segunda-feira, 25 de dezembro de 2017

um balanço provisório

Em 2017 entendi na prática as palavras de Flaubert que li há tantos anos: "Meu coração está se transformando numa necrópole". À morte de minha mãe, no final de dezembro de 2016, seguiu-se a de meu pai, no meio de junho. Perdemos também uma de nossas gatas, a Niham. Que praga! Enterrei alguns amigos, perdi-me de outros, outros me erraram, felizmente. Acontece. Li bastante poesia e peças de teatro em 2017. De fato, desde o início de 2007, quando esse "Livros que eu li" fez-se às ondas do rumoroso mar digital, só em 2012 li tantos e bons volumes de poesia. Bueno. Em 2017 fiz 125 registros de leitura, aumentando um tanto a media dos dez anos do blog. Foram 28 romances (22% do total), 19 livros de crônicas ou de ensaios (15%), 19 de contos, 10 de poesia, 10 romances policiais, 7 livros de arte, 6 novelas, 6 peças de teatro, 4 de perfis e memórias, 4 histórias em quadrinhos, 3 infantojuvenis, 3 de turismo, 2 de gastronomia, e um mais ou menos dentro da seguinte classificação: de fotografias, de cartas, catálogo de uma exposição de arte e de aforismos (talvez o mais fundamental deles, o do Ambrose Bierce). Já disse que li bastante boa poesia (Tápia, Medeiros e Aleixo, entre outros) e bons dramas (Shakespeare, nas estimulantes traduções de Botelho, Lawrence e O'Shea; Sófocles, na da Kathrin ); li cousas boas japas (Tanizaki, Kafu, Buson, Murakami); li a excelente biografia de Von Hunboldt; oito bons romances policiais de Donna Leon, 4 belas plaquetes do povo da At it Again. Li os quatro volumes da Série Napolitana de Elena Ferrante. Li o bom Pamuk mais recente. Li poucos livros em inglês (só 5% do total) e em espanhol (6%), talvez meu pior registro histórico. Paciência. Isso se deu pois nunca havia lido tantos autores nacionais. Foram 40 volumes, 32% do total. Alguns foram gratas surpresas, outros merecem uma releitura, mas não me entusiasmaram tanto assim. Aqueles que deixei de 2016 para ler em 2017 continuaram no limbo das promessas e dos planos, aquela zona fantasma, muito embora eu tenha avançado um bocado no Tristram Shandy traduzido pelo Javier Marías. Foram 0,35 livros por dia, 2,46 por semana, 10,5 por mês. Foram aproximadamente 2/3 livros de ficção, 1/5 de não ficção e 1/5 de bons divertimentos, seguindo o bom conselho do Montaigne. Ajudei minimamente o industrioso Abdon Grillo a editar seu estudo sobre o Ulysses, que será lançado no início de fevereiro, no dia de aniversário do Joyce. Que alegria. Acompanhei os sucessos das meninas da famiglia, Helga e Natália, que receberá seu título de bacharelado em Psicologia em breve, no próximo dia 06. Viajei bastante, conheci alguns lugares realmente interessantes do interior do Brasil. Em 2018 haverá mais boa poesia, haverá os haikus do Bachô editados em Portugal, os novos livros de Sérgio Medeiros e Ricardo Aleixo, a leitura do Finnegans Wake da Dirce do Amarante, as novas transcrições caetnogalindescas, a sempre postergada biografia do Johnson. Haverá mais Donna Leon, gostei do estilo dela. O Javier Marías deverá lançar mais um livro com suas crônicas semanais reunidas. Haverá mais biografias e coisas musicais. Pretendo voltar aos gregos e aos mitos. Talvez irei seguir o conselho de um amigo de longe, para fazer registros das leituras antigas, prévias a existência do blog. É uma ideia ainda bruxuleante. Haverá Copa do mundo de futebol, eleições, um Bloomsday Santa Maria novo. Talvez eu volte para a Irlanda, desta vez com a Helga. Logo veremos. É isso. Vale!

quinta-feira, 21 de dezembro de 2017

refusões

"Refusões", de Marcelo Tápia, é o maior portento poético que li no ano (o maior portento que li em prosa foi "Berta Isla", de Javier Marías). "Refusões" desdobra-se em seis volumes, reunindo a produção poética de Tápia, de 1982 a 2017. Trinta e cinco anos de boa poesia é para poucos. Tápia fez girar sua roda da fortuna, acrescentando a "Primitipo" (1982), "O Bagatelista" (1985), "Rótulo" (1990), "Pedra Volátil" (1996) e "Valor de Uso" (2009), um novíssimo e estimulante volume, "Expirais". Conhecia já quase todos desde os tempos de minha encarnação paulista, quando frequentava a USP e os Bloomsday paulistanos, capitaneados por Haroldo de Campos e secundados pelos cavaleiros da távola haroldina, Tápia dentre eles sempre o mais industrioso. Sobre "Valor de Uso", de 2009, já registrei algo aqui (clica!). Foi um bom exercício voltar a cada um dos volumes, sair do "Expirais" e lentamente acompanhar o corsi e ricorsi marcelotapiano. Na curta e seminal introdução, Tápia explica tudo o que precisa ser dito com a chave da inteligência sobre o "Refusões". Ele precisa seu procedimento, informando que nem todos os poemas originais foram republicados, que alguns foram alterados, cortados, ilustrando que após nossas contínuas metamorfoses eventualmente temos a fortuna de nos tornar mais sábios e melhores leitores de nós mesmos, compreendendo melhor com as cãs da experiência aquilo  que forjamos no tempo. Tápia, também um Janus redivivo, nos diz em sua introdução como vê a gênese e a lógica de sua produção do passado e decifra algo daquilo que agora entende como seu projeto (ele chama esse procedimento de emancipação de "uma 'fórmula' antes enunciada"). Para usar um símile da mecânica, Tápia parece aplicar o princípio de Hamilton à seu ofício, encontrando nesse conjunto de livros/poemas antigos e no novo "Expirais" a trajetória artística que sempre alcançou o valor extremo de sua ação, sua poesia. A refinada edição da Perspectiva inclui textos críticos de Jaa Torrano, Susana Busato, Antonio Vicente Pietroforte,  Aurora Bernardini e Rodrigo Bravo. Cada um desses textos oferece ao leitor ferramentas de entendimento e apreciação à poesia do Tápia. E o leitor não pode deixar de acessar a página do livro no site da editora Perspectiva. Tápia lê trinta de seus poemas. Vale a pena conferir e desfrutar da dicção e entonação dele: Clica!. Enfim, não será nesse curto registro de leitura que alcançarei apresentar a potência e riqueza de soluções poéticas de cada um dos seis livros reunidos. Na falta de um registro próprio para cada um dos livros, só sintetizo aqui: (i) que no último poema de "Primitipo",  seu primeiro livro, o poeta já cantava que "expira espirais do tempo / que rola no rio d'infância", remetendo o leitor à ideia geral de seu livro mais recente; (ii) que no "O Bagatelista" encontramos poemas visuais à la Bossa, à la e.e. cummings, poemas signo; (iii) que "Rótulo" é um livro de ismos, de um homem sociológico que usa as ferramentas de ofício e ironia bruta, para perscrutar verdades e mentiras; (iv) que em "Pedra Volátil" se fala da paisagem urbana, de causos históricos e políticos, explicita o Tápia forte, leitor de outros poetas fortes; (v) que "Valor de uso" talvez seja o mais musical, é o que mais gosto de ler em voz alta; (vi) que "Expirais" é puro deleite, em imagens, invocações, sínteses. O aedo procura uma musa perdida, é menos explícito quanto às fontes e inspirações, labuta para não deixar oxidados poemas, faz anamnese da vida inteira, faz brotar a memória caipira, concretiza tudo, sai a navegar, mediterrâneo e genealogia afora. Que conjunto, que alegria. Evoé Marcelo, Evoé. ÔBeleza. E Vale! 
Registro #1250 (poesia #91)
[início: 16/06/2016 - fim: 19/12/2017]
"Refusões: poesia reunida 2017-1982", Marcelo Tápia, São Paulo: Editora Perspectiva, 1a. edição (2017), brochura 15x20,5 cm., 448 págs., ISBN: 978-85-273-1099-4
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Balanço final 2017
Em 2017 entendi na prática as palavras de Flaubert que li há tantos anos: "Meu coração está se transformando numa necrópole". À morte de minha mãe, no final de dezembro de 2016, seguiu-se a de meu pai, no meio de junho. Perdemos também uma de nossas gatas, a Niham. Que praga! Enterrei alguns amigos, perdi-me de outros. Acontece. Li bastante poesia e peças de teatro em 2017. De fato, desde o início de 2007, quando esse "Livros que eu li" fez-se às ondas do rumoroso mar digital, só em 2012 li tantos e bons volumes de poesia. Bueno. Em 2017 fiz 125 registros de leitura, aumentando um tanto a media dos dez anos do blog. Foram 28 romances (22% do total), 19 livros de crônicas ou de ensaios (15%), 19 de contos, 10 de poesia, 10 romances policiais, 7 livros de arte, 6 novelas, 6 peças de teatro, 4 de perfis e memórias, 4 histórias em quadrinhos, 3 infantojuvenis, 3 de turismo, 2 de gastronomia, e um mais ou menos dentro da seguinte classificação: de fotografias, de cartas, catálogo de uma exposição de arte e de aforismos (talvez o mais fundamental deles, o do Ambrose Bierce). Já disse que li bastante boa poesia (Tápia, Medeiros e Aleixo, entre outros) e bons dramas (Shakespeare, nas estimulantes traduções de Botelho, Lawrence e O'Shea; Sófocles, na da Kathrin ); li cousas boas japas (Tanizaki, Kafu, Buson, Murakami); li a excelente biografia de Von Hunboldt; oito bons romances policiais de Donna Leon, 4 belas plaquetes do povo da At it Again. Li os quatro volumes da Série Napolitana de Elena Ferrante. Li o bom Pamuk mais recente. Li poucos livros em inglês (só 5% do total) e em espanhol (6%), talvez meu pior registro histórico. Paciência. Isso se deu pois nunca havia lido tantos autores nacionais. Foram 40 volumes, 32% do total. Alguns foram gratas surpresas, outros merecem uma releitura, mas não me entusiasmaram tanto assim. Aqueles que deixei de 2016 para ler em 2017 continuaram no limbo das promessas e dos planos, aquela zona fantasma, muito embora eu tenha avançado um bocado no Tristram Shandy traduzido pelo Javier Marías. Foram 0,35 livros por dia, 2,46 por semana, 10,5 por mês. Foram aproximadamente 2/3 livros de ficção, 1/5 de não ficção e 1/5 de bons divertimentos, seguindo o bom conselho do Montaigne. Ajudei minimamente o industrioso Abdon Grillo a editar seu estudo sobre o Ulysses, que será lançado no início de fevereiro, no dia de aniversário do Joyce. Que alegria. Acompanhei os sucessos das meninas da famiglia, Helga e Natália, que receberá seu título de bacharelado em Psicologia em breve, no próximo dia 06. Viajei bastante, conheci alguns lugares realmente interessantes do interior do Brasil. Em 2018 haverá mais boa poesia, haverá os haikus do Bachô editados em Portugal, os novos livros de Sérgio Medeiros e Ricardo Aleixo, a leitura do Finnegans Wake da Dirce do Amarante, as novas transcrições caetnogalindescas, a sempre postergada biografia do Johnson. Haverá mais Donna Leon, gostei do estilo dela. O Javier Marías deverá lançar mais um livro com suas crônicas semanais reunidas. Haverá mais biografias e coisas musicais. Pretendo voltar aos gregos e aos mitos. Talvez irei seguir o conselho de um amigo de longe, para fazer registros das leituras antigas, prévias a existência do blog. É uma ideia ainda bruxuleante. Haverá Copa do mundo de futebol, eleições, um Bloomsday Santa Maria novo. Talvez eu volte para a Irlanda, desta vez com a Helga. Logo veremos. É isso. Vale!

terça-feira, 19 de dezembro de 2017

antologia da poesia clássica chinesa

No 19 de dezembro do ano passado, funesto dia, morreu doña Victória Medici Severino, minha mãe. Era fim de primavera e ela, como as flores que amava, sempre prática, porém cansada, não quis suportar as intermitências de mais um abrasivo verão. Em uma das viagens que fiz a São Paulo para vê-la, nos dias que antecederam sua morte, comprei esse "Antologia da poesia clássica chinesa". Assim como fiz com a antologia de poemas do Sebald, que comprei na mesma época, fui lendo esses poemas aos poucos, numa ração diária, aleatória, que acontecia quando chegava em casa, ainda aborrecido com o rumor e a indigência das ruas. Doña Vic, não nasceu chinesa, nem zen, era brasileira e católica, mas viveu seus quase 87 anos serena, rodeada de flores, propagando carinho e gentilezas, como só algumas pessoas alcançam aprender a fazer. Os 204 poemas reunidos nessa antologia foram vertidos para o português por Ricardo Primo Portugal e Tan Xao, patrocinados pelo Instituto Confúcio, organização que promove a língua e cultura chinesa. Há pelo menos dez institutos Confúcio instalados no Brasil, sediados junto a instituições de ensino superior. No caso desse volume, os tradutores contaram com o apoio do Instituto Confúcio na UNESP.  São 34 os autores reunidos na antologia, viventes do período conhecido por Dinastia Tang, entre 618 e 907. Os tradutores lembram que Haroldo de Campos louvava a poesia deste período por sua "concisão, aforismático vigor, plasticidade visual, sustentada surpresa e sentimento de inacabado". Ele mesmo foi artífice de transcrições de poemas deste período, num volume precioso, o "Escrito sobre Jade", de 1996. A maior parte dos poemas reunidos nessa antologia foram criados nas métricas conhecidas como octetos regulares e quartetos regulares, mas também estão incluídos poemas que seguem um estilo mais antigo, da dinastia anterior, Han, algo mais eruditos, associados a canções populares. Pode-se dizer que esses poemas foram engendrados em versos livres, mas os tradutores lembram aquele aforismo de Eliot, que diz "nenhum verso é livre para aquele poeta que quer fazer um bom trabalho". O livro inclui uma longa introdução, assinada pelos tradutores, na qual dão conta dos elementos estruturais da poesia clássica chinesa; seus estilos, formas e metrificação; aspectos semântico-lexicais; regras de transliteração; bem como algo sobre a história da China e da Dinastia Tang. Dos 34 autores os mais conhecidos e seminais, segundo os tradutores, são Lu Bai, Du Fu, Meng Haoran, Wang Wei e Ban Juyi. Os poemas são acompanhados de notas, que falam da geografia chinesa, de aspectos mitológicos, questões religiosas, feitos bélicos (decorrentes das contínuas guerras entre os povos chineses nos séculos VII, VIII, IX e X.), questões semânticas e metafóricas (associadas aos procedimentos tradutórios), atentam às imagens criadas, à historia taoista. Os autores ganham uma pequena biografia, onde restam contextualizas obra e vida de cada um. Muitos eram funcionários públicos da sempre imensa burocracia chinesa, outros monges budistas, iluminados, em contínua reclusão, outros ainda, artistas completos, que também pintavam, dominavam a música e a caligrafia. Os poemas cantam os picos sagrados do taoísmo, celebram a placidez da águas dos lagos, festejam a chegada da lua cheia, falam de gansos e corvos, da vida campestre e das paisagens, dos salgueiros e do jade, das peônias e do lótus, do vento que sopra, dos sonhos e dos desejos, louvam a contemplação, o silêncio, os gestos medidos, fixam em versos as cores e a força que emana das mudanças de estação. O leitor curioso pode acompanhar algo do livro num curto vídeo feito quando do lançamento, em 2013: clica!. Enfim, dos 204 poemas da antologia transcrevo apenas um, de Zhang Jiuling: "Depois, senhora, que partiste, / nada mais cuido a esta vida. / Mudei, como a cheia lua: / cada noite diminuo." Boa noite doña Vic, que, em seu voo, os anjos continuem a cantar para teu descanso. 
Registro #1249 (poesia #90)
[início: 19/12/2016 - fim: 19/12/2017]
"Antologia da poesia clássica chinesa - Dinastia Tang", Ricardo Primo Portugal e Tan Xao (organizadores), São Paulo: Editora UNESP, 1a. edição (2013), capa-dura 16,5x24 cm., 310 págs., ISBN: 978-85-393-0399-1

sábado, 16 de dezembro de 2017

barcelonas

Lá em maio, ainda quando lia o bom "Homenagem a Barcelona", de Colm Tóibín, resolvi começar a folhear "Barcelonas", mimo que carrego comigo há décadas. Ato contínuo "I was drowning in honey, stingless", como sempre deve ser. Manuel Vázquez Montalbán escreveu o robusto  texto desse livro, que inclusive inspirou e foi confessadamente utilizado por Tóibín na elaboração do seu, como material de divulgação dos Jogos Olímpicos de Barcelona, que seriam celebrados em 1992. Mas se o que escreve Montalbán é seminal, rico e detalhado, repleto de informações e poesia, são as ilustrações, reproduções fotográficas, desenhos e imagens incluídas no livro que nos enfeitiçam, conduzem nosso olhar, quase nos impedindo acompanhar cada página de leitura até o fim. Talvez esse prodígio seja culpa do desenho gráfico do livro, assinado por Ferràn Cartes, um respeitado artista plástico catalão. Montalbán divide seu livro em seis grandes seções. "Desde as colinas", onde treina o olhar do leitor, fazendo-o acompanhar a geografia da cidade quando vista do alto, do Tibidabo, de Vallvidrera (habitat de Pepe Carvalho, seu personagem icônico), de Montjuïc, e também de suas sete modestas colinas, como as de Roma em número (os catalães são sempre tremendos em suas ambições): Monterols, Putxet, Creueta del Coll, Carmel, Rovira, Peira e Modollell. "Las ciudades sumergidas" percorre o tempo, as camadas de povos e culturas que se fixaram naquela região onde hoje vivem os catalães, importante centro comercial do Mediterrâneo desde tempos remotos. Em "El hombre libre en la ciudade libre" quem se sobressai são os indivíduos, em número anônimos, mas quando são identificados tornam-se na visão de Montalbán quase heróis, fadas, portentos (Montalbán descreve aqui e nas duas seções seguintes os períodos trágicos da cidade, sempre as voltas com um desejo de independência baldado; as fotografias destas três seções são soturnas, pesadas, carregadas de mágoa). A seção seguinte, "La Bem Plantada", conta a arquitetura, a engenharia, a distribuição dos equipamentos urbanos, a vocação da cidade para aceitar planejamentos que a modificam sem que a magia original se perdesse; fala dos bares, teatros e museus, dos desastres que a guerra civil provocou nas ruas, nas esculturas, nos bairros, nas edificações, e nas gentes, claro. "La ciudade ocupada" fala de como corações e mentes catalãs se resignaram nos anos da ditadura franquista, de como se operou o milagre da transição para a democracia, a reconstrução moral da cidade ocupada, como o título explicita. "Milênio" encerra o volume, prospecta um futuro, um porvir, uma possibilidade. Montalbán fala sobretudo dos projetos urbanos que serão feitos para os Jogos Olímpicos (a decisão havia sido tomada há pouco, em 1986), mas também fala do reerguimento da auto estima da cidade, da oportunidade, da possível volta da magia, da renovada utopia. Quase tudo o que foi escrito em 1987 ainda vale hoje, trinta anos depois. Inegavelmente os Jogos Olímpicos foram um sucesso e a cidade tornou-se um local de turismo privilegiado e marcante. Montalbán foi também um poeta, foi um homem otimista, sempre acreditou na capacidade de uma coletividade vencer qualquer obstáculo, qualquer desafio. Ele filtra com esses seus olhos confiantes uma sociedade complexa, que talvez tivesse mais matizes sociais do que ele era capaz de aceitar. Reli esse livro sobretudo por conta do que aconteceu na Catalunha neste ano. A tentativa da Generalitat de Catalunya (capitaneada por Carles Puigdemont) de forçar sua separação do Estado Espanhol, declarando unilateralmente a independência, em outubro, implicou em uma intervenção na Generalitat, a fuga de Puigdemont  e vários outros diputats independentistas para a Bélgica e a convocação de eleições gerais para o próximo 21 de dezembro. Ninguém sabe dizer hoje qual será o resultado prático das eleições. Ganhem os grupos nacionalistas ou os independentistas a questão da identidade catalã não se tornará por mágica menos complicada, menos tensa, menos humilhante para os catalães. Logo saberemos. Talvez eu acrescente um post-scriptum nesse registro, contando os sucessos das eleições. Vamos ver. Vale!
Registro #1248 (perfis e memórias #83)
[início: 10/05/2017 - fim: 15/12/2017]
"Barcelonas", Manuel Vázquez Montalbán, Barcelona: Editorial Empúries / Grup62, 1a. edição (1987), capa-dura 31,5x31,5 cm., 247 págs., ISBN: 84-7596-145-5

quarta-feira, 13 de dezembro de 2017

falcó

Primeiro volume de uma prometida série, "Falcó" garante momentos de diversão descompromissada para o leitor curioso sobre a guerra civil espanhola. Arturo Pérez-Reverte é um mestre na arte de escrever já pensando em uma possível adaptação cinematográfica. Claro, ele abusa sem dó dos clichês de livros de espionagem, do cinema noir, dos romances de aventuras e mistério, onde homens duros flertam com mulheres fatais, mas sabe povoar seu livro com um bom conjunto de protagonistas, produz diálogos inteligentes e controla o desenvolvimento das ações de seu folhetim até levá-lo a um insuspeitado final (a coisa não fica longe de ser caricata, mas quem se importa, se acabamos nos divertindo e aproveitando os truques narrativos que ele distribui pelo livro). Lorenzo Falcó é uma espécie de contraponto cínico ao heroico e valoroso Capitão Alatriste, personagem já consagrado de Pérez-Reverte. Reconhecido especialista em termos militares, Pérez-Reverte identifica sempre que possivel os modelos das armas, os tipos de granada e morteiros, caminhões de transporte, navios e indumentária utilizada pelos personagens. Falcó, um ex-contrabandista de armas, é um agente dos nacionalistas, grupo daquele que viria a tornar-se o ditador da Espanha por trinta e cinco anos, Francisco Franco. Acostumado a infiltrar-se nas linhas inimigas, a dos republicanos, ele sabe torturar e aguentar tortura, matar e escapar da morte. A trama envolve um possivel resgate de José Antônio Primo de Rivera, líder dos falangistas, grupo que apóia Franco, mas é um tanto mais radical, à direita, e está preso em Alicante. O livro é curto. Lê-se facilmente em poucas horas. O leitor não precisa saber detalhes da guerra civil espanhola para acompanhar a narrativa. Soube que há pouco mais de um mês Pérez-Reverte lançou o segundo volume da série, "Eva", onde reecontraremos Falcó em mais aventuras. Dificil dizer se esse personagem cairá no gosto do grande público, a exemplo de Alatristre. A Espanha é um país em que as marcas das divisões ideológicas daquela época ainda são visíveis e reepercutem na política contemporânea. Nem só de hipocrisia vive uma sociedade (sabemos bem nós, brasileiros, aferrados hipocritamente até a morte às nossas mazelas, narrativas históricas tortas e tontas, mentiras públicas, vícios privados, auto-enganos e ilusões coroadas). Arre. Vamos em frente. Vale!
Registro #1247 (romances #329)
[início: 23/11/2017 - fim: 25/11/2017]
"Falcó", Arturo Pérez-Reverte, Barcelona: Alfaguara / Penguin Random House Grupo Editorial, 1a. edição (2016), capa-dura 16x24,5 cm., 294 págs., ISBN: 978-84-204-1968-8

sábado, 9 de dezembro de 2017

free women, free men

Comprei esse livro ainda em abril, mas os serviços alfandegários brasileiros, ineficientes e canalhas como sabem ser, me fizeram recebê-lo apenas em julho. Em "Free Women, Free Men" encontramos 36 ensaios robustos, onde Camille Paglia apresenta sua visão bastante particular e provocadora sobre feminismo, sexo e gênero. Mais precisamente, encontramos no livro os três primeiros capítulos de seu livro mais contundente, "Personas Sexuais", de 1990; três transcrições de palestras ou conferências acadêmicas; três resenhas literárias; cinco transcrições de entrevistas; vinte e dois ensaios independentes, publicados originalmente em revistas e jornais americanos e ingleses. O conjunto também pode ser dividido cronologicamente, em dois grandes blocos: dezenove são textos relativamente antigos, dos anos 1990, associados a repercussão de "Personas Sexuais", e quatorze mais recentes, dos anos 2010. O leitor não precisa ler os ensaios do livro sequencialmente, na ordem em que foram editados. Há uma natural repetição de temas e informações, mas isso não chega a aborrecer o leitor. É inegável que cada um deles se defende sozinho e oferece um festival de associações ("Personas Sexuais" é imbatível, qualquer pessoa honesta intelectualmente que trabalhe com esses assuntos não pode furtar-se de lê-lo). Alguns ensaios são panfletos marcadamente políticos, mais agressivos, incisivos, categóricos; em outros o tom é mais professoral, acadêmico, frio, mas sem condescendência. Há vários ensaios em que Camille defende seus argumentos sobre política sexual, mídia e o papel das universidades como foro de discussão; noutros encontramos abordagens acadêmicas sobre a história do feminismo, estética, cultura pop, a história das lutas pelas liberdades civis nos Estados Unidos. No fundo seu tema principal não é exatamente o feminismo, a luta por igualdade de gênero, mas sim a cultura, a evolução da cultura como núcleo central de coesão entre seres humanos de diferentes lugares do planeta, origens étnicas e gêneros. É interessante como ela antecipa, nos artigos dos anos 1990, a ascensão de uma geração de acadêmicos dedicados aos temas de feminismo e gênero que não alcançaram uma formação adequada, fatalmente contaminados por retóricas foucaultianas, lacanianas, desconstrutivistas e marxistas. Segundo ela, sem perspectiva histórica, literária, antropológica e sem incorporar a realidade das diferenças biológicas entre homens e mulheres, qualquer debate ou pauta feminista está condenada ao fracasso, a discussão circular, estéril. Anotei uma miríade de argumentos e passagens divertidas, certamente polêmicas e explosivas, mas prefiro citar apenas duas, uma das antigas e outra bem recente: " What I represent is the essence of the Sixties, which is free thought and free speech. And a lot of people don't like it. A lot of people who are well-meaning on both sides of the political spectrum want to shut down free speech. And my mission is to be absolutely as painful as possible in every situation." (de uma palestra proferida no MIT, Massasshussets Institute of Technology, em 1991, num debate sobre a crise das universidades americanas) e "It is difficult to understand how a generation raised on the slapdash jumpiness of Twitter and texting will ever develop a logical, coherent, distinctive voice in writing and argumentation, And without strong books and essays as a permanent repository for new ideas, modern movements eventually sputter out for lack of continuity and rationale. Hasty, blathering blogging (without taking time for reflection and revision) is also degrading the general quality of prose writing." (de uma entrevista publicada em uma revista britânica, em 2014). Bom divertimento. Vale!
Registro #1246 (crônicas e ensaios #222)
[início: 12/08/2017 - fim: 07/11/2017]
"Free Women, Free Men: Sex, Gender, Feminism", Camille Paglia, New York: Pantheon Books / Penguin Random House, 1a. edição (2017), capa-dura 14,5x21,5 cm., 319 págs., ISBN: 978-0-375-42477-9

terça-feira, 5 de dezembro de 2017

a arte da ficção

Se no "Breve história da literatura", de John Sutherland, que registrei há poucos dias, acompanhamos a vertigem de 3000 anos de literatura condensadas em 300 páginas, em "A arte da ficção" somos apresentados às técnicas que condicionam e explicam a prosa ficcional (oká, um tanto menor é a pretensão de Lodge, mas os vastos limites das duas propostas jamais são alcançados). Sutherland e Lodge são contemporâneos, nascidos na Inglaterra, nos anos 1930. Ambos fizeram carreira acadêmica nas melhores universidades inglesas, Lodge, em Birmingham, Sutherland, em Londres. As edições originais dos dois livros aconteceram em momentos diferentes. Sutherland publicou bem recentemente seu portento sobre a história da literatura (talvez seja o caso de enfatizar que ele se concentra vividamente na literatura inglesa); Lodge, publicou nos anos 1990 o seu (e igualmente enfatiza os romances escritos em inglês em seus exemplos). Enfim, em "A arte da ficção" encontramos 50 breves comentários, 50 tópicos, sobre algum aspecto da arte ficcional, publicados originalmente nas páginas do jornal "The Independent on Sunday" (tratava-se de um contraponto a uma outra série, "Ars Poetica", dedicada aos aspectos gerais da arte poética, escritos pelo poeta James Fenton). Lodge fala de como se começa e como se termina um romance; como se escolhem os nomes dos livros e dos protagonistas; como se conduz a narrativa, se manipula o tempo, se experimenta, escolhe e enfatiza vozes; como as ferramentas retóricas e linguísticas se prestam ao exercício da ficção; como evoluiu essa nobre arte e ofício; quem são os teóricos relevantes; quais são os termos dominantes; o quê diferencia um romancista de um beletrista amador. O livro destina-se ao leitor comum (complicado é encontrar um leitor comum que aceite essa condição de alvo). O formato é prático: Lodge transcreve um trecho de um determinado livro e o usa para exemplificar um aspecto de uma das técnicas narrativas. Por vezes ele fala mais do enredo daquele livro que usou como exemplo, noutras o que se enfatiza é o conceito da técnica que explica aquele efeito. Estranhei alguns termos e palavras usados pelo tradutor. Too much theory, I suppose! Paciência (que não tive, já que não me preocupei em ir atrás do que mesmo pensavam Bakhtin, Todorov e outros tantos formalistas russos sobre esses assuntos). De qualquer forma, interessante. Bom divertimento. 
Registro #1245 (crônicas e ensaios #221)
[início: 19/11/2017 - fim: 30/11/2017]
"A arte da ficção", David Lodge, tradução de Guilherme da Silva Braga, Porto Alegre: editora LPM, 1a. edição (2009), brochura 14x21 cm., 246 págs., ISBN: 978-85-254-1859-3 [edição original: The Art of Fiction (London: Secker and Warburg / Harvill Secker / Penguin Random House Group) 1992]

sexta-feira, 1 de dezembro de 2017

uma breve história da literatura

Escrito em uma linguagem direta, sem afetações e até bem humorada, esse pequeno livro pode ser utilizado por estudantes e jovens leitores para alcançarem uma visão panorâmica da literatura. Obviamente não é possível que o leitor encontre nele digressões aprofundadas sobre cada um dos temas, tendências ou autores que se espalham em mais de três mil anos de história literária, dos mitos e lendas transmitidas oralmente por nossos antepassados até a miríade de textos disponíveis hoje, acumulados digitalmente. John Sutherland é um especialista renomado, autor de livros acadêmicos em que faz crítica literária e biográfica (sobretudo de autores do período vitoriano). É professor emérito da Universidade de Londres (University College London, to be precise). Um leitor mais exigente reclamará do quão ligeiros são os comentários dedicados a seu autor favorito; pedagogos não irão gostar do esquematismo da proposta, da associação direta entre grandes impérios, grandes civilizações e alta literatura; especialistas em literaturas de línguas não inglesas rechaçarão com veemência a ausência de seus cânones; feministas, grupos étnicos ou autores filiados a algum dos infinitos nichos literários deste nosso século XXI sentir-se-ão no mínimo ofendidos. Entretanto nem tudo é literatura de língua inglesa no livro de Sutherland; Jane Austen só é citada menos vezes que Dickens; há um bocado de informação sobre literatura pós-colonial, realismo mágico latino-americano, autores orientais; e ele fala um bocado sobre a ausência de fronteiras literárias no mundo contemporâneo. Mas o que pode ser dito de um assunto tão vasto em um livro de apenas 300 páginas? O que realmente dá estofo ao livro é a qualidade da prosa de Sutherland. Ele deve/devia ser um notável professor, com capacidade de síntese e a rara habilidade de buscar em detalhes que parecem irrelevantes a exemplificação de conceito bastante complexos. Os quarenta capítulos são basicamente independentes, uma rápida consulta ao índice pode levar o leitor a um assunto específico. A maioria deles não trata de um autor em particular, mas sim de um tema, cronologicamente definido. Sutherland também enfatiza as transições dos hábitos de leitura; fala sobre o objeto livro, que nunca poderá ser melhorado, como já nos ensinou Umberto Eco; sobre aquilo que poderíamos ler em um mundo onde a oferta de títulos é, convenhamos, infinita. Trata-se de um sujeito otimista, que acredita no poder das ferramentas tecnológicas contemporâneas de recuperar algo dos primórdios da aventura humana, quando a literatura era uma coisa falada, contada ao redor de um fogo. Para ele essas tecnologias possibilitarão mais diálogo comunitário, a construção de novas narrativas globais, que darão conta do assombro que todos nós, homo sapiens, experimentamos desde as cavernas, por mais cínicos que aprendemos a ser. No site de sua editora (a Yale University Press), encontrei Sutherland a falar de seu livro num curto teaser: clica! Vale a pena conferir. Bom divertimento. 
Registro #1244 (crônicas e ensaios #220
[início: 12/11/2017 - fim: 17/11/2017]
"Uma breve história da literatura", John Sutherland, tradução de Rodrigo Breunig, Porto Alegre: editora LP&M, 1a. edição (2017), brochura 14x21 cm., 311 págs., ISBN: 978-85-254-3660-3 [edição original: A Little History of Literature (New Haven/Connecticut: Yale University Press) 2013]