sexta-feira, 28 de junho de 2013

sobrescritos

Este pequeno livro é muito divertido. São contos cruéis, produzidos por Sérgio Rodrigues, sujeito que mantém a coluna jornalística "Todoprosa" na revista Veja (a coluna começou no antigo portal NoMínimo - hoje descontinuado - muitos anos antes da filiação dele à Veja). Rodrigues conhece bem o mercado livreiro, e parece familiarizado tanto com a high society dos editores poderosos e escritores já consagrados quanto com o bas-fond das editoras de aluguel e dos neófitos entusiastas de literatura. Em "Sobrescritos" estão reunidos 40 contos curtos, ditas "40 histórias de escritores, excretores e outros insensatos" pelo autor. Pouco importa se as histórias são inspiradas em conhecidos dele ou se brotam de sua imaginação. Algumas são obviamente invenções puras, mas noutras o leitor pode até imaginar alguém que mereceria ser identificado nelas. Encontramos em "Sobrescritos" causos literários bem humorados, que descrevem um mundo de egos em fúria, onde ideias são quase sempre tomadas de empréstimo (do Google?), blogueiros são "roadies" de aluguel de alguma editora, críticos são arrivistas profissionais ou acadêmicos fracassados, jornalistas são escravos da pauta (nunca da realidade), editores ficam a sonhar com aquele edital governamental que lhes garantirá o verão em Berlin (e a continuarem poseur do mecenato literário). Sérgio Rodrigues parece ser particularmente irônico com os escritores gaúchos. mas isso não é um pecado, não é mesmo?
[início: 31/05/2013 - fim: 01/06/2013]
"Sobrescritos: 40 histórias de escritores, excretores e outros insensatos", Sergio Rodrigues, Porto Alegre: Arquipélago editorial, 1a. edição (2010), brochura 12x17,5 cm., 148 págs., ISBN: 978-85-60171-12-5

quinta-feira, 27 de junho de 2013

ehrengard

Publicado postumamente, em 1962, "Ehrengard" é o último conto que Isak Dinesen chegou a completar. Dinesen (ou Karen Blixen) foi uma escritora dinamarquesa cuja obra sempre foi muito respeitada, mas que tornou-se popular após adaptações cinematográficas de algumas de suas histórias (A festa de Babette e Out of Africa fizeram muito sucesso nos anos 1980, "Ehrengard" também foi adaptado para o cinema, numa produção italiana que não cheguei a assistir). O industrioso Javier Marías assina a tradução. Ele é um dos entusiastas contemporâneos da qualidade literária dos textos de Dinesen. Trata-se de uma história algo rocambolesca, uma história de amor e honra. De fato é muito bem escrita. O que mais impressiona é o quão rapidamente a autora consegue descrever a personalidade dos personagens que cria. Em poucos parágrafos o leitor parece já conhecer exatamente pessoas daquele tipo ou índole e sabe como elas irão se comportar. Há também uma certa ironia na história, como se a escritora nos lembrasse que o mundo da ficção é regido por leis bem distintas daquelas que experimentamos na realidade. Os elementos motivadores da história não poderiam parecer mais tolos, infantis e fantasiosos, todavia Dinesen consegue extrair deles uma força e universalidade impressionantes. Ehrengard, a heroína da história, é escolhida como dama de companhia de uma princesa, Ludmilla, que estando grávida de Lothar, herdeiro de um idílico Grão-Ducado, precisa de cuidados especiais e deve ser transferida para uma fortaleza afastada da corte. Além de Ehrengard apenas um grupo pequeno acompanha Ludmilla nos meses que antecedem o parto: sua sogra, a Grão-Duquesa; uma ama de leite e Cazotte, um famoso pintor (e também conhecido sedutor), único amigo e confidente do príncipe Lothar. Cozotte pretende seduzir Ehrengard, que está comprometida com Kurt, um militar aparentado de sua família. Mas o nascimento do filho de Ludmilla e Lothar provoca uma série de desdobramentos e o conto converge rapidamente para seu desfecho. Historieta muito interessante (e que sugere uma série de associações, inclusive uma eventual metamorfose de Cazotte em Casanova, protagonista do "La amante de Bolzano", que li recentemente. Os livros sabem sim conectar-se uns aos outros. Vale.
[início: 15/06/2013 - fim: 19/06/2013]
"Ehrengard", Isak Dinesen (Karen von Blixen-Finecke), tradução de Javier Marías, Barcelona: editorial Anagrama, 1a. edição (1992), brochura 13x20 cm., 126 págs., ISBN: 84- 339-3192-X [edição original: Ehrengard (New York: Random House / Pennsylvania: Curtis Publishing Co) 1962]

quarta-feira, 26 de junho de 2013

la amante de bolzano

Don Miguel, da Calle Corrientes, trouxe esse volume de "La amante de Bolzano" para a última Feira do livro de Santa Maria. Eu vi o livro perdido num balaio e de lá o retirei de pronto (junto estavam um Machado de Assis em espanhol - regalo seguro para os amigos de Madrid - que também comprei sem titubear, e Ehrengard, de Isak Dinesen, sobre o qual em breve falarei aqui). Nunca havia lido nada de Sándor Márai. Ele nasceu em 1900, na região que hoje pertence à Eslováquia, mas na época era parte do Império Austro-Húngaro. Um terço de sua vida adulta ele viveu as glorias do reconhecimento da qualidade literária de seus livros, sempre escritos em Húngaro. Já a outra (e maior) parte dela viveu em trânsito, esquecido e amargurado, exilado dos regimes ditatoriais que tomaram de assalto seu país. "La amante de Bolzano" narra a fuga de um sujeito das masmorras de Veneza e os sucessos de sua estadia por um par de semanas em Bolzano, uma pequena cidade do norte italiano que está na rota de passagem entre os Alpes, útil para quem segue da planície do rio Pó rumo à Alemanha e além. Este sujeito pode ser identificado com o escritor e aventureiro veneziano Giacomo Casanova, mas Márai já nos alerta em um curto prefácio que ele não está interessado na história do Casanova real, mas sim em seu pathos, ou seja, naquilo que identificamos com os estados da alma de um sujeito, no caso, a escravidão pela paixão, a compulsão pelo sexo, a necessidade de permanente sedução, as dores do amor. O Casanova histórico de fato fugiu de Veneza no 31 de outubro de 1756, com a ajuda de um padre alcoólatra, dissoluto e bonachão também caído em desgraça, Balbi. Aí começa a ficção de Márai. Casanova é relativamente jovem, tem 31 anos, mas já é um conhecido libertino. Em Bolzano, após as convulsões advindas de sua chegada, os primeiros flertes, as questões financeiras que deve resolver, os planos para ir ao norte e refugiar-se em Munique, Casanova reencontra Francesca, mulher do poderoso conde de Parma. Talvez aquela mulher tenha sido a única que ele chegou a amar verdadeiramente, mas ao tentar seduzi-la, cinco ou seis anos antes, quando ela era ainda adolescente, Casanova teve de bater-se em duelo com o conde de Parma. Foi ferido e quase morreu. Francesca cresceu e casou-se com o conde. Márai conduz a narrativa admiravelmente bem. A cada seção do livro os personagens se encontram e discutem suas questões como em uma ópera (há algo de musical no livro) ou em uma peça (Ibsen é o primeiro nome que me ocorre). Tudo é preciso, espacial e temporalmente controlado, e tanto que o leitor chega a se imaginar presente nas cenas. Já li várias coisas realmente boas este ano: Vidas escritas, Danúbio, O professor do desejo, Mrs. Dalloway, Tudo o que tenho levo comigo, A infância de Jesus (para citar apenas seis deles dentre muitos), entretanto "La amante de Bolzano" parece pertencer aquela categoria de livros tão cheios de advertências, inspirações e segredos, tão cheios de reflexões sobre a realidade da vida e o comportamento dos homens, que não os conhecer, não lê-los, implica em furtar-se de algo realmente fundamental.
[início: 11/05/2013 - fim: 05/06/2013]
"La amante de Bolzano", Sándor Márai, tradução de Judit Xantus Szarvas, Barcelona: ediciones Salamandra, 7a. edição (2006), brochura 14x21,5 cm., 283 págs., ISBN: 84-7888-575-7 [edição original: Vendegjatek Bolzanoban (Budapest: Revai) 1940]

terça-feira, 25 de junho de 2013

a tristeza extraordinária do leopardo-das-neves

Fazer um registro da leitura de "A tristeza extraordinária do leopardo-das-neves" não é trivial. Trata-se de um livro que cobra atenção e dedicação do leitor, mas que o recompensa com algo realmente interessante, longe de ser convencional. Resenhá-lo em detalhes implicaria em antecipar surpresas e desdobramentos que cada leitor deve descobrir por si só, já que a história que se narra é como um quebra-cabeças, cuja solução - apesar de poder ser parcialmente inferida já a partir do meio do livro, só é explicitada nos últimos parágrafos. Joca Reiners Terron cria e sustenta bem uma história que parte de elementos algo inverossímeis e díspares: um animal raro; um taxista perverso que gosta de música clássica; os cães deste taxista; conspirações; um escrivão dividido entre uma investigação e os cuidados com seu pai já senil; uma babá e a "criatura" (para usar a acepção que o autor usa) sob seus cuidados; uma doença desconhecida; um empregado que sonha seduzir a filha de seu empregador; um passeio noturno por um zoológico; uma funcionária pública que sonha um futuro como jornalista"; as misteriosas ligações telefônicas que o escrivão recebe. Como já nos ensinou Javier Marías, ao argumentar que aquilo que lemos nas páginas policiais dos jornais é sempre mais surpreendente que os mundos ficcionais imaginados pelos escritores, a realidade não é uma escritora muito boa. Terron parece saber disto, pois dá aos elementos "inverossímeis e díspares" que coletou para sua história uma roupagem literária realmente robusta (óbvio dizer isso, ele não faz jornalismo e sim boa literatura). Enfim. O que no início parece um conto de fadas algo amalucado aos poucos revela as sutilezas de uma consistente narrativa sobre coisas inusitadas que ocorrem nas grandes cidades (onde todos se conhecem o suficiente para não prestar atenção no que cada um faz, por mais bizarro que seja). A cidade de São Paulo também funciona como uma personagem do livro, em dois registros distintos. Um na região do Bom Retiro, onde a arquitetura e a geografia das ruas guarda memória da passagem e presença de muitos imigrantes (judeus, coreanos, bolivianos), outro na região da Água Funda, onde fica o Parque Zoológico de São Paulo, que parece funcionar como uma fronteira distante de mundo natural, do que há de primitivo, orgânico e visceral na vida, e que acaba atraindo os personagens urbanos (assim como as luzes atraem os insetos). Duas histórias se alternam (a do escrivão e seu pai senil, e a da babá e a "criatura" sob seus cuidados) e acabam convergindo. Terron controla o fluxo de informações e as chaves de leitura que deixa pelo texto. O resultado é bastante bom. Trata-se de fato de um projeto literário ambicioso (de um sujeito já bastante senhor das técnicas de seu ofício).
[início: 05/06/2013 - fim: 07/06/2013]
"A tristeza extraordinária do Leopardo-das-neves", Joca Reiners Terron, São Paulo: editora Companhia das Letras, 1a. edição (2013), brochura 14x21 cm., 175 págs., ISBN: 978-85-359-2234-9

segunda-feira, 24 de junho de 2013

bichos no lixo

Se há um sujeito que eu respeito é o Ferreira Gullar. Não apenas gosto do poeta, do crítico de arte e cultura, do artista plástico multitalentoso, mas também do sujeito que escreve suas crônicas em jornais. Gullar tem a coragem daqueles que não se importam com o poder daqueles que critica (a maioria dos escritores, músicos, atores e artistas plásticos brasileiros tem sempre aquela velha mania de serem logo corrompidos pelos poderosos de plantão - ou são apenas uns tontos, acontece muito também). Gullar pratica também a clarividência e a memória dos sábios (os Tirésias e as Cassandras desta vida sempre tem um destino funesto, mas antes lembrar das coisas e fazer previsões que ninguém acredita que juntar-se ao coro canalha de hipócritas e oportunistas). Ele tem um estilo literário claro, econômico e objetivo, sempre implacável com a mentira, o roubo e a corrupção, sempre observador das belezas, das musas e dos assombros. Para quem não conhece, suas crônicas na Folha de São Paulo podem ser encontradas aqui. "Bichos do lixo" é algo totalmente diferente, uma proposta visual antes que literária. Lembra um tanto aquele teste de avaliação psicológica (Rorscharch) ou o antigo hábito infantil de passar horas de sol interpretando as nuvens e enxergando nelas tudo aquilo que queremos ver (farão isso as crianças hoje em dia?). Trata-se enfim de um livro-arte, dedicado ao público infantojuvenil. Ele propõe um jogo, reunindo aleatoriamente pedaços de papel (principalmente de jornais velhos, propaganda e envelopes de cartas que recebe) e os recortando e colando em miríades de pedaços que, depois, reúne com calma e cola, metamorfoseando as cores e formas que encontra em animais, insetos e aves. As palavras sintetizam o que o poeta vê, mas é o leitor que é convidado a também ele brincar com a imaginação. Concordaria ele com o que vê? Cabe ainda um registro. Digo que ele reúne aleatoriamente, mas isso não é exatamente verdade. Ele deve preparar o material previamente, talvez deixando a mão fazer automaticamente os cortes, talvez seguindo esboços que faz antes no papel. De qualquer forma com paciência e zelo ele prepara as formas e daí começa o jogo de fixação das imagens que consegue ver. Livro divertido, para entreter todo aquele que ainda tiver uma cabeça jovem e fresca (coisa difícil nestes tempos bicudos). 
[início - fim: 20/06/2013]
"Bichos do lixo", Ferreira Gullar (texto e ilustrações), Rio de Janeiro: Casa da Palavra Produção Editorial (editora Leya), 1a. edição (2013), brochura 25x21 cm., 86 págs., ISBN: 978-85-7734-330-0

domingo, 23 de junho de 2013

una entrevista con javier marías

Que sorte tive ao encontrar esse pequeno livro. Trata-se de uma edição espanhola hors-commerce, ou seja, não produzida para comercialização, mas os caminhos dos livros são sempre incríveis e ele alcançou chegar até minhas mãos. Elide Pittarello é professora universitária na Università Ca' Foscari di Venezia, reconhecida especialista em literatura espanhola do século XX (e agora também deste século XXI). E ela também é amiga pessoal de Javier Marías, há muitos anos. Assim, combinando as habilidades de uma acadêmica experiente e as liberdades próprias que brotam das amizades eis que juntos Marías e Pittarello produziram uma entrevista que se lê com muito prazer. O ritmo é de uma conversa entre amigos, entretanto há rigor e objetividade nela, os temas são destrinchados, as ambiguidades dirimidas. As perguntas oscilam de temas pessoais aos projetos literários de Marías (a entrevista foi feita em 2005, quando ele ainda não havia publicado a terceira parte de seu portento "Tu rostro mañana"). Os dois conversam sobre a casa onde Marías exerce seu ofício e seus hábitos; da infância e sobre seus pais e irmãos; do peculiar ponto de vista dos narradores de Marías; do Marías cidadão, que atua politicamente através dos jornais para os quais escreve crônicas; do controle do tempo narrativo em seus livros e da criação de seus personagens; de suas coleções; de suas obsessões e seus notórios fantasmas. Pitarello afirma que gravou e transcreveu a totalidade de duas longas sessões de gravação feitas nas entrevistas, mas que ela não pode oferecer ao leitor o que talvez a impressione mais: o ritmo das digressões, as nuances no tom de voz, a força contida nos silêncios e nas pausas, e em sua expressão corporal. Ouro puro esse livro, será bem acolhido juntos aos demais livros de Marías que já resenhei aqui.
[início: 13/06/2013 - fim: 14/06/2013]
Una entrevista com Javier Marías, Elide Pittarello, Barcelona: editorial Random House Mondadori (Debolsillo - contemporânea), 1a. edição (2006), brochura 12,5x19 cm, 92 págs. ISBN: 978-84-3413-590-1 [edição original: Una entrevista com Javier Marías (Barcelona: RqueR editorial, coleccíon entrevistos) 2005]

sábado, 22 de junho de 2013

quase borges

Neste pequeno livro encontramos vinte poemas de Jorge Luis Borges "transcriados" por Augusto de Campos. A edição é bilíngue, portanto o leitor tem a chance de explorar os poemas originais e comparar seu entendimento deles com as escolhas e propostas de tradução que lhe são oferecidas. Além de uma apresentação assinada pelo próprio Augusto de Campos o livro inclui o relato de dois encontros entre Omar Khouri (um respeitado acadêmico, professor da UNESP), o poeta Augusto de Campos (acompanhado por sua mulher Lygia e seu filho Roland) com um Borges já octagenário, em Buenos Aires, no já longínquo fevereiro de 1984. Augusto e os demais são recebidos com generosidade por Borges e a conversa entre eles é focada na produção poética deles e naquela dos autores que ambos apreciam. Deve ter sido uma experiência realmente mágica. Qualquer poeta gostaria de fazer uma visita deste tipo. Bueno. Os vinte poemas são apenas uma pequena mostra da produção borgiana, mas que bela escolha Augusto de Campos fez. A erudição e a riqueza de imagens típicas de textos borgianos estão ali: os espelhos, os mundos imaginários, os saxões, o labirinto, o eco dos textos antigos. Que maravilha os ler. Já sou um velho e pequeno anão, que lembra dos anos 1980 como quem fala dos tempos pré-cambrianos. Pois eu também vi Borges de perto naquele ano (mas nem de longe sonhei em falar com ele). Estive no auditório do MASP em agosto de 1984, em meio de uma legião de aficionados e aprendi que - a exemplo daquilo que nos ensinava o professor Mário Schenberg - era possível ouvir melhor com os olhos fechados. Talvez fosse o caso de pedir a alguém recitar os poemas e ouvi-los. Que belo livro. Nota bene: curiosamente, esta edição da Terracota/Musa Rara é numerada. Sou o proprietário do exemplar 0782 de 1000. Não é mesmo uma bela proposta?
[início: 01/06/2013 - fim: 03/06/2013]
"Quase Borges: 20 transpoemas e uma entrevista", Jorge Luis Borges, tradução de Augusto de Campos, São Paulo: editora Terracota (selo Musa Rara), 1a. edição (2013), brochura 14x21 cm., 90 págs., ISBN: 978-85-62370-83-0 [edição original dos poemas: Obra poética 1923-1977 (Buenos Aires: Alianza editorial) 1977; Los conjurados (Buenos Aires: Alianza editorial) 1985]

sexta-feira, 21 de junho de 2013

poemóbiles

São doze objetos-poemas ou poemas-objetos, ditos Poemóbiles. O leitor, ao abrir algo açodado a caixa que os enfeixa, como quem está prestes a descobrir um tesouro, imediatamente começa a brincar com as folhas de papel que, superpostas, dobradas e recortadas, grafadas com tipografia e cores distintas a cada prancha, iniciam com ele um diálogo mágico e curioso. Trata-se de uma obra produzida por dois sujeitos: o multitalentoso poeta Augusto de Campos (que assina os textos, as palavras) e o artista plástico multitalentoso Júlio Plaza (que assina os iconogramas, os objetos). Júlio Plaza nasceu em Madrid, mas escolheu o Brasil para trabalhar, criar e viver. Seus primeiros objetos, onde a técnica utilizada nos Poemóbiles é utilizada, foram produzidos em 1968. Em 1974 surgiu a colaboração com o poeta Augusto de Campos, paulista e paulistano, e deste trabalho conjunto surgiu a primeira edição da caixa com 12 Poemóbiles, que são quase esculturas feitas de papel. Os industriosos editores da Annablume e os não menos industriosos criadores do selo Demônio Negro, através do poeta Wanderley Mendonça, recentemente ofereceram, generosamente e quase quarenta anos depois, uma nova edição deles. Que experiência boa. Cada vez que abro a caixa e os encontro: "Abre", "Open", "Cable", "Change", "Entre", "Impossível", "Luzcor", "Luxo", "Reflete", "Rever", "VivaVaia" e "Voo", descubro algo novo. Cada um deles oferece um jogo, um diálogo, um salto, um assombro. Há vezes em que mostro a caixa para os amigos, com ao Juca noutro dia, que logo começou a tentar entender os cortes, as dobras e a colagem, e a imaginar uma aplicação deles em sua área de trabalho. No início desta semana, após os sucessos do Bloomsday, que comemorei no domingo, lembrei de uma efeméride funesta, os 10 anos da morte de Júlio Plaza, morto em um 17 de junho (logo após um Bloomsday). Resolvi brincar com aquelas folhas novamente e a festa para os sentidos foi garantida. Que beleza! Evoé Júlio Plaza, evoé!
[início - fim: 17/06/2013]
"Poemóbiles", Augusto de Campos e Júlio Plaza, São Paulo: editora Annablume (coleção Demônio Negro), 3a. edição (2010), caixa 19x21 cm., 12 pranchas, ISBN: 978-85-6319804-4 [edição original: Poemóbiles (São Paulo: edição dos autores) 1974]

quinta-feira, 20 de junho de 2013

histórias de paris

Os quatro contos reunidos em "Histórias de Paris" foram produzidos há tempos: "Cinco anos de vida" foi publicado no livro "A morte e outras surpresas", de 1960; "O hotelzinho da rua Blomet" no livro "Com e sem nostalgia", de 1977 e "Só por distração" e "Geografias" no livro "Geografias", de 1984. Todavia, enfeixados nesta edição, que é ilustrada por Antonio Seguí, eles ganham uma unidade temática, pois falam da experiência do exílio, da vida na Europa de personagens que fugiam das ditaduras militares da América Latina. Numa das histórias um casal de exilados uruguaios se reencontra num café, todavia, como quase sempre acontece em ocasiões deste tipo, apesar do desejo são as almas que se reencontram, enquanto os corpos não. Numa outra um casal fica preso por acaso em uma estação do metro e, cinco anos depois, um deles avalia se aquele foi um acaso feliz ou um erro, que poderia ter sido evitado, tivesse ele feito outra cousa naquele dia. Noutra história um casal se reencontra, mas ao contrário da primeira destas quatro, seus corpos se encontram, mas ambos já se metamorfosearam demais para que sobrevivesse neles o antigo amor. A última história é uma alegoria. Benedetti fala da falsa liberdade no exílio, através de um sujeito que vaga pelo mundo sem nunca sentir-se realmente bem, até que distraído, volta inadvertidamente para casa (e para a prisão). As dores do deslocamento forçado dos exilados sempre é enorme. Benedetti alcança em suas pequenas histórias oferecer ao leitor, com leveza, um tanto desta dor. Não é pouco. O livro inclui uma generosa apresentação de Eric Nepomuceno.
[início: 11/06/2013 - fim: 12/06/2013]
"Histórias de Paris", Mário Benedetti, tradução de Paulina Wacht e Ari Roitman, ilustrações de Antonio Seguí, São Paulo: editora Globo (coleção Biblioteca Azul), 1a. edição (2013), brochura 14x21 cm., 65 págs., ISBN: 978-85- 250-5373-2 [edição original: Histórias de París (Barcelona-Madrid, Libros del Zorro Rojo) 2007]

quarta-feira, 19 de junho de 2013

microcosmos

Claudio Magris publicou "Microcosmos" em 1997, durante a violenta fragmentação das repúblicas balcânicas que formavam a antiga Iugoslávia. Assim como em seu fenomenal "Danúbio", em "Microcosmos" Magris faz diversas viagens por uma região e extrai delas uma invenção riquíssima, uma narrativa inventiva, que se é enfim um romance (pois romances são aquilo que um autor afirma serem romances) tem algo de ensaio, de descrição, de crônica, de memória. Desta vez Magris - antes o narrador de Magris - explora tudo o que se irradia culturalmente e historicamente a partir de sua cidade natal, Trieste, lugar onde montanha, campo e mar se encontram. Usando o artifício de registrar conversas descompromissadas em cafés, encontros com amigos, análise do que lê em jornais, visitas a pessoas comuns que experimentaram as transições pelas quais aquela região passou, Magris alcança produzir uma narrativa muito boa de se ler. Trieste, porto importante do Império Austro-Húngaro até o início do século XX, somente tornou-se parte da Itália após a primeira grande guerra mundial, sendo posteriormente dividida com a antiga Iugoslávia, logo após a segunda grande guerra (esta parte sul de Trieste é hoje território da Eslovênia). Mas Magris não fala exatamente da história, mas sim do impacto dos acontecimentos e do tempo no modo de vida das pessoas da região. O narrador de Magris explora as ilhas do Mar Adriático, onde italianos e croatas encontram ainda ecos dos feitos dos gregos que lá viviam; percorre vales em busca de parentes distantes; lembra do longo processo de unificação italiana; experimenta os dialetos que ouve, dialetos que aproximam e afastam as pessoas; sobe montanhas que marcam fronteiras, refúgio de ursos e outras feras, e também abrigo seguro para os homens nos tempos de guerra; visita o Tirol - ou antes a caricatura do que se entende por Tirol - que se divide entre a Áustria e a Itália; vaga por parques e praças, vendo nas esculturas e nos bustos registros de uma história oficial que as pessoas sentadas nos bancos entende de outra forma, mais jocosa e divertida; sonha em uma igreja (num registro francamente autobiográfico). E segue, seja em estações de trem, em parques, em cemitérios, museus, bares e pequenos restaurantes do campo, deixando a gente do povo contar sua história, filtrando algo dela para o leitor. Mas o narrador sabe que as interpretações das coisas mudam com o tempo, sabe que cada época acrescenta uma camada de história e vida naquelas montanhas, naqueles campos, naquele mar. 
[início: 17/03/2013 - fim: 31/05/2013]
"Microcosmos", Claudio Magris, tradução de Roberta Barni, Rio de Janeiro: editora Rocco, 1a. edição (2002), brochura 14x21cm., 251 págs., ISBN: 85-325-1374-3 [edição original: Microcosmi (Milano, Garzanti Libri) 1997]

domingo, 9 de junho de 2013

drive-in

Na falta de uma classificação melhor registro que este é um livro de contos, mas antes é um volume onde estão fixadas narrativas livres, apontamentos para uma discussão, idéias para uma conversa entre pares. Pois nas narrativas reunidas em "Drive-in" encontramos cousas muito distintas entre si, uma espécie de recorte literário de experiências e vivências, de inspirações e epifanias. Tudo parece congelado no tempo, recortado de um diário, inventado e dito naquele momento mesmo em que estamos a ler, tal o inusitado das associações. Algumas das narrativas são fragmentárias, como se o narrador de Márcio Grings precisasse fixar rapidamente um momento em especial, para só depois encontrar, nas frases curtas e soltas, algo que lhes desse alguma eventual coerência. Há textos que são mais orgânicos, onde se contam histórias mais longas e menos enigmáticas. Tudo brota de uma memória afetiva, a memória daquilo que foi vivido pelo narrador (ou pelos heróis cultuados pelo narrador, numa transcriação generosa). O livro insinua uma curiosa trilha sonora, assim como povoa a lembrança do leitor com cenas de filmes, trechos de outros livros, o som de garrafas de whiskey que se encontram, o cheiro de mofadas camas de hotel, o ruído de carros, as cores das luzes de neon entre outros cenários urbanos. Há livros que oferecem um mundo a ser descoberto, mas em geral um mundo já pronto, com sua lógica interna e definitiva, imperturbável. Já outros livros oferecem convites à conversação, ou antes, oferecem uma proposta de compartilhamento de ideias, como num jogo em que faz-se necessário um grupo de participantes para alcançar o entendimento acertado das coisas. Drive-in parece ser um livro deste último tipo e Márcio Grings, uma espécie de mago, de ilusionista, que esconde entre os dedos, encapsulado, algo fundamental e rico para o juízo e deleite do leitor.
[início: 09/05/2013 - fim: 12/05/2013]
"Drive-in", Márcio Grings, Santa Maria: Disco Voador Livros (editora Manuzio), 1a. edição (2013), brochura 11x18 cm., 64 págs., sem ISBN