terça-feira, 31 de dezembro de 2019

balanço de 2019

Li bastante em 2019. Tantos livros quanto em 2018, muito embora naquele ano eu tivesse deixado pelo menos uns quinze volumes lidos sem registrar, cansado que estava no final. Neste 2019 alcancei registrar tudo que de fato li. As promessas literárias robustas anteriores, de 2017 para trás (reler o Cervantes, terminar o Tristram Shandy, ler as muitas novas traduções dos russos, terminar um fundamental Canetti, voltar com afinco aos gregos e aos mitos, etc e tal), restaram perdidas. Mas, assim como em 2018, fiz desvios felizes, encontrei bons veios literários, variados títulos, cousas que fizeram à essa alquebrada alma um grande bem. Neste ano produzi registros de leitura de 18 romances; 25 de volumes de crônicas ou de ensaios; 9 de contos; 21 de poesia; 16 de romances policiais; 9 de memórias, perfis ou relatos; 8 de gastronomia; 4 de livros de arte, 3 boas peças de teatro e 13 de outras classes de divertimentos (cartas, aforismos, técnicos, fotografias, catalogos de exposições, cartuns e mangás, infanto-juvenis). Li muita poesia neste 2019, como há muito não fazia. Continuei lendo os bons ensaios editados pela Âyiné. Li também minha boa cota de 33 livros em espanhol, aproximadamente 26% do total, mas apenas seis livros em inglês. Continuei com o bom ritmo de leituras dos romances policiais de Donna Leon, senhora de Veneza e da fina ironia. Li dois bons Paulo Scott e dois bons Joca Terron, dois autores que estão produzindo cousas muito mais robustas que a média dos demais autores brasileiros. Li boas traduções de autores holandeses, engendradas por Daniel Dago. O tradicional Ponto de Cinema (de Santa Maria), fechou definitivamente num 17 de junho, um dia após o Bloomsday, evento que não pude organizar adequadamente neste ano por variados motivos, inclusive o mais fundamental, a ausência do Ponto de Cinema, que nos recebia desde 1996, terceiro ano de nossos festejos locais. De qualquer forma, Doña Lourdes e Doña Ana estão em um novo local, o Bar da Casa, e o Bloomsday Santa Maria 2020 acontecerá nos domínios destas duas mulheres altas, melhorado e renovado. Minha média histórica de leitura segue estabilizada. Nos treze anos do blog li cerca de 114 volumes por ano, mais de 9 por mês, 2 por semana, um terço de livro por dia. Já há 1480 registros de leitura no "Livros que eu li" (desde 01 de janeiro de 2007). Resumidamente posso dizer que são 862 de ficção (romances, novelas, contos, poesia e peças de teatro); 373 de não ficção (ensaios, crônicas, biografias, perfis, didáticos e catálogos de arte) e 245 de divertimentos variados, absolutamente não classificáveis em categorias simples, mas todos eles de alguma forma prazerosos. Esse foi um ano em que dois prêmios Nobel de literatura foram outorgados (para o austríaco Peter Handke e para a polonesa Olga Tokarczuk); em que a aventura febril das livrarias Saraiva e Cultura alcançou a seara do estelionato, pois ambas jamais irão pagar o que devem a centenas de indivíduos e a dezenas de pequenas editoras; foi o ano em que fiz apenas minha cota regimental de viagens pelo Brasil para as avaliações do MEC. Helga e eu fomos as praias no verão e ficamos em casa nas férias de inverno. Morreu o genial Andrea Camilleri, de quem já li tantas maravilhas (agora espero a publicação do Riccardino, seu réquiem já há tanto tempo escrito, o livro sobre a morte do comissário Montalbano). Já se passaram três anos da morte de doña Vic e dois do primeiro e verdadeiro Guina. No final de 2019 morreu Salen, nosso Buda revivido e privado, que tantas alegrias nos deu. Das leituras de 2020 pouco sei dizer, sei antecipar. Os livros irão me encontrar, como sempre fazem. Organizei as estantes durante as festas de fim de ano. Tenho pelo menos 4 mil livros nas prateleiras, nas estantes, nos nichos, ao alcance da mão e do acaso. Sei que eles me encontrarão por aí, brotarão dos guardados, fazer-se-ão lembrados por uma epifania qualquer, como sempre acontece. Sei também que uma legião de escravos mentais e a turma podre do Alzheimer moral certamente continuará a tentar me incomodar, mas Humphrey Bogart já me ensinou que não se deve perder tempo desprezando alguém, basta esquecê-los, mantê-los por profilaxia bem distantes. Bueno. É quase hora de fazer-se ao mar bravio de 2020. Já é tempo, e, como já disse no ano passado: Thalatta! Thalatta!

sábado, 28 de dezembro de 2019

os judeus e as palavras

Esse livro acompanhou-me por muitos meses. Comecei a ler ainda em janeiro, semanas após a morte de Amós Oz, há exatamente um ano, num 28 de dezembro como hoje. De Oz, seminal escritor israelense, que tantas maravilhas produziu, só registrei aqui os poucos livros que li após 2007: Sumchi, Escenas de la vida rural, A caixa-preta, e El mismo mar. Todavia, logo o esqueci em algum canto, "Os judeus e as palavras" não era o tipo de livro que se deixava ser lido próximo ao mar e sob sol forte onde eu estava (muito embora deva ter sido escrito nestas condições, pois Oz vivia em Tel Aviv em seus últimos anos). Depois, no final de maio, passei a ler com disciplina, mas li aos poucos, tentando acompanhar bem as reflexões de Amós Oz  e sua filha, Fania Salzberger, uma professora universitária. Se trata-se de uma obra produzida a quatro mãos, o leitor aprende aos poucos a distinguir as ênfases particulares de cada um deles, mesmo quando não é lembrado explicitamente por meio da formula "o romancista entre nós" ou "a historiadora entre nós", que aparece várias vezes no livro. O volume é dividido em quatro capítulos que tem aproximadamente a mesma extensão, 40-60 páginas, e um curto epílogo. Em "Continuidade" é desenvolvido o argumento principal do livro, sua ambição grafada na apresentação: descrever como antes é o amor pelas palavras e a familiaridade precoce com a conversa, o diálogo, a experiência do debate, o que define especialmente o povo judaico de todos os demais. Dito de outra forma, eles argumentam que antes do étnico e do político, o que define os judeus é a história comum e sua interpretação, coletiva e sempre reconstruída, que é passada de indivíduo a indivíduo, de família a família, de rabino a rabino, de yeshiva a yeshiva, de Shtetl a Shtetl. No segundo capítulo, "Mulheres vocais", para mim o mais interessante do conjunto, os Oz defendem que nenhuma outra sociedade, antes do início da modernidade, deu voz às mulheres, as registrou em documentos, as mitificou em histórias tradicionais (ao menos nenhuma outra tem um conjunto tão poderoso de heroínas para cantar e louvar, desde o início dos tempos). Essas poderosas vozes femininas, que ecoam da Torá e do Talmude, são as vozes de uma miríade de mulheres que transmitiram desde sempre a seus filhos a condição e particularidade do povo judaico, alicerçando sua perenidade. "Tempo e atemporalidade", terceiro capítulo do livro, gravita em torno da evolução das palavras, da etimologia do hebraico, de como os jovens, estimulados a estudar a Torá, aprendiam a lembrar, a aprender, a discutir. No quarto e último capítulo, "Cada pessoa tem um nome; ou os judeus precisam do judaismo?", o tom é ligeiramente diferente. Oz e sua filha provocam o leitor a entender a separação entre o hebraico moderno e o hebraico bíblico, a separar a cultura israelita contemporânea da religião e das tradições, entender que o Israel, como estado, é algo bem diferente que o judaismo praticante em todos os lugares do mundo contemporâneo. Que judaismo é uma cicilização. No epílogo os Oz sugerem que o leitor tente imaginar ter lido este livro substituindo sempre  a palavra judeu pela palavra leitor. E é para este leitor - o leitor capaz de se incluir nesta aventura - que o livro foi imaginado. O leitor curioso pode fazer bom uso das extensas notas (chamadas aqui de fontes); de um fundamental glossário e de um detalhado índice onomástico. Apesar de ter terminado de ler há três ou quatro meses, resolvi finalizar o ano com este registro. O formato de interlocução louvado no livro é algo que deveríamos fazer. Claro, vivemos tempos terríveis, onde apenas ouvir os argumentos de outros parece ter se tornado impossível, mas se temos algum apreço pelas eventuais novas gerações, deveríamos ter essa crença na possibilidade de que alguma verdade ou valor possam ser transmitidos, de pais para filhos; de amigos para amigos; de vizinhos a vizinhos; e, até mesmo, entre completos desconhecidos. Talvez para isso - como se diz em um velho filme do Woody Allen - precisássemos de ter a capacidade de amar (pois o universo é indiferente aos homo sapiens). Paciência. Vamos em frente. Em 2020 tem mais. Vale! 
Registro #1480 (crônicas e ensaios #265) 
[início: 30/05/2019 - fim: 07/09/2019]
"Os judeus e as palavras", Amós Oz, Fania Oz-Salzberger, tradução de George Schlesinger, São Paulo: editora Schwarcz (Companhia das Letras / Penguin Random House), 1a. edição (201r), brochura 14x21 cm., 251 págs., ISBN: 978-85-359-2523-4 [edição original: Jews and Words (Berlin: Jüdischer Verlag Berlin) 2013]

segunda-feira, 23 de dezembro de 2019

patuá

Mell Renault, mineira de Belo Horizonte, oferece neste seu "Patuá" três conjuntos de propostas poéticas. No primeiro conjunto encontramos 37 poemas curtos, livres como a vida, que tratam das cousas da terra, dos elementos e dos fenômenos naturais, dos animas e das plantas, das estações e passagem do tempo. São construções que ambicionam congelar momentos, situações corriqueiras e mágicas da vida. No segundo conjunto a forma é distinta. Mell Renault faz uso de registros aforísticos (36 é o número exato), registros de estados de ânimo, reflexões curtas que mesclam o sonho e a memória, de um eu interior da poeta que se deixa observar, que parece filtrar-se nas palavras, que se declara, se posiciona. No terceiro conjunto, novamente com versos livres convencionais (38 deles), é onde o eu da poeta e as coisas interagem (é uma seção menos cerebral e distante que aquela primeira, onde apenas a abstração dos conceitos parecia ter força). Há algo mais visceral e orgânico nesta última seção, fala-se das  formas da água, das aves, flores e árvores, de um ser pensante que se relaciona de fato com a natureza, não apenas a observa ou descreve. A edição da Coralina é muito bonita, inclui várias ilustrações abstratas em preto e branco, assinadas por Carlos Figueiredo. É isso. Vamos em frente. Vale!
Registro #1779 (poesias #122) 
[início: 01/12/2019 - fim: 09/12/2019]
"Patuá", Mell Renault, Cachoeira do Sul: Editora Coralina, 1a. edição (2019), brochura 14x21 cm., 132 págs., ISBN: 978-85-80360-07-9

quarta-feira, 18 de dezembro de 2019

me encontre

Inadvertidamente, como às vezes acontece comigo, interessei-me pela capa de um livro, comprei-o e ato contínuo comecei a lê-lo, sem preocupar-me muito com as circunstâncias de sua gênese. Perto do final da leitura soube que esse "Me encontre" é a continuação de um outro romance de André Aciman, uma produção quase de encomenda. O livro original é "Me chame pelo seu nome", foi lançado em 2007 e adaptado para o cinema, alcançando grande sucesso (a versão cinematográfica ganhou o Oscar de melhor roteiro adaptado de 2018). Acontece, fazer o quê? Agora, retrospectivamente, e sem ter lido o romance que deu gênese a este, até achei interessante o jogo de ler algo sobre personagens que não conhecia, cujas aventuras/vidas não são tão detalhadamente descritas pelo autor como usualmente o são num livro em que elas aparecem pela primeira vez. Apesar de tudo parecer estranho na narrativa (as mudanças temporais, os nomes que surgiam e se metamorfoseavam, as ilações mentais que fazia, tentando acompanhá-la) alcancei terminar o livro sem muitas dificuldades. Não me pareceu nenhuma Basílica literária, algo que merecesse uma missa (à la Henrique IV). E não acho que seja um livro que se defende sozinho. É fraco, melhor dizendo. "Me encontre" é bastante esquemático, dividido em quatro sessões, que fazem alusão a aspectos das formas musicais, que devem ser caras à melômanos, ou seja, aos amantes da música: Tempo, Cadenza, Capriccio e Da Capo. Na primeira das quatro partes um velho senhor, professor universitário recentemente divorciado, chamado Samuel Perlman, conhece uma moça chamada Miranda em uma viagem de trem, entre Florença e Roma. Apesar da grande diferença de idade, os dois parecem ser igualmente arrebatados amorosamente, numa espécie de encontro de almas fugidias. Em poucos dias eles planejam mudar de vida, viver juntos em um paraíso à beira mar, radicalmente envolvidos. Esta parte lembrou-me cousas de Louis Begley, de Evelyn Waugh, de Peter Mayle. Na segunda parte, de quase a mesma extensão, porém um tanto menor, acompanhamos um fragmento da vida de Elio, filho de Samuel, um músico que participa de concertos e dá aulas em um conservatório parisiense. Elio se envolve com um senhor bem mais velho que ele, chamado Michel. Apesar da simetria temporal entre os dois envolvimentos (de Samuel e Miranda, de Elio e Michel), enfim, entre pessoas de idades bem diferentes, neste o envolvimento amoroso parece ser antes cerebral que espiritual, antes fruto de um acaso bobo que uma necessidade, pois Elio lembra-se, com crescente melancolia, de um sujeito com quem havia se envolvido no passado, chamado Oliver. Na terceira parte o autor se afasta da Roma e Paris das duas primeiras partes e nos transporta à New York, onde Oliver é um professor universitário de meia idade, prestes a se aposentar, que tem filhos já adolescentes e vive um relacionamento aberto, onde a sexualidade dele e de sua companheira é explorada sem barreiras morais. Ao final de uma sonolenta festa de despedida dos amigos americanos, Oliver se pergunta se não é hora de voltar à Europa, confessando sua paixão por uma pessoa (que só pode ser Elio), que lá abandonou, mas que ritualmente evoca todos os anos. Esta terceira parte é bem curta, poucas páginas maior que a quarta e última, na qual acompanhamos as reflexões de Elio, talvez naquela casa à beira mar, talvez com seu pai, Samuel, e sua jovem madrasta, Miranda, quando apresenta o filho deles, um jovem Oliver, a seu velho amante, o professor aposentado Oliver. Não estou certo, esses cruzamentos de afetos e acontecimentos são sempre brevemente descritos no livro, pode ser que eu tenha confundido as alusões e os nomes. Pouco importa. Não sei se quero ler a primeira parte das aventuras mundanas deste povo. Falta algo na história, alguma tragédia real, comum, mais corriqueira e possível, descolada deste mundo inverossímil, artificial demais. Falta estofo. Segue o baile. Vale! 
Registro #1478 (romance #371) 
[início: 23/11/2019 - fim: 25/11/2019]
"Me encontre", André Aciman, tradução de Alessandra Esteche, Rio de Janeiro: Editora Intrínseca, 1a. edição (2019), brochura 14x21 cm., 272 págs., ISBN: 978-85-510-0582-8 [edição original: Find me (New York: Farrar, Sgtraus and Giroux / Macmillan Publishers Ltd / Holtzbrinck Publishing Group) 2019]

domingo, 15 de dezembro de 2019

iluminuras

Vanderley Mendonça é um agitador cultural, um miglior fabbro nascido no Ceará, que navegou como Odisseu por várias cidades deste orbe e vive hoje em São Paulo; que por vezes mostra suas habilidades como designer, noutras como tradutor, noutras como poeta ou jornalista, e também como editor (de sua já icônica Demônio Negro). Já registrei vários livros editados por ele (Lustra, de Erza Pound; Poesia vista, e 99 poemas, do Brossa; Poemóbiles, de Augusto de Campos e Júlio Plaza, entre outros). Esse "Iluminuras" é o primeiro volume dele que li e tenho a chance de resenhar aqui. São dois conjuntos de poemas. O primeiro, correspondendo a um terço do volume, são de cousas dele mesmo; o segundo de traduções feitas por ele de invenções engendradas por outras pessoas. Seus poemas são sempre curtos, sintetizam ideias, reflexões, vivências, formas de pensar a vida. Em alguns destes poemas ele registra sua interlocução com outros poetas: o português Ernesto M. de Melo e Castro, o paulistano Augusto de Campos, o santista Marcelo Ariel, talvez a paulista Pagu. Ele conversa também com uma musa diáfana, com a cidade de São Paulo, com a língua catalã, na qual imaginou vários poemas, bem antes de transcrevê-los em português. O segundo conjunto do livro corresponde a fragmentos, pequenas epifanias, estalos poéticos, partes de poemas que ele chama de Iluminuras (" ... aquelas partes dos poemas que me guiaram ao longo da vida como leitor e que me dão o dom de luzir quando falo delas", explica ele mesmo). Estas Iluminuras são de aproximadamente trinta autores diferentes, pessoas que viveram num longo arco de tempo, desde o distante século XII até este nosso terrível século XXI, autores que lhe são particularmente caros. São propostas tradutórias do provençal, do catalão, do francês, do italiano, do alemão, do inglês, do polonês. Esses fragmentos provocam o leitor a voltar à primeira seção do volume, a reler os poemas dele, buscar neles a inspiração e o engenho original. Apesar de ser um volume muito curto, coisa de cento e poucas páginas, fiquei várias semanas com ele à mão, retomando uma ou outra passagem, comparando com as outras coisas que estava lendo (cousas que, ai de mim, teimo em não terminar e registrar aqui, covarde que sou). Transcrever todos os poemas aqui não posso, mas deixo sim um fragmento que agora sei de cor: "Não há arte sem vida, disseste. / Por que a arte é contra a morte. / A arte reinventa a vida / para pensar o novo de novo virar começo. (...)". Sim, não há arte sem vida; morrer é fácil, viver é difícil. Evoé Mendonça, Evoé. Vamos em frente. Vale! 
Registro #1477 (poesias #122) 
[início: 11/11/2019 - fim: 15/12/2019]
"Iluminuras", Vanderley Mendonça, São Paulo: Editora Patuá, 1a. edição (2012), brochura 14x21 cm., 138 págs., ISBN: 978-85-64308-86-6

quarta-feira, 11 de dezembro de 2019

a pane

Como já disse num outro registro, foi a arte da capa que me fez comprar este volume, que reúne duas narrativas de Friedrich Dürrenmatt. O romance "A Promessa" já registrei aqui. A novela (ou curto romance policial) "A pane" li uns dias depois, mas só agora alcanço escrever sobre ela. Essa segunda história não me impressionou tanto quanto a primeira, mas é uma boa narrativa psicológica. Em algum momento, bem no começo a bem da verdade, você eventualmente captura a chave literária do que se conta, e só segue até o final por curiosidade, para saber como o autor vai chegar àquele desfecho previsível. Há algo que lembra os contos fantásticos de Edgar Allan Poe. O carro de um caixeiro viajante suíço quebra perto de um vilarejo, cujos hotéis estão sem vagas. Alguém sugere a ele que um velho senhor dos arredores recebe eventualmente em sua casa pessoas que estejam em situações similares à dele. Inicialmente interessado apenas em aproveitar a pane de seu carro para procurar companhia amorosa na cidadezinha, o caixeiro viajante decide aceitar a hospedagem e o convite para um jantar que lhe faz seu anfitrião, um juiz aposentado. Dois velhos amigos do juiz também comparecem ao jantar. Ao caixeiro viajante é feito também o convite para participar de um jogo recorrente que os três octogenários amigos organizam nestas noites, o jogo de simular o julgamento de uma pessoa, aplicando a ela todo o implacável rigor de suas leis morais, não exatamente legais. No caso, obviamente, e por exclusão, cabe ao caixeiro viajante a função teatral de réu. Mais não conto, para não roubar o leitor o eventual prazer de ler esta curta novela. O que se destaca na narrativa são as descrições dos pratos servidos no jantar e, sobretudo, os vinhos que são nele servidos. Cada um deles dignos das recepções mais refinadas. O assombro do caixeiro viajante é similar àquele que experimenta o velho oficial no conto "A festa de Babette", de Isak Dinesen/Karen Blixen. Vamos em frente. Vale! 
Registro #1476 (romance policial #93) 
[início: 23/08/2019 - fim: 30/08/2019]
"A pane", Friedrich Dürrenmatt, tradução de Marcelo Rondinelli, São Paulo: Estação Liberdade editora, 1a. edição (2019), brochura 13,5x21 cm., 220 págs., ISBN: 978-85-7448-300-9 [edição original: Die Panne: Eine noch mögliche Geschichte (Zürick: Arche / Diogenes Verlag AG / Penguin Randon House Group) 1955]

domingo, 8 de dezembro de 2019

a morte e o meteoro

Uma imaginação feroz é marca de todos os romances de Joca Reiners Terron que já li ("Não há nada lá", de 2001; "Guia de ruas sem saída", de 2012; "A tristeza extraordinária do leopardo-das-neves", de 2013 e "Noite dentro da noite", de 2017). Seu curto e potente romance mais recente, "A morte e o meteoro", lembrou-me argumentos típicos de séries de ficção científica e mistério antigas, cousas como "Além da imaginação", dos anos 1960, ou Arquivo X, dos anos 1990. Claro, a ambição de Terron é maior, o produto que oferece ao leitor mais sofisticado e afeito ao jogo literário propriamente dito, tem estofo e é pertinente a nosso terrível início de século XXI. Seus narradores (um antropólogo mexicano, em um futuro próximo, e um dublê de antropólogo brasileiro, nos anos 1980) contam, em quatro curtos capítulos, sucessos que gravitam a história de uma tribo de indígenas da Amazônia profunda, os kaajapukugi, desde quando são contatados pela primeira vez por um deles, um sujeito chamado Boaventura, até seu extermínio ritual no exílio, no México. O futuro próximo que nos cabe, imaginado no livro, se não pode ser exato, é muito provável (todo bom escritor tem algo de de antena da raça, já nos ensinou o velho Erza). Os dois narradores de Terron  têm muito que os une, compartilham perdas e danos na vida pessoal, todavia também são muito diferentes, na idade, na ambição, na origem étnica e na formação acadêmica. O leitor é provocado a acompanhar a descrição de um mundo em que tudo viaja a um brutal fim da noite, tudo parece desmoronar, ser pulverizado: os indígenas e a floresta; as tradições e a cultura; a moral e a vida acadêmica; a possível vida em sociedade e a brutalidade vivida nas fronteiras; a memória e a tecnologia; e, até mesmo, o neo colonialismo que nos resta, o da exploração do espaço. Terron sabe encantar o leitor com uma linguagem fluida, de sonho, quase poética, que emula tanto a intoxicação/alucinação que os dois antropólogos experimentam várias vezes no livro, quanto os desvios que a narrativa faz, serpeante como a dos rios amazônicos.  Não se trata de entretenimento fácil, escapismo num universo de fantasia, malabarismo de paradoxos históricos e sociológicos, cousas que são comuns na literatura brasileira contemporânea. Bueno. Só sei que eu mesmo preciso ler certos livros antigos de Joca Terron: "Curva do Rio Sujo" e também "Do fundo do poço se vê a lua", por exemplo. Se um necessário meteoro não nos atingir no futuro, talvez, é algo que certamente farei. Logo vamos a ver. Vale! 
Registro #1475 (romance #370) 
[início: 17/10/2019 - fim: 21/10/2019]
"A morte e o meteoro", Joca Reiners Terron, São Paulo: Editora Todavia, 1a. edição (2019), brochura 13,5x21 cm, 116 págs. ISBN: 978-656-80309-50-4

sexta-feira, 6 de dezembro de 2019

los cuentos de la peste

Além de habilidoso romancista, inventor de histórias igualmente cativantes e fortes, Mario Vargas Llosa também aventurou-se pelo teatro ao longo de sua carreira literária, tendo publicado pelo menos uma dezena de peças. "Los cuentos de la peste" é a mais recente. Foi montada pela primeira vez em janeiro de 2015, no Teatro Español de Madrid, sob direção de Joan Ollé e contou com o próprio Llosa atuando. A peça é baseada no "Decameron", de Giovanni Boccaccio. Llosa transporta o leitor/espectador para os arredores de Florença, em meados do século XIV, quando eclodiu a peste negra, que tantas vidas cobrou. A peça é dividida em duas partes ou atos, de dez cenas cada um. Assim como no original de Boccaccio, a eclosão da peste faz com que um grupo se isole e, de certa maneira, sobrevivam à doença inventando histórias, inventando mundos. A literatura funciona como metáfora para a fuga da realidade, para a experiência de viver em fantasia destinos que jamais viveríamos. Na peça de Llosa são apenas cinco os atores (enquanto para Boccaccio eram dez, o dobro). Nenhum deles é de fato quem afirma ser: O duque Ugolino, também é um covarde que fugiu da luta nas cruzadas, que nunca foi capaz de amar; Giovanni Boccaccio, apenas um inquisitor cruel de seu tempo, não um poeta; Aminta, condessa de la Santa Croce, uma princesa muçulmana, enganada por homens vis; Pánfilo, um ator mambembe travestido de monja; Filomena, uma monja travestida de atriz mambembe. A bem da verdade cada um deles passa por diferentes metamorfoses nos contos que contam na peça, nos vinte esquetes teatrais em que a peça é dividida, assumindo papéis que, assim como um caleidoscópio, multiplicam a luz, as imagens, as histórias. Os atores falam de questões de seu tempo, do medo da morte, do amor e do desejo, das relações entre distintas classes sociais, do destino, de suas biografias inventadas e por inventar, das mentiras cotidianas que sustentaram no passado. Ao enganarem a peste, contando os contos, livraram-se da morte, mas também da ilusória existência de seus passados. Será possível voltar à realidade? Será tolerável viver uma vida sem mentiras? No final da peça Boccaccio sabe que deve agora escrever seu "Decameron", na língua franca do povo, o italiano, não no latim de seus poemas. A vida imaginada e a vida vivida, a ficção e a realidade, serão plasmadas naquele livro. De certa forma, Llosa está falando de nosso mundo contemporâneo, das infinitas formas que utilizamos para fugir das pragas reais e metafóricas que vivemos, das insuportáveis e cruéis facetas da vida em sociedade, da farsa que praticamos nas redes sociais, do autoengano, das manipulações à qual tão alegremente nos submetemos e de forma tão desprezível praticamos contra nossos semelhantes. Que jogo mágico e interessante Mario Vargas Llosa nos oferece. A edição é muito bonita, com muitas reproduções fotográficas da montagem original da peça, fotografias assinadas por Ros Ríbas. Lembrei dos dias em que morei em Madrid, jovem neófito e necessariamente deslumbrado, das poucas peças e apresentações teatrais que vi, inclusive lá no Teatro Español, que fica justamente na icônica Plaza de Santa Ana, ai de mim. Vale! 
Registro #1474 (drama #17) 
[início: 07/11/2019 - fim: 12/11/2019]
"Los cuentos de la peste", Mário Vargas Llosa, fotografias de Ros Ríbas, Cíudad Autônoma de Buenos Aires: Aguilar, Altae, Taurus, Alfaguara / Penguin Random House Grupo Editorial, 1a. edição (2015), brochura 14x23 cm., 280 págs., ISBN: 978-987-738-029-3

terça-feira, 3 de dezembro de 2019

cara de cavalo

Neste pequeno volume da 7Letras encontramos seis contos curtos de Pedro Dutra Pedra, autor maranhense de quem nunca havia ouvido falar. São propostas inventivas, que se destacam pela linguagem, pelo rico e variado vocabulário, pelo controle do tempo nas narrativas. "O gigante Adamastor" conta a história de um jogador experimentado, mas que não controla seu ciúme, numa Rio de Janeiro de sonho e lenda. Em "Rosas vermelhas" acompanhamos as confidências de dois irmãos, um médico e outro juiz, imediatamente após a prisão do médico por ter cometido um crime, num lugar do Nordeste brasileiro (lembrei do tom de "O fim do ciúme", narrativa curta de Proust). "Sorriso sem lábios" é uma fragmentada história de destinos, de como alguns indivíduos parecem condenados previamente a toda sorte de azares, num subúrbio de uma cidade que talvez possa ser gaúcha, talvez carioca, mas isto não importa muito. "Traio meu marido" é uma espécie de versão literária de um testemunho, de uma confissão, o relato de uma menina/mulher que flerta num mundo masculino, de pessoas que jamais a entenderão honestamente. Em "Meninas" é da vida sexual e planos para o futuro de três irmãs que se fala, observa-se que os relacionamentos delas parecem seguir um carrossel de hormônios e de competição, e também de acasos. Em "Cara de Cavalo", que dá nome ao volume, narra-se a volta de uma mulher a uma cidade após quinze anos afastada, por conta da venda do antigo casarão de sua família; acompanhamos como todos os moradores do lugar emitem opiniões sobre essa mulher, mas o leitor sabe que nenhum deles está perto da verdade, do enigma completo que o é para eles. Não posso dizer que todos os contos me conquistaram. "O gigante Adamastor" é muito bom; "Sorriso sem lábios" é muito chato; os demais são corretos, se destacam pelo estilo e domínio do tempo do jogo literário. Vamos a ver o que Pedro Pedra inventará na próxima vez. Vale!
Registro #1473 (contos #168) 
[início 12/11/2019 - fim: 14/11/2019] 
"Cara de cavalo", Pedro Dutra Pedra, Rio de Janeiro: 7Letras1a. edição (2019), brochura 14x21, 109 pág. ISBN: 978-85-421-0825-5

sábado, 30 de novembro de 2019

nada se vê

Há livros que nos encantam não apenas pelo conteúdo, informações e conceitos que por meio deles aprendemos. Há aqueles que oferecem uma forma diferente de entender as coisas, algo distinto do convencional, que aguça nossos sentidos, aprimoram nosso olhar. É o que Daniel Arasse alcança com este seu volume de ensaios sobre arte, sobre pintura, sobretudo. O formato do volume é simples. Toma-se uma composição e faz-se uma descrição detalhada dos símbolos, referências, contexto histórico e motivações daquela proposta plástica, daquele objeto artístico. Contudo, o que Arasse incorpora em suas reflexões é apenas uma fração do que pode-se definir como "complexos mecanismos mentais" que cada um de nós, os sujeitos que ficam defronte um quadro ou - ainda que menos efetivamente - defronte a uma reprodução de um quadro, experimenta, elabora e associa, sintetiza, compreende e arbitra. Os seis ensaios gravitam cinco pinturas icônicas e uma peça escultória, arte produzida nos séculos XV, XVI e XVII: Marte e Vênus surpreendidos por Vulcano (de Tintoretto, circa 1550); Anunciação (de Francesco del Cossa, circa 1470-72); Adoração dos Magos (de Bruegel, 1564); Maria Madalena com anjos (de Tilman Riemenschneider, 1490-92); Vênus de Urbino (de Ticiano, 1538) e As meninas (de Velázquez, 1656-59). Não me atrevo a tentar resumir aqui as notáveis reflexões de Daniel Arasse sobre cada uma destas pinturas (assim como de uma dezena de outras, de vários outros artistas, com as quais ele contrasta as seis peças principais). Foi antes o uso da linguagem, os truques retóricos, as figuras de linguagem, o ritmo e o colorido das frases de Arasse que me surpreenderam. Vivemos em uma época terrível, onde mesmo pessoas formalmente educadas são incapazes de descrever o que veem, inaptas para interpretar os mais simples dos códigos, refratárias a qualquer sutileza, ironia, jogo mental. O que Arasse muito necessariamente nos ensina é ser possível conciliar toda uma tradição de historiografia da arte com o mundo das relações coloquiais, ligeiras e efêmeras da modernidade. É tempo sim de voltar aos livros de arte, preparar-me para os ritos de passagem de ano, preparar as peregrinações pelos museus e galerias.  Vale! 
Registro #1472 (crônicas & ensaios #264) 
[início: 09/10/2019 - fim: 11/10/2019]
"Nada se vê: seis ensaios sobre pintura", Daniel Arasse, tradução de Camilda Boldrini e Daniel Lühmann, São Paulo: Editora 34, 1a. edição (2019), brochura 14x21 cm., 164 págs., ISBN: 978-85-7326-729-7 [edição original: On n'y voit rien: descriptions (Paris: Éditions Denoël) 2000, 2005]

quinta-feira, 28 de novembro de 2019

dias exemplares

Nesta bela edição da Carambaia (as usual) encontramos notas autobiográficas de Walt Whitman, que viveu entre 31/05/1819 e 26/03/1892. Trata-se de um conjunto de reflexões sobre vários aspectos da vida cultural e política dos Estados Unidos da segunda metade do século XIX. É um livro muito interessante de se ler, apesar da marcante diferença entre a primeira e as duas partes seguintes. A primeira (140 páginas, de um total de quase 370), foi escrita em cadernos, simultaneamente a Guerra Civil Americana, de 1861 a 1865, e finalizada em 1865, quando Whitman tinha 46 anos. Nesta parte ele digressa sobre sua biografia familiar e depois sobre seu envolvimento direto nos acontecimentos da Guerra da Secessão Americana. Trata-se de um relato forte, terrível até, pareceu-me uma funesta versão em prosa das gravuras de Goya sobre a guerra de independência espanhola (a luta contra os invasores franceses no início do século XIX). Whitman fala de seu cotidiano, dos cuidados que oferece os feridos na guerra, das cartas de consolo que escreve aos familiares dos mortos. A segunda parte começa com o que pode ser definido como desdobramentos do colapso que ele sofreu em 1873, segue até o início de 1876 e depois, retrospectivamente, revisando quase tudo o que fez na vida, até 1879, mais ou menos.  Nestas anotações acompanhamos as reflexões de alguém semi inválido, consumido pelas dores da guerra, o acosso da depressão. Ele vive em uma cabana isolada em Camden, no estado americano de New Jersey, percorre a mata, faz o censo das flores, das árvores, da passagem do tempo, dos pássaros e dos sons da floresta. Ele sabe olhar para o céu, reconhecer estrelas e constelações, faz associações com os deuses e a mitologia. Aos poucos o sujeito sai de seu torpor, de sua culpa, que é a culpa coletiva dos beligerantes, melhora de saúde. A terceira e última parte do livro (outras 150 páginas) um Whitman renovado viaja pelo país, primeiro em barcaças no Rio Hudson ou por estradas de ferro que sobem ao Norte, até a fronteira com o Canadá. Depois ele vai ao Oeste, até as montanhas Rochosas, visita as minas de prata  do Colorado, o que viria a ser o parque Yellowstone, no Wyoming e em Montana, conhece cidades do Oeste selvagem, região que se americaniza. Ele registra ter feito pelo menos 3.000 Km em trens. Em suas anotações antecipa um destino glorioso para seu país, agora pacificado, senhor de tantas terras cultiváveis e riquezas sem fim. Esta última parte equilibra descrições minuciosas da geografia, flora, fauna e pessoas de muitos lugares diferentes com reflexões sobre arte, literatura, natureza. Ele contrasta as culturas americana e europeia, visita amigos de longa data, como Emerson, Longfellow e Carlyle, pensa sobre a obra de Hegel, Coleridge, Poe, vai a concertos e exposições nas grandes cidades, faz um balanço sobre sua vida. Não se trata de um volume que sirva como biografia. As anotações terminam em 1882, mais ou menos a época em que a definitiva edição de seu famoso "Folhas da Relva" foi publicado. Bruno Gambarotto, que assina a tradução e um excelente posfácio, argumenta que as poesias de "Folhas da Relva" são irmãs das anotações deste "Dias exemplares". A edição da Carambaia reproduz em cada capa mil imagens de folhas, emulando o hábito de Whitman de colecionar folhas de plantas durante suas longas caminhadas, colocando-as entre as páginas dos livros que estava a ler. Um belo livro, que certamente trás junto consigo um tanto dos horrores da guerra e muito da serenidade do frescor, da alegria, que se alcança no campo, nas caminhadas, nas viagens. Também eu preciso preparar-me para os ritos de passagem de ano, preparar-me para as peregrinações pelos museus e galerias, reencontrar amigos e as pessoas queridas da família. Vale! 
Registro #1471 (perfis e memórias #93) 
[início: 09/08/2019 - fim: 11/10/2019]
"Dias exemplares", Walt Whitman, tradução de Bruno Gambarotti, São Paulo: Carambaia Editora, 1a. edição (2019), capa-dura 13x19 cm., 368 págs., ISBN: 978-85-69002-58-1 [edição original: Specimen Days & Collect (Philadelphia: Rees Welsh & Co.) 1882-83]

segunda-feira, 25 de novembro de 2019

correspondência 1945-1970

Escrevo esse registro justamente hoje, 25 de novembro, 49 anos após o suicídio ritual de Yukio Mishima. Encontrei esse volume de cartas e também cartões postais por acaso, quando procurava um outro livro. Não havia lido nada sobre a edição e o lançamento, bastante recentes. Li as cartas sem pressa, tentando emular algo das camadas de tempo que elas guardaram, que elas capturaram. Que alegria ler este livro. Pois então. Entre março de 1945 e julho de 1970, Yasunari Kawabata e Yukio Mishima cultivaram uma franca amizade, sobretudo por meio de cartas. Mishima tinha pouco menos de 20 anos quando recebeu a primeira das cartas de Kawabata, impressionado com a força de "Floresta em plena florescência", primeiro de seus livros publicado. Kawabata já era um senhor - um jovem senhor se atualizarmos a régua da vida aos nossos dias, tinha  46 anos, mais que o dobro de Mishima. Por 25 anos, até o suicídio de Mishima, em novembro de 1970, os dois mantiveram uma relação de admiração e também competição, de respeito e rivalidade, de eternos mestre e discípulo. A leve assimetria no número de cartas (42 de Kawabata a Mishima, 51 de em sentido contrário), certamente deve-se ao início da correspondência entre eles, regrada pelo zelo com a etiqueta, por regras de conduta e boa educação, que hoje soam quase surreais nos relacionamentos entre indivíduos. Nas cartas não é apenas sobre literatura que se fala. Discute-se o estado de ânimo de cada um, problemas de saúde, opções de carreira, impressões de viagem, opiniões sobre peças de teatro (Mishima também foi um habilidoso dramaturgo), dúvidas mundanas, questões bastante pessoais. Claro, na maioria das cartas ou dos cartões postais a interlocução gravita o ofício do livro, da invenção, da estética, da política literária (Kawabata foi durante anos presidente do Pen Club japonês). Qualquer leitor familiarizado com a obra destes dois tremendos autores encontrará neste volume muita informação, muita reflexão sobre as obras de ambos, muitos esclarecimentos sobre o processo de criação literária praticado por eles. A edição oferece muitos mimos ao leitor: um bom posfácio, assinado por Donatella Natili, onde se contextualiza as cartas entre as demais publicações de ambos; curtos fatos biográficos dos dois, e uma longa bibliografia. Vamos em frente. Vale! 
Registro #1470 (cartas #10) 
[início: 12/09/2019 - fim: 25/10/2019]
"Correspondência 1945-1970, Kawabata e Mishima", Yasunari Kawabata, Yulio Mishima, tradução de Fernando Garcia, São Paulo: Estação Liberdade editora, 1a. edição (2019), brochura 13,5x21 cm., 256 págs., ISBN: 978-85-7448-299-6 [edição original: Kawabata Yasunari, Mishima Yukio Ohfuku Shokan (川端康成・三島由紀夫往復書簡) 新潮文庫 1997]

quarta-feira, 20 de novembro de 2019

poemas de amor ainda

No último 20 de setembro, dia da Revolução Farroupilha, feriado no Rio Grande do Sul e dia do gaúcho para os íntimos, estava eu longe de casa, em uma missão de trabalho. Em Curitiba, folheando um jornal digital (pobre Curitiba, não mais afeita a jornais impressos), descobri que haveria um lançamento de dois livros de poesia, justamente naquele 20 de setembro, em um bar/boate do centro, não muito longe de meu hotel. Resolvi experimentar, e dei sorte. Conheci um bocado de poetas em fúria (já resenhei aqui um deles, o bom "A caverna dos destinos cruzados", de Sergio Viralobos, Monica Berger e Leonardo Chioda; ouvi boa música; conversei com muita gente bacana; entre elas o industrioso Vanderley Mendonça - mas esta é outra história). O outro livro lançado naquela noite foi esse "Poemas de amor ainda", de Antonio Thadeu Wojciechowski, experimentado poeta (e publicitário, e professor, e pescador, e compositor, como ele mesmo se define) curitibano, de seus quase 70 anos. Se é que eu contei bem, este volume é o  trigésimo quarto de uma vasta produção. Nele estão incluídos seis conjuntos de poemas. Cinco são da lavra dele mesmo, Wojciechowski, e um sexto, de poemas traduzidos por ele, poemas de Szymborska e Dickinson, Rimbaud e Maiakóvski, Hölderlin e Baudelaire, Poe e Gandhi, cummings e Yeats, e de Shakespeare. Nos cinco conjuntos autorais - quase sempre líricos - ele faz uso de várias formas poéticas: as fixas (sonetos e haikus, talvez baladas, talvez trovas, talvez rondós, talvez odes) e também versos livres, mas quem disse que eu sei escandir poemas? Seus poemas explicitam uma alegria de viver, quase sempre são confessionais, transbordam fé na humanidade, no caótico inerente das paixões que nos conduzem nesta vida. Sou o menor dos anões neste assunto, ai de mim, mas da leitura dos poemas brota um sujeito que parece explorar o mundo sempre com olhos de menino, curioso, pleno, whitmaniano. Claro, eu precisaria conhecer mais cousas dele para ter a ambição de classificá-lo corretamente, mas quem disse que um poeta precisa ser entendido em todos seus matizes, em todas suas sutilezas. Vamos a ver se no futuro encontro mais cousas deste polonês errante. Vale! 
Registro #1469 (poesias #121) 
[início: 20/09/2019 - fim: 09/11/2019]
"Poemas de amor ainda", Antonio Thadeu Wojciechowski, Florianópolis: Bernúncia Editora, 1a. edição (2019), capa-dura 16x23 cm., 324 págs., ISBN: 978-65-80391-00-4

sexta-feira, 15 de novembro de 2019

poesia holandesa

Daniel Dago, jovem senhor das cousas holandesas, organizou um volume com trinta poemas produzidos entre 1852 e 2009, a "primeira ampla antologia de poesia holandesa no Brasil", segundo ele mesmo diz, na apresentação. Nesta ele diz também que a tradução dos poemas foi feita a quatro mãos, as dele e as de Rubens Chinali, tradutor mais afeito aos jogos, métrica e rimas, ao ofício poético propriamente dito. Um pequeno parágrafo biográfico apresenta os autores incluídos na antologia. Não é o tipo de livro que lê-se de capa a contracapa, num fôlego só. São propostas poéticas muito variadas, cada uma delas uma pequena nesga na vastidão de poemas que cada um dos trinta engendrou ao longo de suas vidas. De qualquer forma o leitor diligente ganha muito escolhendo ao azar quaisquer dos poemas para ler. Do conjunto gostei particularmente de um, Hans Faverey, que diz: "Primeiro a mensagem mata / o destinatário, então / mata o remetente. / Não importa / em qual idioma. // Eu me levanto, abro / com força as portas da sacada / e respiro fundo. // As gaivotas que circulam / sobre a rua sem neve / não vou atrair / com gestos de alimentá-las. // Acendo um cigarro; / volto para meu posto / e respiro fundo. / Não há nada a se sonhar. / Tudo é possível. / Pouco importa." Bueno. Os poetas incluídos na antologia são: Piet Paaltjens, Jacques Perk, Albert Verwey, Herman Gorter, Willem Kloos, Henriette Roland Holst, Adriaan Roland Holst, Hendrik de Vries. J.H. Leopold, Theo Van Doesburg, P.C. Boutens, Jan Jacob Slauerhoff, Martinus Nijhoff, Hendrik Marsman, M. Vasalis, Ida Gerhardt, Jan Campert, J.C. Bloem, Gerrit Achterberg, Hans Lodeizen, Lucebert, Jan Hanlo, Remco Campert, Leo Vroman, Rutger Kopland, Gerrit Kouwenaar, Hans Faverey, Gerrit Komrij, Nachoem MN. Wijnberg e Ester Naomi Perquin. A edição é bilíngue, e é da Demônio Negro, ou seja, garantia de boa qualidade. Vamos em frente. Vale! 
Registro #1468 (poesia #120) 
[início: 19/09/2019 - fim: 28/09/2019]
"Poesia holandesa: do século XIX à atualidade", Daniel Dago (organização), tradução de Daniel Dago e Rubens Chinali, São Paulo: V. de Moura Mendonça Livros (Selo Demônio Negro), 1a. edição (2019), capa-dura 16,5x23,5 cm., 152 págs., ISBN: 978-85-66423-64-8

segunda-feira, 11 de novembro de 2019

restos mortales

Vigésimo sexto volume com os sucessos do comissário veneziano Guido Brunetti, "Restos Mortales" é um tanto diferente da grande maioria dos anteriores. Donna Leon afasta seu personagem das Calli, Campielli e Canali de Veneza e o leva para a ilha de Sant'Erasmo, ao nordeste da Laguna. Desta vez não se trata de uma investigação oficial. Antes é o instinto moral e a memória afetiva que motivam Brunetti a examinar as circunstâncias da morte de um velho amigo de seu pai. Há uma cena algo burlesca no início do livro, que fez-me lembrar dos truques do genial Andrea Camilleri, escritor italiano que morreu há pouco tempo, de quem li livros notáveis, grande sujeito. Num julho de calores infernais, para evitar que um de seus subordinados possa ser acusado de agressão a um suspeito, Brunetti simula um desmaio, uma queda. Após uma sucessão rocambolesca de equívocos, ele resolve aceitar as recomendações médicas de ficar em licença de saúde por algumas semanas. Neste período ele passa os dias remando, num dolce far niente, lendo seus adoráveis autores clássicos: Plínio e Suetônio, Heródoto e Eurípedes. Na ilha de Sant'Erasmo, onde está hospedado, numa casa de verão de uma das tias de Paola, Brunetti reencontra um velho amigo de seu pai, Davide Casati, um sujeito taciturno. Davide demonstra ser um hábil marinheiro e também uma espécie de filósofo amador, porém alguém que esconde algo confuso na alma, somente sendo capaz de demonstrar preocupação com a morte das abelhas que cria nos baixios da Laguna de Veneza. Após a aparente morte acidental de Davide em uma dia de tempestade, Brunetti, um tanto para consolar a filha do morto, outro por sua perene curiosidade policial, resolve investigar os acontecimentos e chega a uma conclusão surpreendente. Donna Leon invoca temas diferentes desta vez. Ela discorre sobre questões ecológicas, sobre o suicídio, sobre a velhice, sobre a cobiça, sobre os animais. Em algum momento surge brevemente o nome de Robert Hughes e suas reflexões sobre arte. Que miríade de associações um sujeito não faz quando lembra de Hughes? Há notas amargas neste volume, tons duros, melancólicos, de quem já não acredita na capacidade do homem de melhorar, tornar-se menos perverso e daninho, para si mesmo e para o planeta. Enfim, trata-se de um bom equilíbrio entre diversão ligeira e importantes reflexões contemporâneas. Bom livro, como sempre deveria ser. Vale! 
Registro #1467 (romance policial #92) 
[início: 20/10/2019 - fim: 24/10/2019]
"Restos Mortales" (Brunetti #26), Donna Leon, tradução de Maia Figueroa Evans, Barcelona: Editorial Seix Barral / Booket #2776 (Grupo Planeta Manuscrito), 1a. edição (2018), brochura 12,5x19 cm., 350 págs., ISBN: 978-84-322-3331-9 [edição original: Earthly Remains (Zürick: Diogenes Verlag AG / Penguin Randon House Group) 2017]

sexta-feira, 8 de novembro de 2019

el cartero del rey

Escrita em 1912, essa pequena peça de teatro deixa-se ler em um par de horas. É uma cousa sutil, delicada, algo mágica, que provoca o leitor/espectador refletir sobre nossa humana fragilidade, nossa transitória condição, nosso destino. A peça (Bengali Dak Ghar no original) foi traduzida por Yeats e por conta disto rapidamente ganhou visibilidade no ocidente, tendo sido encenada com regularidade desde sua primeira publicação (cabe dizer que ambos ganharam um prêmio Nobel, Tagore em 1913, Yeats em 1923). A história é curtíssima, e tem muito de alegórico. Uma criança, Amal, encerrada numa casa em função de sua doença, debilitante e incurável, alcança conversar e fazer perguntas a algumas pessoas, aquelas que passam próximas da janela de seu quarto. Neste ele conversa com seu pai adotivo, Madhav, e com um médico; da janela do quarto ele conversa com um leiteiro; um vigia noturno; um marinheiro; um valentão, que é chefe de sua aldeia; e com uma florista, Sudha. Basicamente ele pergunta a estas pessoas qual o destino delas, pergunta para onde eles vão. Os diálogos levam o leitor a refletir sobre o significado da vida, sobre a curiosidade que nos move, que nos obriga a tentar entender o quê significa mesmo partilhar uma existência, uns poucos anos, em um universo que tem mais de 13,77 bilhões de anos. Eventualmente, cada um de nós se desapega da vida, do eu, das cousas, dos outros. Todavia, quase sempre, esta epifania acontece quando já não somos capazes de mudar, nem tampouco entender de fato, a razão e o acaso de nossos destinos, se é que isto importa. Vale! 
Registro #1466 (drama #16) 
[início - fim: 03/10/2019]
El cartero del Rey", Rabindranath Tagore, tradução de J.A. López de Letona, Madrid: Ediciones Akal, (Básica de Bolsillo) 1a. edição (1986), brochura 12x18 cm., 80 págs., ISBN: 978-84-460-3323-3 [edição original: The Post Office (New York: Macmillan Company) 1914]