22 de fevereiro de 2011

estação das chuvas

Podemos nos divertir, educar ou nos assombrar com as invenções dos bons escritores (os maus escritores também tem lá sua função, mas esta é outra história). Eventualmente há livros que têm o poder acessório de nos fazer digerir a realidade sem concessões baratas. É este o caso de "Estação das chuvas", de José Eduardo Agualusa. Ele conta alegoricamente uma história de Angola, basicamente a funesta história de sua guerra de independência e das recorrentes guerras civis que seguiram-se a ela. Não importa o que há de ficção e o que há de factual no livro pois o efeito predominante é de nos proporcionar um aprendizado. O que eventualmente iremos depreender da Angola real é nosso problema, não do autor. O narrador de Agualusa é um jornalista. Ele participa destas guerras e conhece - primeiro como lenda e depois em uma prisão - uma historiadora e poetisa influente no movimento revolucionário angolano. A história que se conta, a história de Angola, se confunde com a história desta personagem, Lídia Ferreira. Ela funciona como uma força vital angolana, plena e seminal no momento da independência em 1975, mas que é sistematicamente desvitalizada, como seu país, desaparecendo em 1992. O narrador descreve o que sabe e desvenda da vida desta personagem, bem como da vida de seus amigos de infância e colegas da universidade, que alcançam maior ou menor projeção nos governos e comitês revolucionários, tanto no exílio quanto nas frentes de batalha. O narrador também se relaciona com uma galeria de curiosos personagens ativos na guerra civil. Terríveis e desgraçadas histórias Agualusa nos conta. Não há crime que fanáticos nacionalistas ou bestas coloniais (de todos os credos ou facções) não sejam capazes de cometer. Lembrei-me do Manoel, irmão da Neusa, que viveu em Angola e em Moçambique no final dos anos 1970. Lembrei-me de meu pai, que hoje completa 86 anos, e que sempre me falou das histórias africanas que lia nos jornais. O que pensarão eles da Angola de hoje, ainda assombrada por suas venturas. Há mesmo países cujo ordálio de desgraças teima em nos surpreender. Bom livro afinal de contas. [início 01/02/2011 - fim 03/02/2011]
"Estação das chuvas", José Eduardo Agualusa, Rio de Janeiro: editora Língua Geral (coleção Ponta de lança), 2a. edição, revista (2010), brochura 13x18 cm, 344 págs. ISBN: 978-85-60160-68-6 [edição original: edições Dom Quixote (Portugal) 1996]

domingo, 20 de fevereiro de 2011

terceira sede

"Terceira sede" reune dez elegias de Fabrício Carpinejar. Elegia é uma forma poética que se presta a vários efeitos. Usualmente enfeixam poemas melancólicos e reflexivos, que pensam de alguma forma a morte. Carpinejar as publicou há dez anos, quando ainda era um poeta formalmente jovem, de menos de trinta anos. Ele emula um sujeito, uma encarnação sua, já aos 72 anos, em 2045, que discute sua condição e sua história, que analisa seu entorno e seu coração. O efeito é muito bom. Aprendemos rapidamente a olhar com os olhos de seu vetusto personagem. Li com a calma que os dias vagabundos de verão permitem. Acredito que hoje Carpinejar se permitiria um tom mais jocoso, algo como Bob Fosse fez, fazendo um personagem seu perguntar-se se a morte era ou não boa de cama. Isto talvez tornasse seu personagem um senhor menos solene e moral. Mas como ele fala com uma moral em construção, uma moral que compartilha com o leitor, não nos aborrecemos nada com isto (e de resto o livro foi publicado em 2001 e agora deve sempre se defender sozinho, pois pouco sabe da encarnação atual de seu autor). Enfim, terceira sede é um livro muito bom. Além de um bom prefácio de Luís Augusto Fischer o livro inclui nas orelhas uma apresentação de Carlos Heitor Cony. O único reparo que faço a esta reedição da Bertrand Brasil são as 16 laudas de elogios e homenagens às elegias, publicados todos eles na época do lançamento. Nem o livro, nem o autor, certamente hoje ainda mais seguro de si que há dez anos, não precisam deste cabotinismo tolo. Paciência. [início 19/01/2011 - fim 01/02/2011]
"Terceira sede: Elegias", Fabrício Carpinejar, Rio de Janeiro: editora Bertrand Brasil, 1a. edição (2009), brochura 13,5x21 cm, 96 págs. ISBN: 978-85-286-1384-1 [edição original: editora Escrituras (São Paulo) 2001]

quarta-feira, 16 de fevereiro de 2011

una casa para siempre

Encontramos neste "Una casa para siempre", como sempre nos livros de Enrique Vila-Matas, um território de invenções e meias verdades. Claro, podemos seguir o narrador e confiar em suas descrições, nos diálogos que ele grafa, mas logo começamos a nos perguntar se tudo não é falso, se não nos foi dada alguma chave errada para interpretar o enredo, a história. Há poucas doses de intertextualidade neste pequeno livro, publicado originalmente em 1988. Quer dizer, pouco comparado com o usual em Vila-Matas. É importante registrar isto pois nos outros livros dele que já li o que não falta são citações, paródias, pastiches e outras invenções, para não dizer mentiras pura e simplesmente, que ele inclui sem pudor. Tudo isso enriquece seus livros e cobra do leitor uma agilidade dos diabos. Aqui a busca por uma voz narrativa coerente se dá na própria história e não através de seus truques literários típicos. "Una casa para siempre" é um romance curto feito de fragmentos de uma história de vida, um romance feito com memórias fragmentárias e contraditórias de um sujeito. São doze os fragmentos. Uns curtos, breves, feitos apenas de causos que parecem não se conectar com a história principal. Outros são mais longos e se referem as tais memórias do sujeito, um ventríloquo (uma boa metáfora para aqueles que se dedicam ao ofício de escrever) que primeiro tem dificuldade de multiplicar suas vozes (o ideal seria ter vozes distintas para cada personagem que emula); depois alcança fama e fortuna no domínio de sua arte; até por fim encontrar uma única voz, a sua própria, em um país exótico, onde se torna uma espécie de contador de histórias, um aedo, um bardo. Uma das pistas falsas de Vila-Matas é nos entreter, como em um romance policial, com a possibilidade do ventríloco ter morto ou não o amante de sua mulher. Os conflitos típicos das jornadas de iniciação, das jornadas dos heróis, embora embaralhados como em um puzzle, estão no texto. Perturbador sim, mas essencialmente divertido afinal de contas. Haverá mais Vila-Matas por aqui. [início 15/01/2011 - fim 30/01/2011]
"Una casa para siempre", Enrique Vila-Matas, Barcelona: editorial Anagrama (colección compactos), 2a. edição (2008), brochura 13,5x20,5 cm, 141 págs. ISBN: 978-84-339-6712-1 [edição original: Anagrama (narrativas hispánicas), 1988]

sábado, 12 de fevereiro de 2011

vinhos no mar azul

Em "Vinhos no mar azul" aprendemos logo que a melhor garrafa de vinho é a garrafa de vinho aberta. Principalmente se ela for aberta em uma reunião com amigos. Foi don Renato Cohen quem fez o mimo de me presentear com este livro. É bem verdade que estávamos na estival e incomparável São Paulo bebericando algo menos nobre ou transcendental que vinhos, mas este livro e as histórias dos vinhos pontuou nossa conversa naquele dia. José Guilherme Rodrigues Ferreira é um jornalista paulista, editor do Diário do Comércio de lá, que tem por hobby viajar e escrever sobre vinhos (além de bebê-los, claro). Em parceria com um gravador talentoso, George Rembrandt Gütlich, produziu 51 crônicas que falam de vinhos pelo mundo. O tom é sempre algo erudito, mas longe de ser pedante. Ele nos leva por vinhedos, vinícolas, adegas e parreirais, ora no velho mundo, ora nas américas ou na distante oceania, sempre argumentando através da boa literatura, das artes, da ciência, história e geografia, através de outros autores e vozes que também cantaram loas aos vinhos. Ao final de cada crônica ele inclui um punhado de boas remissões, que remetem às páginas eletrônicas que detalham as histórias que contou, à artigos especializados, às páginas das vinícolas, associações e centros culturais. Como se não bastasse ele inclui no final do livro uma generosa bibliografia de referência. Haverá ainda espaço na biblioteca para uma sessão de enologia? Um sujeito não pode reclamar de não ter um bom livro para começar a entender paixões alheias pela vinicultura. José Guilherme sabe apresentar o tema sem tropeçar nas maçantes classificações de vinhos ou enredar-se nas entendiantes listagens de safras e rótulos, temas que usualmente associamos a livros deste tipo (livros que são verdadeiros criadouros de aborrecidos enochatos, neófitos membros da legião de imbecis reinantes que contagiam nosso tempo, arre!) As gravuras de George Rembrandt Gütlich (cujo nome é quase inacreditável para um gravador) ilustram todo o livro, fazendo-o alcançar uma beleza, uma harmonia com o texto, mas que podemos apreciamos à parte. "Vinhos no mar mar azul" cumpre o que promete sua contracapa, guiando-nos a prazeres que vão mais além dos momentos felizes que desfrutamos dos vinhos. [início 13/01/2011 - fim 27/01/2011]
"Vinhos no mar azul: viagens enogastronômicas", José Guilherme R. Ferreira, São Paulo: editora Terceiro Nome, 1a. edição (2009), brochura 14,5x24 cm, 282 págs. ISBN: 978-85-7816-035-7

quarta-feira, 9 de fevereiro de 2011

as pedras de veneza

"As pedras de Veneza" é o resultado das várias viagens e do trabalho dedicado de John Ruskin, um seminal historiador e crítico de arte inglês do século XIX. Seus ensaios sobre arte e arquitetura influenciaram marcadamente o mundo da alta cultura de seu tempo. Marcel Proust dedicou-se a traduzir alguns de seus textos e incluiu em seu "Em busca do tempo perdido" um tanto da estética rauskiana. Lembro de sempre associar os dois, desde minhas primeiras leituras do ciclo proustiano. Esta tradução brasileira foi publicada em 1992 e está esgotada há anos. Nesta recente empreitada de voltar ao ciclo teimei de simultaneamente conseguir algo do Ruskin. Só consegui este exemplar graças aos esforços de Maria Helena Barata, diligente proprietária de um sebo na chuvosa Belém do Pará. O texto original de Ruskin é formado por três grandes volumes, publicados entre 1851 e 1853. O próprio Ruskin preparou uma versão abreviada do texto em 1881. A tradução brasileira é baseada na versão francesa produzida por Mathilde Crémieux em 1906, conhecida por ter feito cortes ainda mais consideráveis no texto original. Como disse um crítico especialista em Ruskin (Jean-Claude Garcias): "As pedras de Veneza" parecem sempre fadadas a uma particular seleção de páginas escolhidas, de recortes (para se usar uma expressão mais atualizada). Bueno. A versão brasileira, além dos prefácios e de uma boa introdução, contém oito capítulos e um glossário bastante completo, produzido pelo próprio Ruskin, que é usualmente incluído nas edições deste seu livro, conhecido como "Índice Veneziano". O primeiro dos oito capítulos é mesmo um assombro, pois ele fala da monumental cantaria utilizada na edificação da cidade. Os quatro seguintes tratam pela ordem da laguna (que ele chama de trono da cidade), das águas e dos canais; de Torcello (a provável cidade-mãe de Veneza); da basílica de são Marcos e do Palácio Ducal. Há um cruzamento contínuo de aspectos geográficos, históricos, arquitetônicos e estéticos nestes cinco capítulos iniciais do livro. Os elementos bizantinos, góticos e renascentistas da cidade são descritos e analisados por ele em detalhe. Os três capítulos restantes são mais técnicos que os anteriores, mais focados nas escolas arquitetônicas e engenharia da cidade. Neles ele descreve características da renascença, do que ele chama de renascença romana e da arte tumular, especialmente famosa da cidade. Mais que características ele se utiliza do que chama "elementos morais" que se uniram para formar estas arquiteturas, elementos como orgulho da ciência, orgulho de casta, orgulho do sistema e infidelidade. São digressões por vezes maçantes e densas, que confundem um leitor não especialista como eu. No índice veneziano ele passeia pelos pallazos, pelas chiesas, rios terra, fondamentas, museus, quadros, esculturas e as miríades de elementos arquitetônicos que ornamentam a cidade. Não é um livro exatamente fácil. Segundo os críticos há hipóteses e argumentos de Ruskin que são totalmente anacrônicos a luz do que se conhece sobre Veneza e sobre a Itália hoje, mas alguém deveria mostrar primeiro o caminho, desbravar primeiro a grande laguna, o grande canal e isto Ruskin fez com maestria. Qualquer pessoa que tenha visitado Veneza sabe o quanto é inútil tentar descrevê-la para quem não teve esta fortuna. O que Ruskin oferece é um encantamento, um sortilégio, uma espécie de guia para que possamos recordar e experimentar melhor a cidade. Por fim, sejamos gratos às pessoas que nos proporcionam felicidade, os adoráveis jardineiros de nossa alma. A Ruskin que produziu este livro, ao Proust que o plasmou em outra arte e uma vez mais a Maria Helena, que o fez chegar às minhas mãos! [início 31/01/2011 - fim 21/01/2011]
"As pedras de Veneza", John Ruskin, tradução de Luís Eduardo de Lima Brandão, São Paulo: editora Martins Fontes, 1a. edição (1992), brochura 15x20,5 cm, 210 págs. ISBN: 85-336-0104-2 [edição original: The stones of Venice (Kelmscott Press) 1851]

segunda-feira, 7 de fevereiro de 2011

mala índole

"Mala índole" é um conto que foi publicado originalmente em 1996 no jornal El País. Não foi incluído em nenhuma das coletânias de contos de Javier Marías mas, por sorte, foi publicado em livro em uma curiosa coleção de relatos organizada por Ana María Moix. Como típico das histórias curtas de Marías um sujeito vê-se enredado em uma situação cuja dinâmica sai totalmente de seu controle (se é que existem dinâmicas nesta vida onde temos algum controle). Um grupo de pessoas ligadas a um projeto cinematográfico hollywoodiano que se filma em Acapulco tira uns dias de folga e se aventuram no interior profundo do México. Uma delas pode ou não ser o mítico Elvis Presley. O narrador é seu tradutor/professor, um belo achado de Marías. A ambientação da história e os diálogos são muito bons. O narrador nos conta seu destino com um misto de ironia e amargor. Há algo no conto que lembra as histórias de fantasmas, uma das conhecidas obsessões de Marías. Cinema, linguagem, aparências, humor, traição e vingança. São muitos ingredientes para um conto pequeno, mas o talento de Marías dá conta da empreitada. Na próxima feira do livro de Madrid, Marías vai lançar seu último livro, "Los enamoramientos". Como não terei chance de ir a Madrid este ano (um ano sem o vazio desse país, sem as cores da terra e dos rochedos, é um ano perdido) farei "Los enamoramientos" chegar até mim. Seguro que si, ya veremos. [início 19/01/2011 - fim 20/01/2011]
"Mala Índole", Javier Marías, Barcelona: Plaza & Janés editores, 1a. edição (1998), brochura 11x17 cm, 122 págs. ISBN: 84-01-57055-7 [edição original: El País (España) 1996]

sábado, 5 de fevereiro de 2011

tres historias de amor

Este é o último volume da série Carvalho que restou-me ler. Veio de Madrid, pela Iberlibros. Que facilidade tudo isto! Demorei para começá-lo, pois queria ainda ter por mais tempo a ilusão de um futuro com vários livros de Manuel Vázquez Montalbán, com várias aventuras de Pepe Carvalho ainda tentadoras no horizonte. "Tres historias de amor" reune três contos curtos onde o amor se apresenta em registros diferentes. "Las cenizas de Laura" é a história da investigação sobre a morte de um amor fugaz do passado de Carvalho. Apesar de breve a ligação entre eles foi intensa. Descobrir quem a matou é uma questão pessoal e algo dolorosa. O amor é sempre primo da morte. "De lo que pudo haver sido y no fue" conta um caso mais sórdido. Um velho e caractural roqueiro morre. Carvalho deve pesquisar o passado deste sujeito, se envolver com seus amigos e inimigos envelhecidos, sua trajetória musical errática e as circunstâncias de seus últimos dias, antes de descobrir quem mais ganharia com sua morte. Às vezes a morte aparece como um quase favor para o pobre diabo que lamenta a vida que tem, alguém que quase sorri ao encontrá-la. "La muchacha que no sabía decir no" é um jogo de espelhos, que lembra algo "The lady of Shanghai", do Orson Welles". Carvalho é o álibi de um assassinato. Esta incômoda situação pode fazer com que ele perca sua licença de trabalho. De alguma maneira ele se apaixona pela mulher envolvida no assassinato (sempre devemos ser mais gratos as mulheres más que àquelas que apenas nos proporcionam felicidade - mas esta é outra história). Reencontramos Biscuter e seus deliciosos truques culinários; Charo e sua voluptuosa presença; Fuster e seu bom senso catalão; Contreras e suas manias de policial; Bromuro e sua discreta arte nas Ramblas catalanas. Carvalho está cínico e irônico como sempre nestas três historias de amor que o são também de desamor, histórias de desenlaces ambíguos, mas que convencem o leitor. Sou um sujeito diferente daquele que se surpreendeu pela primeira vez, quatro ou cinco anos atrás, com a prosa vigorosa de Vázquez Montalbán. Não é exatamente pena o que sinto. Mas há algo de pena por já ter percorrido todos estes vinte e tantos volumes. Talvez o certo seja deixar o tempo e o Alzheimer fazer-me esquecê-lo completamente e eventualmente tentar recomeçar. Ya veremos. [início 17/01/2011 - fim 19/01/2011]
"Tres historias de amor", Manuel Vázquez Montalbán, Barcelona: editorial Planeta, 1a. edição (1987), brochura 12,5x20 cm, 167 págs. ISBN: 84-320-6921-3

quarta-feira, 2 de fevereiro de 2011

el cementerio de praga

Não leia esta resenha caso você prefira não saber nada da trama e de eventuais detalhes do livro. Principalmente porque ninguém sabe quando é que o "O Cemitério de Praga" será traduzido e lançado no Brasil. Lançado quase simultaneamente à edição italiana original esta tradução espanhola saiu em dezembro de 2010. "El cementerio de Praga" é o último romance de Umberto Eco. Não é arrebatador como o "Pêndulo de Foucault" (meu favorito entre seus romances) nem estimulante como "O nome da rosa" (com o qual ele conquistou o mundo das letras há trinta anos). É um romance psicológico, que brinca histórias de espionagem, se ampara em miríades de fatos históricos, se apropria de personagens reais (quase todos loucos de pedra) e que fala da farsa da concepção de um famoso texto anti-semita, o execrável "protocolos dos sabios de Sião". Como sempre nos livros de Eco você pode se concentrar apenas na história ou desfrutar dos jogos literários e da erudição do autor. Vamos a ver. Há três narradores na história, três vozes, que ele inclusive grafa com fontes tipográficas diferentes. Um é o narrador que conta a história, as outras duas correspondem às consciências divididas de seu personagem principal, que ora é Simone Simonini, um sujeito com patente de capitão, falsificador renomado, ora é um abade chamado Della Piccola. Estes dois dividem um diário, que é lido e interpretado pelo narrador da história. Freud, o "inventor" da psicanálise, aparece no livro, explicando a Simonini alguns dos aspectos de suas teorias e procedimentos clínicos. A história propriamente dita se passa basicamente na segunda metade do século XIX e envolve a vida e os sucessos do notário (tabelião) e falsificador de documentos Simonini. Criado por um avô anti-semita ele cresce e passa a ser educado por padres jesuítas. Após trabalhar alguns anos para um rico tabelião de sua cidade ele é recrutado pelo serviço secreto piemontês e passa a produzir documentos falsos para os fins todos os fins. Com o tempo ele passa a produzir não apenas documentos avulsos, mas histórias e tramas inteiras, para os mais variados usos e práticas. As invenções são sempre mirabolantes, envolvendo conspirações cruzadas entre maçons, jesuítas, carbonários, judeus, protestantes, papistas e cristãos, incluindo os mais variados sentimentos anti-clericais, satânicos e anti-semitas. Partindo de sua Piemonte natal ele emigra para Paris. Sua carreira acompanha alguns dos fatos políticos europeus mais importantes da segunda metade do século XIX: as conspirações dos carbonários; as guerras de independência e de unificação italiana; a guerra franco-prussiana; a comuna de Paris; a aproximação entre a França e a Rússia. Sua "obra prima" é a produção de um documento para o serviço secreto russo que servirá de base, já no início do século XX, dos protocolos de Sião. O interessante neste personagem é que ele parece acreditar nas farsas que produz. O livro tem o ritmo de uma história de espionagem, algo na linha das conspirações da guerra fria inventadas por Ian Fleming por exemplo. Há também saborosas descrições gastronômicas, especialmente da culinária francesa, algo que sempre me faz lembrar o detetive Carvalho do Manolo Vazquez Montalbán. Há momentos que o livro dá mesmo fome. A psicologia freudiana e os mecanismos do inconsciente pairam sobre a trama do livro. Se não é o melhor livro dele ao menos tudo é divertido afinal de contas, especialmente para quem é vaidoso intelecutalmente e gosta de tramas eruditas intrincadas. O livro tem um bom número de ilustrações, reproduções de gravuras antigas, a maioria delas propriedade do próprio Eco. No final uma ironia final dele, com o acréscimo de um resumo e um quadro descritivo do livro que ele chama de "inúteis esclarecimentos eruditos". O sujeito sabe mesmo que o ofício da literatura só tem sentido se o autor se diverte. [início 13/01/2011 - fim 17/01/2011]
"El cementerio de Praga", Umberto Eco, tradução de Helena Lozana Miralles, Barcelona: editorial Lumen (Random House Mondadori), 1a. edição (2010), brochura 14x21 cm, 590 págs. ISBN: 978-84-264-1868-5 [edição original: Il cimitero di Praga, Bompiani (Milano), 2010]

terça-feira, 1 de fevereiro de 2011

milagrário pessoal

Em "Milagrário pessoal" (que tem um longo sub-título: "apologia das varandas, dos quintas e da língua portuguesa, seguida de uma breve refutação da morte") encontramos uma curta história de amor. Na verdade são duas, aquela descrita no enredo da história inventada por Agualusa e uma outra, entre ele, o autor, com a língua portuguesa. Ele inventou uma garota, Iara, jovem linguista portuguesa, curiosa com o surgimento na imprensa de uns neologismos ditos mais que perfeitos. Ela busca ajuda com um velho ex-professor, que é o narrador da história. Este último a leva por um intrincado caminho de pistas literárias: os neologismos são transmitidos por pássaros; ou são invenção de uma confraria de revolucionários angolanos do século XVII; ou invenções de outros escritores portugueses, timorenses, brasileiros e angolanos; ou uma invenção do próprio narrador, o velho ex-professor. Há algo de ensaio literário no livro, mas nada que aborreça o leitor. Como nos demais livros de Agualusa que li este é dividido em capítulos bem curtos, movimentados, que levam o leitor a vários cenários: a Angola dos tempos da rainha Ginga, no século XVII; ao Timor Leste no tempo da invasão da Indonésia; a um puteiro e a uma pousada sofisticada na Pernambuco de nossos dias (cousas do Brasil estas misturas); a Nairobi dos tempos do ubíquo Richard Francis Burton; a Lisboa cosmopolita onde vivem os personagens. O livro faz elogios à vida sossegada nos quintais repletos de sombra, árvores frutíferas e pássaros; fala da música e da poesia; conta a contribuição dos homens simples na criação e no uso das palavras que correm entre todos de um lugar. Não é exatamente um livro arrebatador, mas vale as horas agradáveis que passamos com ele, com que viajamos por uma espécie de história da língua portuguesa com ele. No final (com ironia e leveza) impossível não lembrar do "The Poodle Lecture" do Frank Zappa: "The man would do anything to get some pussy. And that's why the woman always had control over him". Cabe ainda dizer que este livro (editora e coleção) faz parte de um bom projeto pessoal de Agualusa: "dar a conhecer as vozes novas da língua portuguesa". A edição é bem cuidada e a lista de autores angolanos, cabo-verdianos, goenses, de seu catálogo, extensa. Infelizmente eu acabo sempre lendo os livros do próprio Agualusa e não os demais editados por ele. Paciência. A "Língua Geral" vale sempre uma consulta. [início 10/01/2011 - fim 13/01/2011]
"Milagrário pessoal: apologia das varandas, dos quintais e da língua portuguesa, seguida de uma breve refutação da morte", José Eduardo Agualusa, Rio de Janeiro: editora Língua Geral (coleção Ponta de lança), 1a. edição (2010), brochura 13x18 cm, 234 págs. ISBN: 978-85-60160-69-3