quarta-feira, 29 de maio de 2019

cartas a harriet

Neste pequeno volume encontramos 62 das muitas cartas ou cartões postais que James Joyce enviou entre 11/11/1914 e 19/06/1939 para Harriet Shaw Weaver, sua amiga, editora, executora literária e também sua mecenas quase particular por muitos e muitos anos. É bobagem especular cousas assim, mas acredito ser bastante improvável que Joyce alcançasse publicar - da forma que publicou - seus três grandes romances: "Retrato de um artista quando jovem", "Ulysses" e "Finnegans Wake", sem a ajuda dela. E mais, seria muito improvável até que sua vida material - o pagamento de sua moradia, alimentação, cuidados da família e das muitas operações nos olhos que fez ao longo da vida - tivessem acontecido da forma que aconteceram. Edna O'brien, famosa especialista em Joyce, escreveu em um artigo que provavelmente Harriet Weaver transferiu (em dinheiro de hoje) mais de um milhão de dólares, dos quais jamais pediu compensação exata na forma de direitos autorais ou coisa que o valha. Joyce enviava-lhe seus manuscritos, mas isso jamais foi uma condição dela para as remessas de dinheiro. Mesmo depois da morte de Joyce, Harriet, que sobreviveu a ele quase vinte anos, continuou apoiando sua família, tendo sido responsável pelos funerais de Nora Joyce e os muitos cuidados hospitalares dedicados a Lucia Joyce. Aprende-se um bocado sobre o caráter e a biografia de Joyce lendo as cartas. Ele era um sujeito irascível e parte de suas obsessões restam registradas nas cartas. A organização do volume e tradução das cartas e cartões postais é de um casal industrioso lá de Santa Catarina, os professores universitários Dirce Waltrick do Amarante e Sérgio Medeiros (deles já registrei aqui vários livros e ainda tenho vários outros para ainda registrar, ai de mim). À edição eles acrescentaram um conjunto de mais de duzentas boas notas curtas e dois ensaios robustos, que contam algo da biografia e contextualizam as circunstâncias da troca de cartas entre Harriet Weaver e James Joyce. As cartas foram compiladas de quatro portentos editados nos anos 1950, 1960 e 1970 por Richard Ellmann, o seminal biógrafo de Joyce: os três volumes do "Letters of James Joyce" e o volume "Select Letters of James Joyce". É pena que nenhuma das cartas enviadas à Joyce por Harriet Weaver tenha sido incluída na seleção, mas trata-se obviamente de uma decisão autoral e editorial que se sustenta de várias formas. As cartas e postais dão conta de como Joyce circulava pela Europa e revelam doses mais ou menos equivalentes de generosidade, cumplicidade, lamentos, demandas e exploração, pura e simples. O leitor curioso pode aprender algo sobre esta notável mulher aqui: clika!, ou conferir um artigo de Edna O'Brien publicado na New York Review of Books: clika aqui!. Bueno. Em poucos dias estaremos a comemorar mais um Bloomsday, aqui em Santa Maria, em Dublin e em centenas de outras cidades ao redor do mundo. Nenhuma destas comemorações deveria existir sem que ao menos uma citação de louvor a Harriet Weaver fosse feita. Haverá mais registros sobre livros dedicados as cousas de James Jocye, muito em breve. Você já está preparado para o Bloomsday 2019? Vamos em frente. Vale!
Registro #1406 (cartas #9)
[início:12/05/2019 - fim: 16/05/2019]
"Cartas a Harriet", James Joyce, tradução de Dirce Waltrick do Amarante e Sérgio Medeiros, São Paulo: editora Iluminuras, 1a. edição (2018), brochura 14x21 cm., 128 págs., ISBN: 978-85-7321-589-2

segunda-feira, 27 de maio de 2019

las aguas de la eterna juventud

Neste volume, o vigésimo quinto da série dedicada ao comissário Brunetti, já é outono, os dias começam a ficar mais curtos, as turbulentas águas de Veneza começam a subir. Donna Leon faz Brunetti interagir bastante com sua colega comissária, a eficiente Claudia Griffoni. Paola e os filhos, Elettra e Vianello, Scarpa e Patta, também aparecem episodicamente, mas os momentos chaves da trama são protagonizados pelos dois. Eles se envolvem na investigação sobre as circunstâncias que levaram uma garota veneziana, neta de uma influente contessa, a quase morrer afogada e a ficar com severas sequelas físicas. Como esse acidente ocorreu há mais de quinze anos há poucos registros confiáveis. A única testemunha do caso é um alcoólatra, cuja memória esfumou-se com o tempo. Elettra, sempre útil quando Brunetti necessita contornar a burocracia, a lentidão das repartições públicas e até das leis italianas, vê-se impossibilitada de ajudar, pois hackers parecem estar bisbilhotando seu computador. Enquanto faz seus personagens buscarem a solução para aquele enigma, Donna Leon  faz desvios pela sociedade italiana, fala dos projetos de restauração urbana que são utilizados para desviar dinheiro público, da ocupação desordenada dos espaços privados da cidade, da invasão sazonal de turistas, dos crimes do cotidiano, que se resolvem sozinhos. Esse volume é calmo, não há muitas reviravoltas, sobressaltos. Claro, repete-se a dose costumeira de sarcasmo de Donna Leon dirigida aos italianos, os mimos literários e de alta cultura oferecidos aos leitores, a cota de digressões sobre culinária, bons vinhos e a mundanidade dos cafés. Vamos em frente. Vale!
Registro #1405 (romance policial #83)
[início: 02/05/2019 - fim: 06/05/2019]
"Las aguas de la eterna juventud" (Brunetti #25), Donna Leon, tradução de Maia Figueroa Evans, Barcelona: Editorial Seix Barral / Booket #2711 (Grupo Planeta Manuscrito), 1a. edição (2018), brochura 12,5x19 cm., 333 págs., ISBN: 978-84-322-2994-7 [edição original: The Waters of the Eternal Youth (Zürick: Diogenes Verlag AG / Penguin Randon House Group) 2016]

sábado, 25 de maio de 2019

peregrinando rumo a finisterra

Já li alguns livros de pessoas que fizeram o mítico Caminho de Santiago (não, o do Paulo Coelho, definitivamente não). Cada experiência destes autores é muito particular, apesar de todos compartilharem a mesma esperança em algum tipo de iluminação, epifania, encontro, descoberta de si ou da realidade última das cousas. [Preciso fazer um reparo aqui. Meu amigo pernambucano Paulo Rafael lembrou-me que é possível fazer esse passeio apenas por diversão, sem pretensão qualquer e que até dá para ler Paulo Coelho só por curiosidade]. Bueno, meu livro sobre o Caminho de Santiago favorito é seguramente "Caminhos para Santiago", do Cees Nooteboom, que não trata exatamente de uma caminhada, mas do encontro afetivo de Nooteboom com a cultura espanhola. "Peregrinando rumo a Finisterra", do gaúcho e produtor rural Belquer Lopes, é um bom e honesto registro de uma caminhada convencional. Ele e Julieta Dal Castel, sua mulher, fizeram em 2013 um dos muitos ramos portugueses do caminho rumo a Santiago de Compostela. Partiram do Porto, em Portugal e chegaram ao cabo Finisterra, na costa do Atlântico, ponto mais ocidental da Espanha. Fizeram mais ou menos 300 Km, em pouco menos de duas semanas. O livro é muito bonito de se ver, cheio de reproduções fotográficas e de descrições bem escritas. Ele fala do cansaço, dos encontros com outros peregrinos, das pousadas e restaurantes, das cidades e dos vinhos, dos momentos felizes. Segundo ele seu desejo de viajar foi gestado por mais de trinta anos, mas a longa espera justificou o impacto da experiência, a aventura. Seu registro é realmente especial e digno. Vale a pena ler este livro. Em tempo: Incluo aqui hoje, 31/05, um link para a precisa descrição do Paulo Rafael de uma cicloviagem, que ele e uns amigos fizeram, de Bordeaux a Santiago de Compostela, e dali até o Porto, de onde saíram Belquer e Julieta. Fecha-se um ciclo, portanto. De alguma forma o belo livro do Belquer e o registro do Paulo precisavam ficar juntos. Viva. E seguimos o baile. Vale!
Registro #1404 (perfis e memórias #87)
[início: 02/03/2019 - fim: 12/03/2019]
"Peregrinando rumo a Finisterra", Belquer Ubirajara da Silva Lopes, Santa Maria / RS: Editora Rio das Letras, 1a. edição (2017), brochura 13x21 cm, 96 págs. ISBN: 978-85-65172-40-0

quinta-feira, 23 de maio de 2019

esta bruma insensata

Em "Esta bruma insensata", seu romance mais recente, Enrique Vila-Matas oferece uma vez mais uma narrativa onde importam antes as ideias, a discussão sobre o ofício da invenção literária, intertextualidade, metalinguagem ou o mundo diáfano dos livros e não necessariamente a trama, a história, os sucessos e aborrecimentos de personagens que, sabemos todos, só existem na imaginação de escritores e leitores. No livro acompanhamos três dias da vida de Simon Schneider, um sujeito algo misantropo, que vive isolado num casarão em ruínas de Cap de Creus, no ponto mais oriental da Península Ibérica, próximo à badalada Cadaqués, na Catalunya. Simon vive de traduções e também do curioso ofício que é compilar aforismos e frases feitas. Nos últimos vinte anos ele vendeu suas frases compiladas e aforismos sobretudo para um irmão mais novo, Rainer Schneider Reus, sujeito que era um medíocre escritor quando morava na Catalunha, mas que emigrou para os Estados Unidos e tornou-se um escritor respeitado, tanto por seus truques metaliterários quanto por sua reclusão, sua aversão a exposição pública, ao estilo de Thomas Pynchon ou J. D. Salinger. Simon entende que a força e o sucesso dos livros de Rainer deve muito a seu trabalho, às frases feitas que envia ao irmão. Ao mesmo tempo tem consciência do fracasso, sabe que a matéria prima da literatura sempre é algo que já foi contado e recontado infinitas vezes, que a originalidade é uma quimera, um sonho, esquecido entre "brumas insensatas", para aproveitar o título do livro. Vila-Matas situa temporalmente seu livro no final de outubro de 2017, nos dias em que massivas manifestações públicas aconteceram em Barcelona em função da declaração unilateral de independência anunciada pela Generalitat de Catalunya (e que tantos desdobramentos fez toda España experimentar desde então). Rainer e Simon funcionam como  Doppelgänger um do outro, são duplos, faces opostas e complementares, um do outro. A bem da verdade, entendi o relacionamento deles dois algo parecido com o de James Joyce e seu irmão Stanislaus, sempre tratado como um escravo particular, desde os tempos em que viviam em Trieste até o final da vida de Joyce, já em Zürich. Há momentos em que Simon e Rainer confessam fé cega na literatura, no poder das palavras, ja noutras, com sarcasmo, renunciam a ela, por sua natural impostura. O livro oscila entre estas duas ambições, louvar a literatura e renegá-la. Vila-Matas povoa seu livro com citações interessantes (de Elias Canetti, Raymond Queneau, Anthony Burgess, Ortega y Gasset, Winston Churchill e tantos outros). Ele faz seu personagem principal, Simon, deambular de Cap de Creus a Cadaqués, dali a Barcelona, justamente nos dias das manifestações contra ou a favor da independência da Catalunya, para encontrar, mas isso só nos últimos capítulos do livro, com seu famoso e dissimulado irmão. Esse encontro, em um hotel do Eixample barcelonês, funciona como um momento de auto-análise, uma sessão de psicanálise, uma interpretação do valor das palavras trocadas entre eles. Com bem diz um deles nestas seções finais do livro, "a paranóia é como o alho, deve ser usada com parcimônia". O livro termina enigmático, com uma palavra dita por Rainer para Simon, que lembra o final do "Cidadão Kane", de Orson Welles, e também termina com Simon perseguindo, pelas ruas coloridas de amarelo da Catalunha, uma esquiva Dorothy, que talvez fosse a mulher de Rainer, ou talvez não, vai saber. Vivemos todos sob um nevoeiro sem sentido. A literatura de ficção, Vila-Matas faz Simon enunciar: "gosta do passado e por isso corre o risco de não ser outra coisa que algo do passado". Sempre provocante, esse curioso e prolífico catalão. Vale! 
Registro #1403 (romance #356) 
[início: 11/05/2019 - fim: 22/05/2019]
"Esta bruma insensata", Enrique Vila-Matas, Barcelona: Editorial Seix Barral Biblioteca Breve (Grupo Planeta) 1a. edição (2019), brochura 13,5x23 cm., 311 págs., ISBN: 978-84-322-3489-7

domingo, 19 de maio de 2019

torquato neto

Torquato Neto foi dos mais inventivos poetas de seu tempo, um tempo que ele mesmo abreviou, talvez por não suportar os terríveis anos que se sucederam a instalação do regime militar no Brasil, nos anos 1960, talvez por ser um depressivo crônico, talvez por ser o mundo um lugar revoltante para qualquer pessoa sensível, talvez por alcoolismo, vai saber. Muitas canções de sucesso de Gilberto Gil, Jards Macalé, Caetano Veloso, Edu Lobo, Titãs e tantos outros foram concebidas a partir de poemas seus. Cláudio Portella, poeta cearense e produtor/agitador cultural dos bons, organizou uma seleção de poemas de Torquato Neto para a Global, competente editora paulista. Dele, Portella, já havia lido o potente "Paraphoesia" e o provocante "Fraturas de relações amorosas". Do Torquato li minha cota selvagem nos anos 1980, mas acho que só lembrava das lendas e sucessos associados a ele que de sua produção poética. A bem da verdade fazia duas décadas que não lia algo dele. O resultado da seleção de Portella é um livro bem bacana, bem editado, que apresenta ao neófito leitor aqueles poemas viscerais de Torquato, que misturavam concretismo, jornalismo, forma, olhar privilegiado da realidade, denúncia, raiva, contracultura e genuíno amor pelas cousas do Brasil. São 113 poemas, livres e soltos, nem um pouco convencionais, supérfluos, nem um pouco malemolentes. O leitor é obrigado a gastar um tanto de tempo nos poemas, não são fáceis de ler. O livro inclui uma apresentação de Cláudio Portella e uma cronologia biográfica que pode ser lida no site Dicionário Cravo Albin da MPB, projeto bacana da UNIRIO. Vale!
Registro #1402 (poesia #113) 
[início: 19/01/2019 - fim: 21/03/2019]
"Melhores poemas: Torquato Neto", Torquato Neto, seleção de Cláudio Portella, São Paulo: Global Editora (Pocket / coleção Melhores Poemas),1a. edição (2018), brochura 13,5x18 cm., 200 págs., ISBN: 978-85-260-2380-2

sexta-feira, 17 de maio de 2019

poesia religiosa

Achtung! Não posso dizer que li esse livro completamente, mas li sim os poemas incluídos nele e algo esparso do rico material que Marcus de Martini acrescentou aos poemas religiosos de John Donne que traduziu. Acontece que esse volume da UFSC reúne pelo menos quatro portentos: a edição bilíngue de poemas religiosos de John Donne; uma exaustiva análise das circunstâncias e importância destes poemas (um robusto paper); uma miríade de notas de tradução, que dão conta dos critérios utilizados pelo tradutor e um "Excurso", uma digressão sobre a Poesia e a Teologia de John Donne, a recepção dos poemas ao longo do tempo (Donne é um poeta do século XVII). De resto também encontramos no livro uma apresentação de Lawrence Pereira, premiado tradutor e professor. Marcus de Martins é um jovem pesquisador, defendeu seu doutoramento em 2011 e é professor da UFSM. Em 2017 ele ganhou o Concurso Cleber Teixeira de Tradução de Poesia da UFSC. Isso possibilitou sua edição deste belo volume. Ao leitor é oferecido todo um aparato técnico de como deu-se a tradução dos poemas. Ojo. Vamos ver o que mais sairá da lavra deste jovem pesquisador. Enfim. Os poemas que de fato li são 26 sonetos, 3 hinos e 1 outro, de métrica diferente, também de inspiração religiosa, de tema religioso. Mesmo o mais ferrenho e endurecido coração ateu, como parece ser o meu, acompanha as belas propostas, imagens e o deslumbramento captado por Donne, com genuíno prazer. Comprei este livro na Feira do Livro de Santa Maria do ano passado e só lembrei, ai de mim, que devia registrar algo sobre ele aqui, por estes dias, quando a Feira deste ano também já terminou. Bom divertimento. Vale!
Registro #1401 (poesia #112)
[início: 16/05/2018 - fim: 19/04/2019]
"Poesia religiosa: Antologia", John Donne, tradução, seleção e notas de Marcus de Martini, Florianópolis: Editora da UFSC, 1a. edição (2017), brochura 12x19 cm., 319 págs., ISBN: 978-85-328-0809-7

quinta-feira, 16 de maio de 2019

o valor das ideias

Pedro da Silva Nava, o melhor dos memorialistas brasileiros, disse num dia dos anos 1980, em uma famosa entrevista: "A experiência é um automóvel com os faróis virados para trás, (...) só serve para o sujeito dizer 'fiz bem', 'fiz mal' ". Marcos Lisboa e Samuel Pessôa, bem mais jovens e otimistas que o velho Nava, parecem não acreditar na eficiência desta sentença. Neste "O valor das ideias" eles oferecem ao leitor algo das reflexões e experiências deles sobre o passado recente do Brasil e dos brasileiros, e acreditam que os possíveis futuros do Brasil poderão ser gestados a partir de diálogos, debates, interlocução inteligente. São ensaios que tratam do mundo das ideias, da economia e da política. Quase todos os 23 textos reunidos neste volume foram anteriormente publicados em jornal (Folha de São Paulo) e em uma revista (Piauí), por eles dois e outros 11 intelectuais brasileiros. Alguns textos foram publicados e podem ser acessados em um blog do Instituto Brasileiro de Economia (IBRE/FGV). Os ensaios estão organizados em quatro conjuntos, correspondendo a debates (ou a diálogos, como preferem os autores), que aconteceram em 2016, 2017 e 2018. Os diálogos foram travados sempre com vigor, algumas vezes no limite da fúria, mas sempre com civilidade, autocontenção (para usar um termo caro a todos os sujeitos que deles participaram). O mais longo dos quatro conjuntos de diálogos, que ocupa 40% do livro, foi entre Ruy Fausto e Samuel Pessôa, merecendo contribuições de Marcelo Coelho e de Marcos Lisboa. Trata-se de discussões sobre o papel das esquerdas na sociedade brasileira contemporânea, se as estratégias e as práticas deste grande conjunto de agremiações nos últimos anos devem ser modificadas ou mantidas. Dois outros conjuntos de ensaios, de igual extensão e que juntos somam 50% do livro, correspondem ao debate entre Fernando Haddad e Marcos Lisboa (sobre os quatorze anos de governos petistas em contraste com os oito anos de governo FHC) e ao debate entre Celso Rocha de Barros, Marcos Lisboa e Samuel Pessôa (sobre "comedimento", ou "senso de medida", ou como a "virtude que nos protege da tragédia", nas palavras de um interlocutor deles três, Helio Gurovitz, que pode ser acessado aqui: clika!). Um quarto e último conjunto, que é o menor de todos, é também o mais antigo e o mais frouxo deles, acho eu. Trata-se de ensaios onde são contrastadas as práticas de economistas políticos ortodoxos e heterodoxos. Com a exceção dos ensaios publicados no blog do IBRE, acho que já havia lido quase todos os demais, quando foram originalmente publicados. Relendo-os agora não é muito difícil de aceitar que naquela época ainda havia tempo para evitar a tragédia absoluta que experimentamos hoje, 2019, em todos os setores da sociedade. Agora parece tarde demais para tudo, serão décadas e décadas perdidas, em sucessão, antes que alguma inteligência volte a administrar as coisas por aqui. Todavia, a se acreditar no otimismo deles dois, e de boa parte de seus interlocutores, talvez seja possível que em algum momento o Brasil saia do absoluto atoleiro em que se encontra. Em tempo: Esse é o registro número 1400 deste Livros que eu li, 1400 leituras feitas desde janeiro de 2007. Foram 0,30 livros por dia, 2,2 por semana, 9,5 por mês, 117 por ano. Quantos mais terei a paciência de fazer? Não muitos mais, eu suponho. Vamos a ver. Vale!
Registro #1400 (crônicas e ensaios #256)
[início:01/05/2019 - fim: 15/05/2019]
"O valor das ideias: debates em tempos turbulentos", Marcos Lisboa e Samuel Pessôa, diálogos com Ruy Fausto, Fernando Haddad, Marcelo Coelho, Celso Rocha de Barros, Helio Gurovitz, Luiz Fernando de Paula, Elias M. Khalil Jabbour, José Luis Oreiro, Paulo Gala, Pedro Paula Zahluth Bastos, Luiz Gonzaga Belluzzo, prefácio de Renato Janine Ribeiro, São Paulo: editora Schwarcz (Companhia das Letras / Penguin Random House), 1a. edição (2019), brochura 14x21 cm., 459 págs., ISBN: 978-85-359-3215-7

quarta-feira, 15 de maio de 2019

guia fantástico de são paulo

Ángela Léon é uma ilustradora e designer espanhola. Durante um período longo ela morou em São Paulo e pelo jeito aprendeu a amar aquela cidade superlativa, de maravilhas e mistérios, de oportunidades sem fim e de inutilidades bizarras. Neste seu "Guia fantástico de São Paulo" ela oferece ao leitor uma centena de desenhos que retratam algo da arquitetura, das gentes, dos mercados, do cotidiano, feiras livres, bares e orografia da cidade. São peças que certamente foram produzidas ao ar livre, não em um atelier ou estúdio, são trabalhos impregnados da vida pulsante dos paulistanos e demais viventes daquela infinita urbe. Ela divide os desenhos em dois grandes conjuntos, o das paisagens (dos rios, prédios, ruas e espaços públicos) e o das expressões culturais (ilustrando a passagem do tempo e das estações, os eventos e festas, registros da variedade ética da cidade). Uns curtos textos, fragmentos de reflexões sobre a cidade, complementam as ilustrações. Trata-se de um livro de arte, um volume ao qual podemos voltar displicentemente todas as vezes que as saudades de São Paulo se tornarem opressivas, tóxicas, insuportáveis. Só se cansa de São Paulo quem antes já se cansou da vida. Acho que a Ángela León soube bem disto. Vale!
Registro #1399 (livro de arte #29)
[início - fim: 22/02/2019]
"Guia fantástico de São Paulo", Ángela León, São Paulo: editora Lote 42, 2a. edição (2015), brochura 17x24 cm., 168 págs., ISBN: 978-85-66740-38-7

domingo, 12 de maio de 2019

una historia de españa

As 92 crônicas de Arturo Pérez-Reverte reunidas neste "Una historia de España" já haviam sido publicadas em jornal, na coluna "Patente de Corso" do XL Semanal. Elas foram produzidas aos poucos, publicadas ao longo de quatro anos, de maio de 2013 a agosto de 2017. Trata-se de "una visión muy personal de la historia de España", um projeto realmente ambicioso, certamente didático, acho que pensado originalmente para que os jovens espanhóis entendam um tanto melhor os fatos mais marcantes de aproximadamente 2000 e tantos anos da história de seu país. Revisadas apenas tipograficamente por ocasião desta edição em livro, as crônicas permitem a alguém que nunca se interessou pela história da Espanha ou que se aborreceu com ela nos bancos escolares, uma experiência realmente potente. Pérez-Reverte é senhor da linguagem jornalística, rápida, objetiva, precisa, substantiva. Ele nunca é hipócrita. Sempre escolhe um lado de qualquer questão espinhosa, sempre oferece ao leitor oportunidades de reflexão. Ele não se poupa de usar palavras fortes, ironias brutais, quase no limite da ofensa, mas as pessoas que ele achincalha ou já morreram há muitos anos ou vivem num justo ostracismo, por conta de seus crimes e atos vis. De fato são palavras duras e brincadeiras que antes facilitam o entendimento de temas que precisariam de parágrafos inteiros para serem bem explicados em tom solene. Pérez-Reverte navega pelos clichês que acostumamos a associar a Espanha e aos espanhóis ("A tierra de la paella, el flamenco y la mala leche"); por mitos históricos, lugares comuns e lendas urbanas ("nuestra siempre apasionante, lamentable y muy hispana historia"); por biografias romantizadas, invenções, personagens de romances e peças de teatro; esclarece temas mistificados por ideias feitas que frequentam tanto mesas de bar quanto gabinetes universitários ("España seria un país estupendo si no estuviera lleno de españoles"). Seu sarcasmo parece encantar até mesmo conservadores ou tradicionalistas, suas ironias devem por certo divertir a juventude apressada. Escritas cronologicamente, as crônicas tornam-se progressivamente mais amargas, mais cínicas, menos esperançosas. "Yo creo que esa pérdida - del control de la educación y la cultura - es irreparable, pues sin ellas somos incapazes de asentar un futuro", ele diz no parágrafo final. Talvez por isso mesmo ele pare de contar sua historia em meados dos anos 1980, quando da consolidação da redemocratização espanhola, da vitória do partido socialista nas eleições de 1982 e da entrada do país no Mercado Comum Europeu, em 1986. Talvez seu estilo jocoso não seja o mais adequado para falar dos dias que correm, de pruridos politicamente corretos. De qualquer forma ele não esgota nenhum assunto. O leitor só corre o risco de achar que fazer história (ou escrever sobre história) é fácil. Enfim, diversão e aprendizagem garantida. Em tempo: Ele incluiu, "a modo de prólogo", quase quarenta epígrafes mordazes, que parecem sintetizar com fúria a psique espanhola, desde autores clássicos gregos e romanos (Estrabón, Tito Lívio, Apiano), passando por Cervantes, Bartolomé de las Casas, Macaulay, Von Humboldt, Voltaire e Napoleão até autores e sujeitos do século XX, como Hitler, Ortega y Gasset, Garcia Lorca, Julián Marías. Impressionante compilação. Vale! 
Registro #1398 (crônicas e ensaios #255) 
[início: 18/04/2019 - fim: 08/05/2019]
"Una historia de España", Arturo Pérez-Reverte, Barcelona: Alfaguara / Penguin Random House Grupo Editorial, 3a. edição (2019), brochura 15,5x24,5 cm., 254 págs., ISBN: 978-84-204-3817-7

sábado, 11 de maio de 2019

melhores frases, sentenças e pequenos contos

Cláudio Portella é uma espécie de Karl Kraus cearense, nordestino, brasileiro. É jornalista, poeta, produtor cultural. Super original, mascate de si mesmo, sociólogo selvagem, ele produz livros, poemas e aforismos lapidares, como poucos no Brasil que eu conheça, sem fazer concessões a quem quer que seja, sempre usando sua mente e pena em direção a alvos certeiros. Ojo. Como ele mesmo lembra, "fazer crítica literária séria no Brasil é complicado: vivemos de metáforas e tapinhas". E eu aqui só nas metáforas e só nos tapinhas. Talvez essa minha crítica não seja séria. Paciência. Esse seu pequeno livro entrega o que o título bem promete. Trata-se de uma coleção de frases, sentenças e material que ele chama de pequenos contos. Decidi registrar aqui no Livros que eu li todos eles como aforismos. São peças realmente deliciosas, com as quais o leitor ora ri (quando as frases desnudam comportamentos estranhos a nossas práticas), ora repudia (quando as sentenças mostram uma nesga que seja de nossas pequenas misérias, mentiras e medos). As frases são quase sempre bem humoradas, provocativas, sarcásticas. De vez em quando o Cláudio se traveste de chato, e manda mensagens lá de sua Fortaleza fundamental, perguntando se queremos comprar o último livro dele (o sujeito é inquieto, sempre está a produzir algo). Mas não chega a ser mal educado. Aceita "de boas", como se dizia tempos atrás, nossas respostas elípticas. De qualquer forma, estou seguro que qualquer leitor que por acaso encontre este seu "Melhores frases, sentenças e pequenos contos de Cláudio Portella" é sim um leitor de sorte, que ganhará um bom par de horas de honesto entretenimento, um bom material para reflexão. Vale!
Registro #1397 (aforismos #10)
[início: 06/04/2019 - fim: 08/04/2019]
"Melhores frases, sentenças e pequenos contos de Cláudio Portella", Cláudio Portella, Fortaleza: Expressão Gráfica e Editora  (Edições CP), 1a. edição (2018), brochura 12x19 cm., 16 págs., ISBN: 978-85-420-1249-1

quinta-feira, 9 de maio de 2019

terra e paz

Yehuda Amichai foi um dos mais importantes poetas israelenses de seu tempo, e é celebrado sempre pela força de seus poemas e perene lucidez de suas reflexões. Nesta antologia, assinada pelo professor da USP e especialista em literatura hebraica, Moacir Amâncio, encontramos 79 poemas. Quase todos os poemas são curtos, cantam a cidade de Jerusalém, a família, o mistério das palavras, as diferenças entre os homens, o amor pelo seu país, as festas e dias de celebração, os personagens da história judaica, a passagem do tempo no humor e na vida do poeta e de seus concidadãos, a força de sua história e seu idioma. Três poemas são mais longos, e prendem o leitor num redemoinho de emoções: um em que o narrador explica como não foi um dos muitos milhões de mortos no Shoá, um que fala de um menino que se perde na história de seu país inventado, um em que fala do filho que parte para a guerra. O narrador fala sobre o cotidiano, a vida, as coisas que experimenta. Percorre as ruas da cidade e captura fragmentos de memória e espantos. São poemas que se deixam ler com calma, que provocam reflexões e surpreendem todo aquele que se aproximar do livro com o coração leve, sem restrições, sem compromissos ideológicos. O último poema escolhido por Moacir Amâncio em sua antologia diz: "Dentro do museu novo em folha / uma sinagoga antiga. / Dentro da sinagoga / eu. / Dentro de mim / meu coração. / Dentro do meu coração / um museu. / Dentro do museu / uma sinagoga, / dentro dela / eu, / dentro de mim / meu coração, / dentro do meu coração / museu." Esse poema infinito explica Yehuda Amichai, que viveu para registrar as maravilhas e a fortaleza da cultura judaica. Vale!
Registro #1396 (poesia #111)
[início: 01/04/2019 - fim: 29/04/2019]
"Terra e paz: antologia poética", Yehuda Amichai, tradução de Moacir Amâncio, Rio de Janeiro: Bazar do Tempo Editora, 1a. edição (2018), brochura 14x21 cm, 184 págs. ISBN: 978-85-69924-45-6

quarta-feira, 8 de maio de 2019

o sonâmbulo canta no topo do edifício em chamas

De Joca Reiners Terron só havia lido livros de ficção, quatro densos e provocativos bons romances: "Não há nada lá", "Guia de ruas sem saída" e "A tristeza extraordinária do leopardo-das-neves" e "Noite dentro da noite". Recentemente ele publicou um livro de poesias, "O sonâmbulo canta no topo do edifício em chamas". No miolo do livro estão 63 poemas e na capa, contracapa e orelhas 12 belas fotografias e um último poema. São poemas onde sempre um urbano, incógnito e algo preocupado narrador fala de seus afazeres, libera reflexões, canta seu cotidiano e dúvidas, narra fragmentos de memória. Um poema apresenta os demais: quatro conjuntos de poemas quase sempre curtos e dois longos, separados. Nos dois poemas mais longos o narrador queima ou vê queimar seu passado, os registros fotográficos de uma vida, numa espécie de inventário maldito, ou imagina se sua vida poderia ser emulada em um outro planeta, que orbita um estrela, parecida com o nosso Sol, distante. Nos poemas curtos o narrador fala da vida, de uma filha, de um casamento, faz sociologia selvagem e interpreta notícias, acontecimentos, com sarcasmo, vê pessoas de longe e imagina seus destinos, acompanha o burburinho da noite em sua cidade como se fosse um dramaturgo cruel e cínico. Talvez, talvez não, certamente, essa minha tentativa de enfeixar os poemas em temas, ritmos, musas, seja uma bobagem sem fim. Cada poema se defende sozinho, encontrará seu leitor, tocará uma fibra mental, provocará um efeito literário em alguém disposto a enfrentar os monstros alheios. Não mais que isso um bom e honesto poeta pode esperar. Evoé Terron, evoé. Vale!
Registro #1395 (poesia #110)
[início: 01/04/2019 - fim: 19/04/2019]
"O sonâmbulo canta no topo do edifício em chamas", Joca Reiners Terron, São Paulo: Pedra Papel Tesoura Editora, 1a. edição (2018), brochura 19,5x25 cm, 120 págs. ISBN: 978-85-907516-7-0

terça-feira, 7 de maio de 2019

sofrendo em paris

Athos Ronaldo Cunha é um sujeito que realmente acredita no poder da palavra, na possibilidade de indivíduos se entenderem literariamente. É engenheiro de formação, mas já publicou vários livros e é membro da Academia Santa-Mariense de Letras. Recentemente ele publicou este seu "Sofrendo em Paris". São 45 crônicas, dez delas finalistas ou premiadas em concursos literários dos quais participou Brasil afora. São narrativas curtas, que se resolvem quase sempre num susto, e são quase sempre otimistas, mesmo quando desnudam um erro, um ato vil, ou quando denunciam algo de nossas mazelas bem brasileiras.  Os temas não variam muito. Ele gosta de falar de política, de seu cotidiano em Santa Maria, de alguns sucessos relacionados ao futebol, de alguns fragmentos de memória, de seu passado e causos que experimentou quando era avaliador de penhor na Caixa Econômica Federal. Esse volume recebeu o primeiro prêmio de livros de crônicas não publicadas da UBE-RJ (Prêmio Alejandro Cabassa, União Brasileira dos Escritores), em 2017. Enfim, são crônicas que se deixam ler com calma, enfeixam reflexões de uma pessoa inquieta, que compartilha seus espantos e procura honestamente interlocutores, outros viventes que queiram entender um tanto melhor esse nosso complexo mundo. Não é pouco. Vale!
Registro #1394 (crônicas e ensaios #254)
[início: 27/04/2019 - fim: 02/05/2019]
"Sofrendo em Paris", Athos Ronaldo Miralha da Cunha, Guaratinguetá / SP : Editora Penalux, 1a. edição (2018), brochura 14x21 cm., 120 págs., ISBN: 978-85-5833-456-3

segunda-feira, 6 de maio de 2019

wilcock

Juan Rodolfo Wilcock foi um escritor, crítico literário e tradutor argentino que radicou-se na Itália em meados dos anos 1950. Quando morava na Argentina era interlocutor de escritores do calibre de Jorge Luis Borges, Silvina Ocampo e Adolfo Bioy Casares, já na Itália frequentava círculos literários igualmente ilustres. Foi autor de quase duas dezenas de volumes, de poesia, ficção e ensaios, boa parte publicado postumamente (ele morreu em 1978). Kelvin Falcão Klein é gaúcho (acho), crítico literário, ensaísta e professor universitário. Está radicado no Rio de Janeiro, mantém um excelente blog literário, o "Um túnel no fim da luz", e publicou o bom "Conversas apócrifas com Enrique Vila-Matas", que já registrei aqui. Pois foi exatamente de suas leituras de Vila-Matas que brotou o interesse de Falcão Klein por Rodolfo Wilcock. Durante o período em que esteve envolvido em sua tese de doutoramento Falcão Klein consultou muito material publicado em jornais e revistas por Wilcock, nunca traduzido para o português. Como nem tudo relacionado a Wilcock pode ser incluído em sua tese (que pode ser consultada aqui: clicka!), ele resolveu publicar, neste pequeno volume, algo sobre seu envolvimento afetivo e intelectual com Wilcock e sua obra. São seis capítulos curtos, onde o leitor é apresentado a este invulgar autor italo-argentino, que traduziu portentos de T. S. Eliot, Willian Carlos Willians, James Joyce, Samuel Beckett e Wittgenstein; produziu uma obra que chama a atenção pela originalidade e virtuosismo; aparentemente se dedicava a "ridicularizar a razão, a tradição e seus instrumentos" e que é pouco conhecido no Brasil. Nunca li nada dele e fiquei curioso pela associação que Falcão Klein nota entre o projeto literário de Wilcock com o do artista plástico Marcel Duchamp, no interesse de ambos pela técnica de estereoscopia (algo mais que um desejo poeticamente justo de Falcão Klein é imaginar a possibilidade de Duchamp ser o pai de Wilcock!). A peregrinação de Falcão Klein à casa onde morou e morreu Wilcock, em Lubriano, que fica a pouco menos de 100 Km de Roma, dá conta de sua determinação. O registro dessas viagens sentimentais, fruto de um envolvimento profundo com a obra de um determinado autor, são sempre interessantes. Este livro faz parte de uma coleção chamada Micrograma, cuja ambição é oferecer ao público leitor obras de grande valor, de ensaio, crítica e narrativa, que dificilmente seriam publicadas por grandes corporações. De fato o resultado alcançado por Falcão Klein é notável. Não vejo a hora de conhecer melhor Wilcock. Logo veremos. Vale!
Registro #1393 (crônicas e ensaios #253)
[início: 27/03/2019 - fim: 10/04/2019]
"Wilcock: ficção e arquivo", Kelvin Falcão Klein, Rio de Janeiro: editora Papéis Selvagens, 1a. edição (2018), brochura 14x21 cm., 68 págs., ISBN: 978-85-92989-19-4

domingo, 5 de maio de 2019

escrever ficção

Luiz Antonio de Assis Brasil, premiado autor gaúcho, mantém há mais de três décadas uma Oficina de criação literária (sempre vinculada ao curso de letras e a programas de pós-graduação da PUC-RS). Esta experiência na formação de novos escritores, aliada a sua expertise como autor de duas dezenas de peças de ficção, levou-o a editar recentemente esse seu "Escrever ficção", que como o subtítulo já denuncia, é um manual de criação literária. São nove capítulos temáticos, que tratam da identificação de quem tem - ou pode ter - a vocação de ficcionista; de como se constrói um personagem; de como se trata a questão do conflito nas narrativas; da gênese do enredo e sua estrutura; dos pontos focais que todo texto deve ter, ou seja, das vozes e tempos verbais possíveis dos textos; do lugar onde os sucessos acontecem, ou seja, do entorno das ações e eventos da trama; do tempo, sempre fugidio, onde o autor deve povoar seus personagens; dos estilos possíveis, da habilidade que pode ser cobrada de um autor; e, por fim, termina oferecendo um roteiro básico para a construção de um romance. Não são soluções ou recomendações fechadas, intransigentes, dogmáticas. Assis Brasil tenta emular aquilo que acontece com método em suas aulas, tenta resumir no livro os acertos e erros mais frequentemente observados nestas aulas e na trajetória profissional de seus ex-alunos. Para sustentar seus argumentos, Assis Brasil faz uso de muitas citações de trechos de obras de autores cujas obras são exemplares. E também dá exemplos retirados da experiência ou da obra daqueles ex-alunos. O livro enfeixa também várias, vamos dizer assim, "retrancas", que são parágrafos destacados, que sintetizam um determinado tema, como se fossem conclusões do que foi discutido sobre um assunto com uma turma ao final das aulas (óbvio, trata-se de um resumo de 30 anos de conclusões e experimentos). Essa peças, a meu juízo, de menor anão desta província, ágrafo romancista, até poderiam ser editadas à parte, numa espécie de "guia rápido de criação literária". De qualquer forma, como Assis Brasil bem lembra várias vezes ao longo de seu manual, nada substitui o tempo de leitura, e acrescento, numa ênfase minha: seja de clássicos, de obras menores, de best-sellers, de autores de quem nunca ouvimos falar, de livros tolos e mal escritos, de obras geniais e imprescindíveis. Mais uma cousa: ele lembra que seu livro oferece aos escritores em formação, seus interlocutores ideais, leitores deste volume, apenas recomendações, sugestões estilísticas e alertas generalistas. O adestramento à prática inventiva da ficção parece ser a ele uma real possibilidade. Oká. Sabemos que um escritor que se recusa a ler livros sempre estará enredado em uma prisão mental, pois terá acessíveis a si apenas um punhado de ideias e experiências. A educação literária é algo necessário, mas eu mesmo pouco acredito na ideia de que qualquer indivíduo possa escrever romances dignos de nota, por mais oficinas e cursos que faça, por mais livros que leia, palestras que ouça. Paciência. Chega dessa esquivança. Este livro do Assis Brasil é ouro puro e fino para quem quer sim entender-se com sua vocação de escritor. Vale a pena conferir. E mais não digo. Vale!
Registro #1392 (crônicas e ensaios #252)
[início: 07/04/2019 - fim: 01/05/2019]
"Escrever ficção: Um manual de criação literária", Luiz Antonio de Assis Brasil, colaboração de Luís Roberto Amabile, São Paulo: editora Schwarcz (Companhia das Letras / Penguin Random House), 1a. edição (2019), brochura 14x21 cm., 396 págs., ISBN: 978-85-359-3207-2

sábado, 4 de maio de 2019

eu vou matar maximillian sheldon

Genuíno representante dos escritores com disciplinada vocação para seu ofício é Leonardo Brasiliense, gaúcho de São Gabriel, radicado em Santa Maria, autor já premiado, e que já publicou uma dezena de bons livros. Recentemente ele lançou "Eu vou matar Maximilian Sheldon". Trata-se de um livro de contos (já li contos dele reunidos em "Corpos sem pressa", "Whatever", "Olhos de morcego" e "Adeus contos de fada", mas não de outros dois: "Des(a)tino" e "Meu sonho acaba tarde"). São dez propostas, dez histórias curtas. Há um truque confesso neles, nos contos, que é o de contar histórias cujos narradores ou buscam cumplicidade afetiva ou agridem o leitor, em busca de um efeito igualmente cúmplice, que é o da negação automática de um padrão de comportamento que poderíamos acreditar nossos, de nós leitores. Os personagens dos contos estão envolvidos atividades bem humanas, envolvidos em coisas como a expiação de culpas; o hedonismo torto das classes trabalhadoras; os fragmentos bobos que brotam dos interstícios da memória; na perda da identidade, como aquela de alguém que se vê só num hospital; a solidão entranhada de alguém que se imagina povoado por um ser que o consome e justifica seus erros; a perda de tempo que é conviver com alguém que se despreza, mas que não se quer perder; a atividades bizarras, como a de querer transar logo após tentar salvar a vida de alguém que morre; a ilusão provocada por advinhos e outros charlatães em nossas vidas, desde a infância até a velhice; o censo cotidiano de nossas misérias, perdas, erros; a  busca por uma expiação ou ajuda profissional que não mitigará o fracasso inerente de uma relação. São dez bons contos, contos inventivos, muito bem escritos, de alguém que sabe o quê está fazendo de seu talento e arte. Evoé don Leonardo, evoé. Longa vida a esse livro de estreia da editora Coralina, que é lá da terra do arroz, Cachoeira do Sul. Vale!
Registro #1391 (contos #161) 
[início: 19/04/2019 - fim: 21/04/2019]
"Eu vou matar Maximillian Sheldon", Leonardo Brasiliense, Cachoeira do Sul: Editora Coralina, 1a. edição (2019), brochura 14x21 cm., 128 págs., ISBN: 978-85-80360-01-7

sexta-feira, 3 de maio de 2019

carvalho, problemas de identidad

Carlos Zanón é escritor e roteirista espanhol, autor premiado de romances policiais. Recentemente o poderoso grupo editorial Planeta o convidou para escrever um romance que desse continuidade às aventuras do mítico detetive Carvalho, invenção genial de Manuel Vázquez Montalbán, que morreu em 2003. Quem já leu algum dos livros de Montalbán sabe do tamanho da responsabilidade. Carvalho surge em 1972, ainda sem muitos dos predicados que acostumamos associar a ele, em "Yo maté a Kennedy". É protagonista de pelo menos vinte e cinco romances ou livros de contos de Montalbán, até seu encantamento em "Milênio", de 2004, e algumas reencarnações recompiladas de jornais e publicadas nos "Cuentos negros", de 2011. Zanón opta por imaginar em seu livro um outro Pepe Carvalho, um detetive real cuja expertise foi utilizada por Montalbán na gênese do Carvalho original. Trata-se de uma espécie de jogo: o Carvalho de Montalbán perdeu-se como personagem em "Milênio", após sua volta ao mundo fugindo da Interpol, e o Carvalho de Zanón continua a viver em Barcelona, lembrando episodicamente de como "El escritor", ou seja, Montalbán, usava suas histórias reais nas narrativas ficcionais que publicava. Os sentimentos são ambíguos. Apesar de feliz por não mais ler seu nome associado a um personagem de ficção e precisar dar explicações a gente curiosa, ele sente saudades das conversas que tinha com o homem Montalbán, o jornalista e intelectual dinâmico que era. Enfim, funciona como explicação para essa nova metamorfose do personagem. De qualquer forma "Carvalho: problemas de identidad" demora um pouco para prender o leitor. Estamos no verão de 2017, às vésperas do plebiscito pela separação da Catalunya que tantos desdobramentos já experimentou, e que de certa forma fraturou toda a Espanha (as eleições da semana passada estão aí como exemplo). As obsessões e temas de Montalbán aparecem como em uma pátina ou palimpsesto: os turistas que passeiam pelas Ramblas catalanas, Biscuter e sua ambição gastronômica, a cresecente presença de chineses em sua Barcelona fundamental, a queima ritual de livros, as saudades de Charo, as relações com a comunidade européia, as relações autofágicas entre direita e esquerda, a rivalidade entre Madrid e Barcelona, os contatos com a polícia e o submundo, as receitas, as citações eruditas disfarçadas, o separatismo catalão, as preocupações com o destino político e econômico da Espanha. O Carvalho de Zanón continua sarcástico, amargo, abusando do cinismo, talvez com menos vigor físico e mais problemas de saúde, enredado em relações amorosas confusas e desgastantes. Os crimes que ele investiga são, a exemplo dos romances originais, o que menos importam na narrativa, são peças acessórias que servem para conduzir o ritmo do livro, mas que não são foco de real interesse. Carvalho precisa entender as razões para a morte de uma velha senhora e sua neta ao mesmo tempo que investiga o desaparecimento de uma prostituta em Montjüic. Afinal, o livro funciona como homenagem a Vázquez Montalbán e também funciona como romance policial independente. Vamos a ver se esse projeto terá continuidade, se haverá outros Carvalhos no futuro. Em tempo: Sempre vale a pena atualizar-se nas cousas de Montalbán acompanhando o site Vespito. Vale!
Registro #1390 (romance policial #82) 
[início: 13/03/2019 - fim: 23/03/2019]
"Carvalho: problemas de identidad", Carlos Zanón, Barcelona: Editorial Planeta, 3a. edição (2019), capa-dura 16x24 cm., 350 págs., ISBN: 978-84-08-20148-9

quinta-feira, 2 de maio de 2019

cuestión de fé

Os sucessos de "Questión de fé", décimo-nono volume da série de Donna Leon onde é protagonista o comissário Guido Brunetti, se passam no início do verão, quando o calor parece mais forte e inclemente. Um velho amigo alerta Brunetti sobre crimes nos quais estão envolvidos membros do judiciário e do setor imobiliário veneziano. Oficialmente não há como ele investigar o assunto, mas quando um funcionário do tribunal onde os tais crimes acontecem é morto, Brunetti tem a oportunidade de denunciar corruptos e corruptores. Claro, não há exatamente justiça no processo, apenas uma interrupção, um recuo tático dos malfeitores, uma substituição dos agentes dos vários crimes. Talvez só o sistema judicial italiano seja mais podre e corrupto que o brasileiro. E é fato que onde há dinheiro e poder há canalhas, pessoas suficientemente venais e imunes a um fiapo de caráter. Em paralelo a esta investigação mais séria, Brunetti e a sempre eficiente secretária Elettra ajudam o investigador Vianello com um crime menor, que envolve uma de suas tias, enganada por um estelionatário especializado em fraudar pessoas idosas e com problemas de saúde. Brunetti, Paola e os filhos planejavam férias nos Alpes, em uma região mais fresca e afastada dos turistas, mas ele precisa ficar em Veneza por conta de dois crimes. Neste volume ganha destaque uma nova comissária, Claudia Griffoni, tão proba e diligente quanto Brunetti, um novo contraponto aos irresponsáveis vice-questor Patta e seu lugar tenente Scarpa. Há muitas cenas em bares, nos quais Brunetti e seus comandados refrescam-se e fazem refeições ligeiras, quase sempre os deliciosos tramezzini italianos. Com Paola, sempre cúmplice, Brunetti discute as circunstâncias dos crimes, os livros que estão a ler, ela sempre Henry James, ele os clássicos latinos, e também algo sobre o desemprego endêmico italiano, sobre o fato de milhões de jovens não alcançarem jamais um emprego fixo, um problema conjuntural e grave daquela sociedade. É sempre uma alegria ler Donna Leon. Mas vamos em frente. Vale!
Registro #1389 (romance policial #81) 
[início: 16/04/2019 - fim: 18/04/2019]
"Cuestión de fé" (Brunetti #19), Donna Leon, tradução de Ana Maria de la Fuente, Barcelona: Editorial Seix Barral / Booket #2340 (Grupo Planeta Manuscrito), 1a. edição (2011), brochura 12,5x19 cm., 315 págs., ISBN: 978-84-322-5094-1 [edição original: A Question of Belief (Zürick: Diogenes Verlag AG / Penguin Randon House Group) 2010]

quarta-feira, 1 de maio de 2019

desenhos invisíveis

(Gervásio) Troche é um artista plástico uruguaio. Ele viveu em vários países, inclusive no Brasil, e publica em jornais e revistas mundo afora. Encontrei esse livro de ilustrações dele nas escadarias do viaduto Otávio Rocha, em Porto Alegre, em frente ao agitado Bar Justo, em uma feira gráfica de artista independentes. Os desenhos se defendem sozinhos. Não há palavras, e de fato elas não são necessárias, pois o resultado alcançado por Troche realmente é forte, convincente, que cobra reflexão do experimentador daquela linguagem. Ele descreve o cotidiano de uma cidade, olha frequentemente para o céu, para as estrelas, equilibra-se em um trapézio, empilha prédios, experimenta os elementos (a noite, a chuva, a luz e a sombra, os sons e a música, as folhas e as árvores). Os homo sapiens que ele desenha não são exatamente solitários, tristes, mas há uma solidão entranhada neles. Os desenhos parecem versões em preto e branco das pinturas mais icônicas de Edward Hopper. Um leitor curioso pode apreciar algo de sua produção plástica num blog (portroche blogspot) ou em sua página no instagran (portroche instagran). Vale a pena, mesmo. Vale!
Registro #1388 (hq´s cartuns e mangás #73)
[início - fim: 21/02/2019]
"Desenhos invisíveis", Troche, São Paulo: editora Lote 42, 1a. edição (2014), brochura 17x22 cm., 160 págs., ISBN: 978-85-66740-07-3 [edição original: Dibujos (Buenos Aires: Editorial Sudamericana / Penguin Random House Mondadori) 2013]