sexta-feira, 26 de fevereiro de 2016

Em busca do tempo perdido

Já há quatro anos pelo menos ouço falar e leio sobre uma nova tradução do ciclo proustiano "Em busca do tempo perdido" para o português; tradução assinada pelo jornalista e escritor Mario Sergio Conti. Recentemente li que o primeiro volume será sim publicado nesse ano. Duvido, mas logo veremos. Todavia foi pensando nesta possibilidade e numa futura reimersão nas maravilhas de Proust que comprei esse "Em busca do tempo perdido: Dicionário de nomes e lugares", de Michel Erman, um professor universitário francês. Trata-se de um bom guia de leitura. Encontramos nele exatamente o que o título promete, a descrição detalhada dos personagens e dos lugares onde se passa a narrativa daqueles livros de Proust. A edição é muito bem cuidada. Inclui uma dezena de reproduções fotográficas; um fundamental índice remissivo para os dois conjuntos de verbetes, o onomástico e o de lugares ou territórios; uma pequena cronologia do ciclo (que vai de 1879 a 1919); uma bibliografia; um ensaio curto assinado por Georges Poulet (uma espécie de apresentação dos livros) e um longo ensaio sobre as traduções das obras de Proust no Brasil assinado por Guilherme Ignácio da Silva, Henriete Karam e Regina Salgado Campos. Um leitor noviço do ciclo certamente se beneficiará caso faça breves consultas aos verbetes deste dicionário, apesar de correr o risco de perder algo do impacto das descobertas e das alegrias devidas às súbitas associações que fazemos quando lemos Proust pela primeira vez. A bem da verdade acredito que esse neófito leitor ganharia mais se apenas consultar esse dicionário após ter terminado sua primeira leitura do ciclo ou em casos excepcionais, onde as impressões pessoais estejam completamente embotadas. O formato do livro lembra o robusto "Reader's guide to 'Remembrance of Things Past'", de Terence Kilmartin", que é de 1984, e também o mais coloquial porém utilíssimo "Marcel Proust's Search For Lost Time", de Patrick Alexander, mas Erman é francês e cita apenas livros de autores franceses em sua bibliografia. Divertido. Erman publicou em 2013 uma biografia de Proust. Talvez seja interessante procurar este livro também. Vamos a ver.
[início: 06/10/2015 - 12/02/2016]
"Em busca do tempo perdido: dicionário de nomes e lugares", Michel Erman, tradução de Carla Cavalcanti e Silva, São Paulo: Editora Globo (Biblioteca Azul), 1a. edição (2015), brochura 14x21 cm., 184 págs., ISBN: 978-85-250-5876-8 [edição original: Le Bottin proustien: qui est qui dans la Reserche? (Paris: Éditions de La Table Ronde, Collection La petite vermillon #355) 2010; Le Bottin des lieux proustiens (Paris: Éditions de La Table Ronde, Collection La petite vermillon #338) 2011]

sábado, 20 de fevereiro de 2016

lulu

"Lulu" é um romance de sonhos, de pesadelos, de extravagâncias e delírios, hipnótico, onde se oferece ao leitor uma descrição barroca e terrível do acerto de contas entre um sujeito e seu duplo, seu espelho, seu passado (se é que um acerto de contas desse tipo é possível, afinal somos definidos exatamente pela sucessão de metamorfoses que experimentamos ao longo da vida). Um escritor de trinta e poucos anos, Vitor, já respeitado e com uma obra consistente publicada, também professor universitário e casado, isola-se numa região montanhosa do interior romeno para escrever um novo livro, seu último relato, sua última narrativa. O que ele produz é uma longa carta, escrita para para ele mesmo, onde rememora os sucessos ocorridos em sua adolescência, durante um acampamento de verão, pouco tempo antes dele ser obrigado a cumprir o serviço militar (trata-se dos anos aterradores da ditadura comunista de Nicolae Ceausescu). Vitor amarga a clássica inapetência para a vida que quase todos os adolescentes em todos os tempos e lugares do mundo experimentam por algum tempo. Ambiciona tornar-se escritor e publicar seus versos. Nos dias de acampamento ele tenta ler seu Kafka (justamente "A metamorfose", que outro livro poderia ser?), solitário, isolado dos demais, mas acaba atraído pela dança e bebida, pela euforia, luzes e ruídos, passa a participar das brincadeiras e dos passeios com seus colegas, vê os corpos de muitos deles envolvidos nos jogos amorosos, mas nunca sente-se pleno, realmente acolhido naquele ambiente. Nas noites tem pesadelos, onde lembra de uma irmã já morta e reinventa as experiências do dia (a narrativa de Cartarescu lembra algo da decadência e esgotamento que encontramos no "Às avessas", do Huysmans, por exemplo). Um de seus colegas de colégio, Lulu, baixote e loquaz, domina as atividades coletivas daquele pequeno bando. Na últimas das noites no acampamento um concurso de beleza é organizado e Vitor vive ali algo que passará anos tentando resgatar pela memória voluntária, mas ao mesmo tempo sublimar através da literatura que pratica. Escrever sobre si, sobre Lulu e o acampamento é uma busca desesperada pela libertação daquelas memórias, daquela obsessão. Os outros livros do Cartarescu que li ("El rutelista" e "Las Bellas Estranjeras") são bons, cada um a seu modo, mas "Lulu" agradou-me mais, como pura invenção e fértil manipulação de um tema que no fundo é recorrente, conhecido: o despertar para os sentidos que ocorre na adolescência. Seguro que haverá sim mais Cartarescu por aqui. Vale. 
[início: 26/01/2016 - fim: 19/02/2016]
"Lulu", Mircea Cartarescu, tradução de Marian Ochoa de Eribe Urdinguio, apresentação de Carlos Pardo, Madrid: editorial Impedimenta, 1a. edição (2011), brochura 14x21 cm., 158 págs., ISBN: 978-84-15130-19-2 [edição original: Travesti (Bucarest: Humanitas), 1994]

quinta-feira, 18 de fevereiro de 2016

impossível como nunca ter tido um rosto

De Ricardo Aleixo só havia lido "Modelos Vivos", cujos poemas vi e ouvi ditos por ele mesmo num dia especial de 2014, lá na Casa das Rosas, usina das letras paulista sempre bem capitaneada pelo vate Frederico Barbosa. Soube que ele estava trabalhando num livro novo e encomendei um exemplar. E então recebi, no início do último dezembro, direto lá das terras altas do Campo Alegre de Belo Horizonte, esse "Impossível como nunca ter tido um rosto", seu livro mais recente. Estão nele reunidos 32 poemas produzidos entre 2010 e 2015. Trata-se de uma produção independente, mas nem de longe artesanal. O livro é um objeto arte, que alegra o dia do leitor que tenha algo de esteta. Encontramos ilustrações muito bonitas, reproduções fotográficas tratadas digitalmente. A tipografia, capa e guardas, toda a editoração, capturam o olho daquele leitor que aprecia o processo de construção dos livros (como já nos ensinou o Emanoel Araújo). A especial produção gráfica do livro é assinada por Mário Vinicius (o projeto pode ser visto aqui). Os poemas se enfeixam em séries serpeantes, em conjuntos gráfica e conceitualmente temáticos, estruturados. Alguns parecem "stanzas" de um projeto maior, de um longo e outro poema maior, que está sendo gestado. Dois dele  (Isso que não se cansa de nunca ter chegado e Acima ~ abaixo ~ de um lado ~ e de outro ~ à minha frente ~ e ~ atrás de mim) chamam a atenção pela forma como expõem ofício e biografia do autor. Não são poemas que se deixem ler com música, ruídos ou aperitivos (pois as vezes lemos poesia e prosa displicentes e vagos, ai de nós). Esses de Aleixo cobram atenção e tempo, disciplina e reflexão. Alguns sabem de uma presença mítica, simbólica, que não é grega, mas parecem denunciar travessias de um mar urbano, como os gregos faziam num mar de verdade; ecoam enfrentamentos e experiências urbanas, mas não aquelas expressas na arquitetura ou ruas, antes sim as que tratam dos homens e mulheres, seres indistintos que povoam a urbe. Aleixo fala com várias mulheres nos seus poemas, assim como Shakespeare conversa com uma Dama Negra em seus sonetos  Gostei especialmente de Na noite calunga do bairro Cabula, que fala de uma noite baiana e terrível; de Rosto, que dá nome ao livro e do forte e preciso Conheço vocês pelo cheiro. O livro inclui um prefacio assinado por Dirceu Villa e uma boa apresentação assinada por Carlito Azevedo. Num vídeo de um programa de televisão mineiro ele mesmo explica algo de seu livro que se tornou possível. Boa. 
[início: 08/12/2015 - fim: 11/02/2016]
"Impossível como nunca ter tido um rosto", Ricardo Aleixo, Belo Horizonte: Produção Associada Ricardo Aleixo e Fatima Augusta de Brito, 1a. edição (2015) brochura 13x23 cm., 76 págs., série 1 (34/100), sem ISBN.

sexta-feira, 12 de fevereiro de 2016

ropero de la infancia

Dos quase trinta romances que Patrick Modiano escreveu não li nem metade, mas continuo curioso com seu método de contar histórias e o ritmo delas. Ele publicou seu primeiro livro no final dos anos 1960 e continua produtivo. "Ropero de la infancia" foi publicado originalmente em 1989, Modiano já era um autor experimentado e respeitado. A estrutura de suas histórias segue um padrão, mas ele sempre alcança surpreender o leitor e não o entendia. Em seus livros geralmente um encontro casual ou um objeto desperta num sujeito inusitadas associações e lembranças; geralmente esse narrador se interessa por uma mulher algo misteriosa, mas busca nela antes informações sobre outras pessoas ou fatos que o amor ou o sexo; geralmente o protagonista da história é um observador nato, alguém que é capaz de decifrar rapidamente o caráter de seus interlocutores; geralmente acompanhamos o narrador pelas ruas, bares e hotéis de uma cidade, em duas épocas diferentes, aquela da memória despertada e aquela da história que se vive. Encontramos tudo isso em "Ropero de la infancia". Um escritor vive exilado e incógnito, sob nome falso, em uma cidade portuária não identificada, provavelmente no Mediterrâneo. Faz calor, um calor que entorpece o entendimento das coisas, tudo parece acontecer no ritmo lento do verão tropical. Ouve-se um muezzin que chama os fiéis do alto de uma mesquita. O narrador esconde até do leitor as razões de sua saída de Paris e o abandono de uma promissora carreira como romancista. Ele vive de escrever um folhetim medíocre para uma emissora estatal de transmissões radiofônicas. Entende-se vagamente que ele se envolveu num grave acidente automobilístico no qual sua acompanhante morreu e que de alguma forma herdou muito dinheiro de uma mulher, mas provavelmente não se trata da mesma pessoa. Um dia ele é reconhecido por um jornalista mas se esforça para não revelar sua identidade. Ele ajuda uma garota que planeja sair daquela cidade, mas está em dificuldades financeiras. Essa garota lembra uma menina de quem ele se aproximou no passado pois queria no fundo se envolver com a mãe dela, uma atriz de teatro, sustentada por uma espécie de gângster. Ele associa as duas, garota e menina, a um mesmo revestimento de fundo, uma larga parede de veludo azul da qual ambas parecem brotar. Parece que ouvimos Isabella Rossellini cantar "Blue Velvet" quando lemos o livro. Modiano sempre nos lembra que o tempo é transparente para a memória, mas que as cidades e as pessoas passam por metamorfoses por vezes terríveis. Interessante. 
[início: 10/02/2016 - fim: 12/02/2016]
"Ropero de la infancia", Patrick Modiano, tradução de María Teresa Gallego Urrutia, Barcelona: editorial Anagrama (Panorama de Narrativas #903), 1a. edição (2015), brochura 14x22 cm., 133 págs., ISBN: 978-84-339-7933-9 [edição original: Vestiaire de l'enfance (Paris: éditions Gallimard) 1989]

quarta-feira, 10 de fevereiro de 2016

dublin: lonely planet

No Bloomsday de 2014 decidi que as férias de verão de 2015 seriam em Dublin. No mundo confortável dos sonhos eu já havia ido a Irlanda centenas de vezes e no mundo terrível dos desejos já havia feito roteiros dos mais mirabolantes para ver tudo que fosse remotamente associado a James Joyce, Samuel Beckett, Bram Stoker, Oscar Wilde, Bernard Shaw, Jonathan Swift, W.B. Yeats (para não citar duendes, fadas, o The book of Kells, São Patrício, cerveja Guinness, pubs, museus, et caterva). Consegui decidir por um roteiro viável e no 29 de janeiro de 2015 embarquei para a aventura (a idéia era já estar familiarizado com a geografia da cidade quando chegasse o 02 de fevereiro, dia de aniversário de Joyce). Foram dias muito especiais, divertidos. Ao longo do ano passado fiz vários registros aqui de livros adquiridos lá (Marsh's Library; Chapelizod; Jewish Dublin; Pub Crawl; Joyce in Paris; Nicholson) e já contei algo das experiências associadas a cada um deles. Mas num 10 de fevereiro como hoje, no ano passado, ai de mim, tive de saír de Dublin (e fui a Madrid, depois a Pamplona, já contei algo sobre isso aqui). Hoje, 10 de fevereiro novamente, para terminar o ciclo de registros dedicados a memória de Joyce (que comecei no início do mês com o bom livro da Dirce Waltrick e segui com o Leon Edel, o Finnegans, o Read e o McCarthy) escreverei umas linhas sobre um livro fundamental para que tudo acontecesse da melhor maneira possível. Gostei do guia da Lonely Planet pela forma com que os temas são organizados e as informações distribuídas. Claro, o verdadeiro guia é a intuição do flâneur, o bom senso do turista, o acaso e a sorte (e isso eu posso dizer que tive de sobra), mas um bom guia ajuda o sujeito a se livrar de enrascadas óbvias e desastres anunciados. Conheço pessoas que não toleram nem saber que existem guias de viagens, mas obsessivos como eu adoram colecioná-los (e usá-los). O guia incluí dezenas de ilustrações e mapas, caixas de texto com informações históricas e até um espaço generoso para notas pessoais. As dimensões são corretas e o tamanho não incomoda um sujeito que está num casaco com bolsos (talvez no verão seja o caso de usar um guia menor, mais compacto). A versão digital dele está disponível no site da Lonely, entretanto devo confessar que me inspirei um bocado num programa do Anthony Bourdain para escolher os restaurantes e bares que frequentei. Claro, fiz minha peregrinação pessoal pelos pubs da cidade e digo que o melhor site/aplicação para escolher um é o Publin. Sláinte.
[início: 16/06/2014 - fim: 10/02/2015]
"Dublin: Lonely Planet", Fionn Davenport, London: Lonely Planet Publications Pty Ltd, 9a. edição (2013), brochura 13x20 cm, 256 págs., ISBN: 978-1-74220-204-4

terça-feira, 9 de fevereiro de 2016

joyce´s dublin

No final de janeiro do ano passado saí do Brasil com dois livros debaixo do braço, o "The Ulysses Guide", do Robert Nicholson e o "Dublin Guide", da Lonely Planet. Já registrei aqui as boas sugestões e as alegrias que encontrei no primeiro deles e farei amanhã um registro do quão útil foi esse último. Mas hoje escrevo sobre um dos mimos que comprei por lá naquele período. Trata-se de "Joyce's Dublin: A walking guide to Ulysses", publicado originalmente em 1986, cinco anos da primeira versão do livro do Nicholson. A exemplo daquele o que Jack McCarthy e Danis Rose oferecem ao leitor são roteiros de caminhadas e descrição de locais a serem visitados, informações essenciais para que o fiel acólito dos segredos de Joyce possa seguir para emular em paz as experiências que ele fez seus personagens viverem. Na proposta de McCarthy os roteiros seguem a ordem cronológica dos capítulos, o que pode redundar em superposições e confundir um tanto os deslocamentos pela geografia da cidade (afinal espaço e tempo não formam um única unidade topológica na escala dos homens). Só para lembrar, Nicholson aglutina seus roteiros em oito propostas, associadas a regiões da cidade que podem ser visitadas num mesmo período de tempo, coisa de duas, duas horas e meia. Os mapas de McCarthy, produzidos por um sujeito chamado Bob Conrad, são mais precisos e o conjunto de fotografias e ilustrações incluídos no livro mais variado que no livro de Nicholson. De qualquer forma são dois livros complementares, que oferecem ao leitor abordagens diferentes para alcançar o mesmo objetivo prazeroso que é seguir sozinhos os passos de Stephen Dedalus e Leopold Bloom pelas ruas de Dublin, sem a menor camada de dificuldades acadêmicas, jargões literários ou hiper especialização. À diferença do livro de Nicholson, McCarthy inclui um mapa de Gibraltar, para que o leitor possa acompanhar as deambulações mentais, o fluxo de consciência de Molly Bloom, no capítulo final do Ulysses. Divertido.
[início: 02/02/2015 - fim: 02/02/2016]
"Joyce's Dublin: A walking guide to Ulysses", Jack McCarthy, Danis Rose, New York: St. Martin's Press (Macmillan Group), 1a. edição (1991), capa-dura 16x24 cm., 93 págs., ISBN: 0-312-05885-3 [edição original: (Dublin: Wolfhound Press) 1986]

segunda-feira, 8 de fevereiro de 2016

cuadros del londres victoriano

Em "Cuadros del Londres victoriano" estão reunidos onze crônicas de viagem produzidas por Natsume Soseki sob inspiração dos dois anos em que viveu em Londres. Algumas são factuais, diretas, escritas como apontamentos de um diário, pelo menos duas originalmente foram cartas enviadas a amigos no Japão, já outras têm tratamento diferente, mais literário, flertam com o conto, com a invenção. Os textos foram inicialmente publicados numa revista tradicional japonesa do início do século passado chamada Hototogisu e posteriormente reunidas em livro, entre 1901 e 1909. Cabe registrar que neste ano se comemora os cem anos de morte de Soseki. Os registros de Soseki são realmente vívidos, ele fala de suas experiências no cotidiano londrino com assombro e bom humor. Observador refinado ele consegue contrastar o impacto da experiência na vida londrina com as tradições japonesas. Ele nunca é invisível. Chama a atenção a presença de um rapaz baixo e "amarelo", que se expressa com educação, sempre economiza dinheiro para comprar livros, veste roupas ocidentais e tem uma curiosidade de criança por todas as coisas. Já registrei nesse blog quatro crônicas, pois foram publicadas em dois pequenos volumes que já li anteriormente ("Cartas de Londres" e "Diario de la bicicleta" num volume e "La Torre de Londres" e "El museu Carlyle" em outro). As demais ("Habitaciones"; "El olor del pasado", "Un cálido sueño", "Impresión", "Niebla", "Hace muito tiempo" e "El profesor Craig") li agora pela primeira vez. Essas sete narrativas são híbridas de realidade e sonho. Soseki decifra o complexo arranjo social de uma pensão da periferia; conhece um outro japonês expatriado, mas que vive em condições econômicas muito melhores que as dele; sonha com uma viagem numa carruagem pelas ruas de Londres; acompanha a multidão matinal de pessoas que se deslocam para trabalhar, mas o faz noutro ritmo, como se fosse um escolho perdido num mar raivoso; perde-se na noite londrina, encantado com os ruídos de máquinas e equipamentos urbanos; visita o campo de batalha de Killiecrankie (nas terras altas escocesas) e imagina as operações de guerra e deslocamentos daquele confronto sangrento; descreve as aulas de conversação que mantém com um respeitado especialista em Shakespeare. Quando os dois anos de bolsa de estudos acaba Soseki volta ao Japão com quinhentos livros de literatura inglesa na bagagem. Quem de nós, bibliófilos praticantes como Soseki, não voltou de uma viagem com malas cheias de livros que amávamos mais que os demais pertences que trazíamos? Que não acumulou experiências sem fim em viagens e não as decanta à luz dos livros de outros viajantes. Vale. 
[início: 03/01/2016 - fim: 06/01/2016]
"Cuadros del Londres victoriano", Natsume Soseki, tradução de Fernando Ortega e Abel Vidal, ensaio de Jordi Fibla, Palma/España: José J. de Olañeta, Editor (coleccíon El Barquero), 1a. edição (2014), brochura 13x21 cm., 209 págs., ISBN: 978-84-9716-913-4 [edição original: A la deriva por el espacio (1906) / El Cuco (1901-1903) / Piezas breves para dias largos (1909) (Tokyo: Hototogisu,  ホトトギス]

sábado, 6 de fevereiro de 2016

distintas formas de mirar el agua

De Julio Llamazares só havia lido "El cielo de Madrid", sem muito entusiasmo. Lembro-me que o comprei logo no final de uma estadia em Madrid, há muitos anos e foi a capa, muito bonita, que chamou-me a atenção e os últimos euros daquela viagem. O mesmo aconteceu com "Distintas formas de mirar el agua", que comprei já no aeroporto de saída de Madrid, no final de fevereiro passado. Dentre todos os livros que estavam em exposição num quiosque esse capturou meu olhar (e também meus outros últimos euros, claro). Trata-se de uma narrativa calma, direta, na qual o leitor acompanha os pensamentos, o fluxo de consciência, de vários personagens durante o breve instante de tempo que é o final de uma cerimônia de despedida, o adeus de uma família às cinzas de seu patriarca, que são entregues às águas de um grande lago. Esse sujeito, Domingos, o morto, não se manifesta no livro. Em meados do século XX, durante o governo de Francisco Franco, ele e sua família (mulher e quatro filhos pequenos) são obrigados a sair das montanhas onde viviam por conta da construção de uma barragem e consequente inundação da região. O governo os transfere para um vale distante dali e eles recomeçam a vida dura de agricultores. Domingos e a mulher, Virginia, deixaram para trás, além da casa e demais equipamentos de sua fazenda, a tumba de um filho primogênito, morto ainda menino. Assim como a cidade, o cemitério e todos seus mortos ficam para trás, submersos. Llamazares dá voz, cada um a sua vez e em capítulos individuais, a mulher, aos filhos, netos e agregados à família de Domingos. Esses personagens/narradores falam de sua fibra, retidão moral, capacidade de trabalho e, também, de sua decisão de jamais retornar em vida ao imenso lago formado pela barragem. Os destinos de cada personagem se confundem com as transformações pelas quais passou a Espanha nos últimos cinquenta anos, da ditadura de Franco a redemocratização, da entrada na comunidade europeia a crise de emprego contemporânea. A memória como se desfaz, se esgarça, a cada geração algo se perde, se borra, é interpretado de forma sutilmente diferente. A ênfase do autor não está nas ações dos personagens ou nos fatos históricos vivenciados por eles, mas sim em seus sentimentos. Nada fica implícito, em algum momento um dos personagens explica um fato da trama que um outro havia esquecido para trás. Descobri depois que trata-se de uma história que brota da experiência pessoal do autor, que também nasceu numa região de Léon inundada por uma barragem. Tudo tem algo de autobiográfico na literatura. Assim como em "El cielo de Madrid" a história é bem contada, mas não há nenhum desafio metalinguístico ou estrutural no livro (Faulkner fez um homem morto falar em seu "As I lay dying"; Akutagawa fez cada personagem contar uma história radicalmente diferente do mesmo causo em "Rashomon"). Paciência. "Distintas formas de mirar el agua" é um livro honesto afinal de contas. E Llamazares parece nos lembrar algo das palavras de Proust: O mar não guarda vestígios dos trabalhos dos homens, o mar há de consolar todo aquele cuja vida já passou dos primeiros aborrecimentos. Vale.
[início: 29/01/2016 - fim: 02/02/2016]
"Distintas formas de mirar el agua", Julio Llamazares, Madrid: Alfaguara (Grupo Santillana de ediciones), 1a. edição (2015), brochura 14x22 cm, 196 págs. ISBN: 978-84-204-1917-6

sexta-feira, 5 de fevereiro de 2016

james joyce's very large handbook of irish history

Nesse divertido livrinho de bolso estão compiladas dezenas de frases algo filosóficas algo espirituosas sobre a Irlanda e os irlandeses. Patrick Read tenta definir com bom humor as características típicas dos nativos da Irlanda, mas avisa logo no primeiro parágrafo que é possível que muita gente fique ofendida. Boa parte do livro do livro é dedicado a James Joyce, seu livro Ulysses e sua influência sobre os escritores irlandeses contemporâneos, mas Read fala de um bocado de coisas que costumamos associar à Irlanda: a crise da batata, os pubs, a imigração em massa, o catolicismo, as bebedeiras, os mitos celtas e o humor nada indulgente. Na verdade há uns poucos parágrafos de ligação entre temas, sendo o livro é mesmo uma coleção de aforismos (de W. B. Yeats, Oscar Wilde, Brendan Behan, Bernard Shaw, Patrick Kavanagh, Roddy Doyle, Flann O'Brien, Samuel Johnson, Jonathan Swift, Winston Churchill e Brien Moore, Edna O'Brien e outros tantos). O livro inclui também algumas ilustrações bacanas (assinadas por Natalie Turner). Ao terminá-lo o leitor recebe dois provérbios conclusivos (se é que isso é possível num livro que mistura literatura sofisticada com frases feitas e clichês de bar). Um diz que os irlandeses ignoram qualquer coisa que não possam beber ou socar e outro que os irlandeses possuem uma cultura e história muito especiais, que são a síntese de tudo que existe entre aquilo que encontramos logo ao dobrar uma esquina em Dublin e o que está escondido além do infinito. Sláinte!
[início: 13/01/2016 - fim: 16/01/2016]
"James Joyce's very large handbook of irish history", Patrick Read (texto), Natalie Turner (ilustrações), London: Zidane Press Ltd. (Pocket Hedgehogs), 1a. edição (2007), brochura 11x15 cm., 79 págs., ISBN: 978-0-954-842-16-1

quinta-feira, 4 de fevereiro de 2016

adiós, libros míos

Nunca havia lido algo de Kenzaburo Oe, o vencedor do prêmio Nobel de 1994. "¡Adíos, libros míos!" foi publicado originalmente em 2005. Comprei o livro por impulso, atraído pelo título, claro, por meu medo de perder um dia os meus livros. No início da narrativa de Kenzaburo encontramos convalescendo em um hospital Kogito Choko, um escritor famoso e de idade avançada, ferido gravemente durante uma manifestação. Um respeitado arquiteto, radicado nos Estados Unidos, Shigeru Tsubaki, velho amigo de infância de Kogito, o visita no hospital. Shigeru e Kogito haviam rompido relações e não se encontravam há vinte anos. Esse reencontro faz com que os dois relembrem seu passado e vivenciem uma série de situações extravagantes. O que o leitor lê é a narrativa de Kogito dessas memórias e aventuras do presente, não apenas a partir de seu ponto de vista, mas também do ponto de vista de Shigeru, seu duplo afinal de contas. É um livro que se deixa ler facilmente. Os dois protagonistas  falam sobre literatura (sobre Mishima, Dostoiévski, Celine, Eliot, Nabokov e Beckett), velhice, arquitetura e processos de construção, vida universitária, do ofício de ensinar, de doenças mentais, do ato criativo na literatura como o sintoma na psicanálise, do pós-guerra no Japão, das diferenças entre a cultura chinesa e japonesa, da luta contra o terrorismo após o 11 de setembro, morte, de uma eventual intervenção militar no Japão. É bem interessante. Descobri em algum momento que esse volume é na verdade a terceira parte de uma trilogia, de livros nos quais Kenzaburo fala de si mesmo, faz literatura confessional (no Japão esse gênero literário é chamado "watashi"). Paciência. Vou procurar os dois primeiros (em inglês traduzidos por "The Changeling" e "The Infant with a Melancholic Face") e conferir. Vale.
[início: 14/12/2015 - fim: 24/12/2105]
"¡Adiós, libros míos!", Kenzaburo Oe, tradução de Terao Ryukichi, Barcelona, editora Seix Barral / Coleccíon Austral (Grupo Planeta), 1a. edição (2014), brochura 12,5x19 cm., 385 págs., ISBN: 978-84-322-2129-3 [edição original: Sayōnara, watashi no hon yo! / さようなら、私の本よ! (Tokio: Kodansha) 2005]

quarta-feira, 3 de fevereiro de 2016

james joyce: the last journey

Numa comemoração particular, li esse pequeno livro de Leon Edel no último 13 de janeiro, o dia em que James Joyce morreu. Publicado originalmente em 1947 pela The Gotham Book Mart (uma famosa livraria que existiu em Nova Iorque e foi sede da James Joyce Society), "James Joyce: The Last Journey" reúne três fragmentos biográficos. Edel foi jornalista e professor universitário. Escreveu várias biografias literárias, editou livros e tornou-se conhecido pela extensa biografia que fez de Henry James, com a qual ganhou um prêmio Pulitzer e um National Book Award, ambos em 1963. Em meados dos anos 1940, por sugestão de Eugene Jolas, um conhecido patrono e incentivador de Joyce, Edel visitou Nora Barnacle, já viúva, em Zürich. De todo o material que chegou a reunir nas entrevistas que fez com Nora, seu filho Giorgio e com os amigos de Joyce na cidade restaram apenas os três fragmentos incluídos neste livro ("The Grave", "City of Exile", "The Last Journey"). São narrativas curtas, mas bem interessantes. Edel fala de sua peregrinação a tumba de Joyce, no cemitério Fluntern de Zürich; descreve as dificuldades que a família Joyce teve para emigrar da França à Suiça após o início da segunda grande guerra (Joyce relutou em sair de Paris pois não queria se afastar de sua filha Lucia, internada em um sanatório) e transcreve vários relatos sobre as últimas semanas de vida de Joyce e de seu funeral. O tom é sempre objetivo, jornalístico, seco, reunindo muita informação e fornecendo ao leitor múltiplas associações entre o biografado e suas obras. O sujeito sabia mesmo contar uma história. Bacana. A Paris Review o entrevistou em 1985, vale a pena ler.
[início - fim: 13/01/2016]
"James Joyce: The Last Journey", Leon Edel, Whitefish/Montana: Kessinger Publishing, 1a. edição (2007), brochura 15x23 cm., 48 págs., ISBN: 978-1-43255549-8 [edição original: New York: The Gotham Book Mart (1947)]

terça-feira, 2 de fevereiro de 2016

the ondt and the gracehoper

Há três anos Tom McNally, um filósofo e professor universitário irlandês, conseguiu através de financiamento coletivo (crowdfunding, em português) os recursos necessários para produzir esse livro ilustrado. Ele mesmo, também um artista plástico, produziu quarenta e seis ilustrações inspiradas em um episódio do "Finnegans Wake" de James Joyce, conhecido como "The Ondt and the Gracehoper". As ilustrações foram produzidas a partir de telas (50x70 cm.) originalmente pintadas à óleo e com tinta acrílica. A edição ficou a cargo da respeitada editora irlandesa Lilliput Press. O livro foi lançado em 2014, exatamente num Bloomsday (aquele que comemorava os 110 anos do dia imortalizado por Joyce em seu "Ulysses"). Além das quarenta e seis ilustrações, associadas a quarenta e seis trechos do episódio, encontramos no livro um longo ensaio assinado por McNally ("Philosophy, Art and the Search for Meaning in Finnegans Wake"), onde ele faz uma detalhada análise de seu entendimento deste episódio em particular e de toda a proposta original do livro. Ele simpatiza com aqueles que defendem que na concepção de Joyce o entendimento não é necessário, mas sim que o leitor deva concentrar-se sempre em ouvir sua própria voz durante a leitura e que através desta experiência ter acesso inconsciente ao idiossincrático senso de humor do livro. Trata-se afinal de um livro pleno de humor e jogos verbais. Para ele, afinal um sujeito especializado em filosofia da linguagem e também em Ludwig Wittgenstein, os conjuntos de letras do livro parecem inicialmente formar palavras conhecidas, mas a chave para o entendimento mais profundo do livro está no som que associamos aos novos arranjos de letras que Joyce propõe, inventa, grafa. Ele usa argumentos de filósofos da linguagem, sobretudo Donald Davidson, e de vários outros comentadores da obra de Joyce para justificar sua interpretação. Suas ilustrações foram criadas como um exercício de facilitação, uma forma de auxiliar o leitor a ultrapassar a história do episódio (de resto uma versão não moral da conhecida fábula de La Fontaine "A cigarra e a formiga") e explorar as muitas outras camadas de entendimento, como acontece com os livros para crianças. As ilustrações são de fato muito bonitas, algo geometrizadas, produzidas com uma paleta de cores suaves, frias. O livro inclui também uma apresentação assinada por Danis Rose, talvez o maior especialista em "Finnegans Wake", responsável pela edição definitiva e mais recente do livro, em 2010. Como já disse uma vez Margot Norris para entender o "Finnegans Wake" devemos aceitá-lo como um quebra-cabeças cuja chave é o próprio quebra-cabeças. O Finnegans jamais fará sentido como o "Ulysses", o "Retrato do artista quando jovem" ou qualquer romance convencional fazem, pois esperar isso implicaria em um quadro conceitual e numa epistemologia que Joyce propositalmente pretendia minar (textualmente ela diz - no 'The decentered universe of Finnegans Wake: a structuralist analysis', de 1976, "In other words, expecting the work to 'make sense' in the way Portrait, Ulysses or traditional novels 'make sense' implies a conceptual framework and epistemology that Joyce strongly intimated he wanted to undermine"). Beleza. Devemos agradecer os 91 sujeitos que contribuíram com os cinco mil euros necessários para a produção desse belo livro. E por fim, me cabe lembrar que hoje, 2 de fevereiro, é dia de aniversário do Joyce. Happy birthday Jim.
[início: 16/06/2015 - fim: 02/02/2016]
"The Ondt and the Gracehoper", James Joyce, ilustrações de Thomas McNally, Dublin/Ireland: Lilliput Press, 1a. edição (2014), capa-dura 17,5x25 cm., 136 págs., ISBN: 978-1-84351-627-9

segunda-feira, 1 de fevereiro de 2016

james joyce e seus tradutores

Amanhã, 02 de fevereiro, é o dia em que se comemora o aniversário de James Joyce (ele nasceu em 1882). Dedicarei essa semana a registrar alguns livros que li dele e sobre ele recentemente. O de hoje é "James Joyce e seus tradutores", publicação de Dirce Waltrick do Amarante, conhecida tradutora de Joyce ("O gato e o diabo" e "Os gatos de Copenhague"), Lewis Carroll e de Edward Lear. Nele estão reunidos quatorze ensaios curtos, alguns deles anteriormente publicados em jornais, revistas ou em mídias digitais. Percebe-se que as reflexões são resultado de um trabalho acadêmico sério e disciplinado, mas a apresentação é feita numa linguagem simples, ligeira, focada num leitor ainda não familiarizado com os livros de Joyce e a miríade de livros e comentadores de sua obra. Trata-se então de um bom guia de leitura, de uma apresentação breve de alguns dos livros de Joyce. Três ensaios são dedicados ao "Ulysses", nos quais a autora comenta os projetos de tradução de Antônio Houaiss, cuja tradução pioneira para o português faz cinquenta anos neste 2016; Bernardina Pinheiro, que editou a sua em 2005; e a mais recente, a de Caetano Galindo, publicada em 2012. São comentários breves, nada exaustivos, produzidos para informar ao leitor os dados básicos das qualidades e defeitos das propostas de tradução, além de comentar algo da história da edição original do livro e do Bloomsday, festa literária dedicada a comemorar o dia 16 de junho de 1904 no qual a trama do livro de Joyce se desenrola. Seis outros ensaios tratam do "Finnegans Wake" (são os que achei mais interessantes e inventivos do livro), um a "Finn's Hotel" e um aos contos infantis de Joyce. Dois ensaios são dedicados a invenções em português fortemente inspiradas na obra de Joyce: "Riverão Sussuarana", de Glauber Rocha (1977) e "Finnício Riovém", de Donaldo Schüler (2004). Num último ensaio ela trata da relação entre Joyce e a Irlanda. O livro incluir também uma curta entrevista com um dos maiores especialistas em Joyce, Fritz Senn, curador da Zurich James Joyce Foundation. Como se tratam de ensaios independentes produzidos em diferentes épocas e circunstâncias, há várias repetições e sobreposição de temas entre eles. O livro inclui também algumas ilustrações e reproduções de fotografias. Seguramente trata-se de uma boa nova porta para se deixar capturar pelos feitiços literários do velho e bom James Joyce. Vale.
[início: 25/12/2015 - fim: 08/01/2016]
"James Joyce e seus tradutores", Dirce Waltrick do Amarante, São Paulo: editora Iluminuras, 1a. edição (2015), brochura 13,5x22 cm., 110 págs., ISBN: 978-85-7321-483-3