domingo, 24 de julho de 2011

paraísos artificiais

Durante o Bloomsday deste ano, cá em Santa Maria, no memorável encontro de don Caetano Galindo e don Lawrence Flôres, dois grandes tradutores e professores lá na CESMA, eis que ambos falaram com entusiasmo do poeta e também tradutor Paulo Henriques Britto. Eu tenho um ouvido manco para poesia mas encontrei nos meus guardados este livro de contos dele. Li agora e fiquei surpreendido. Como estes contos são bons. Fiquei igualmente surpreendido ao saber que quase todos foram produzidos originalmente no início dos anos 1970 e depois burilados e retrabalhados por anos (nos intervalos entre as traduções, a produção de poesia e a docência, certamente). São nove histórias, a menor, que dá nome ao livro, com quatro páginas (é um conto que funciona como um coro, justificando o que virá a seguir) e a maior com quarenta e cinco, o conto "os sonetos negros", uma poderosa narrativa escrita na forma de diário, que fala do mundo complexo (em que se misturam altas ambições e constatações bizarras) daqueles que se aventuram em um projeto de pesquisa com fins de produzir uma tese (sempre lembro de don Fernando Landgraf falando da falta de um bom livro onde as paixões e maluquices do mundo acadêmico deveriam ser ser registradas). Os demais contos são igualmente muito bons. São histórias onde os narradores estão em situações difíceis, em que têm tomar decisões não habituais. Em uma um sujeito que é acordado por uma voz, mas não se atreve a abrir a porta para receber o suposto amigo; noutra um sujeito é convidado para uma ceia de Natal, e tem de suportar por toda a noite, uma pessoa que ele mal conhece; em uma terceira o narrador fala das dificuldades de convivência com seu colega de quarto e uma pequena planta, que o incomoda; em outra um rapaz passa uns dias terríveis com parentes afastados, que aparentemente têm prazer em humilhá-lo. Estas quatro histórias (respectivamente "Uma visita", "Coisa de família", "O companheiro de quarto" e "O primo") foram as que mais gostei. Além delas há "O 921", um conto kafkiano, de um sujeito que se perde pela periferia de uma grande cidade, sem entender exatamente as atribulações pelo qual está passando; "Uma doença", onde Henriques Britto fala de um sujeito preso a uma cama, de onde faz a cartografia as paredes de seu quarto; "Um criminoso", onde somos apresentados a um sujeito, incomodado com o ruído de uma festa em seu prédio, faz o censo do que vê pela janela. As histórias são coloquiais, os diálogos bem construídos, nada soa artificial. Um dia destes vou ler seus livros de poesias, mas que cousa boa ler contos tão bons assim. [início 16/07/2011 - fim 24/07/2011]
"Paraísos artificiais", Paulo Henriques Britto, São Paulo: editora Companhia das Letras, 1a. edição (2004), brochura 14x21 cm, 127 págs. ISBN: 978-85-359-0591-5

quarta-feira, 20 de julho de 2011

figuraciones del yo en la narrativa

Este é um livro didático, onde se aprende um bocado sobre as técnicas narrativas e sobre os livros de dois grandes escritores espanhóis: Javier Marías e Enrique Vila-Matas. Seu autor, José María Pozuelo Yancos, é professor da Universidade de Múrcia, na quase sempre estival España. Em meados de 2009 ele organizou uma disciplina em um dos cursos de doutoramento da City University of New York (que mantém uma "cátedra", a Miguel Delibes, dedicada a estudos hispânicos). Esse livro, "Figuraciones del yo en la narrativa", é resultado das conferências proferidas neste curso. Como qualquer bom trabalho acadêmico o livro contém generosas notas de pé de página e referências detalhadas. O livro é dividido em três partes. A primeira ele dedica a precisar seu conceito de "figuração do eu narrador" e discutir, sobretudo, as diferenças entre livros autobiográficos e autoficcionais. Ele parte da poética de Aristóteles (dos conceitos de verossimilhança e necessidade na construção de representações da verdade na literatura) para alcançar o entendimento de como ambos mesclan ficção e ensaio em suas obras literárias mais poderosas. Para mim, não exatamente treinado com esta terminologia, foi a parte mais árida e difícil de acompanhar. As duas partes seguintes são dedicadas a analisar as obras de Marías (na verdade só o ciclo fundamental "Todas las almas", "Negra espalda del tiempo" e "Tu rostro mañana") e Vila-Matas (especificamente o conjunto "Historia abreviada de la literatura portátil", "Bartleby y compañia", "El mal de Montano", "París no se acaba nunca" e "Doctor Pasavento"). Um leitor familiarizado com Marías e Vila-Matas (sobretudo com estes livros, vários deles já resenhados aqui) acompanha os pontos de vista de Pozuelo Yancos sem muita dificuldade. Ele sabe ser convincente. Aprendemos que nos livros de ambos há sempre um jogo sutil entre a figura do autor, dos narradores e dos personagens. Somos lembrados que o leitor tem de se adestrar aos procedimentos utilizados pelos dois escritores em suas narrativas, para melhor fuir as maravilhas que ambos criam. Claro, um livro deste tipo não substitui o prazer de ler os originais, mas ajuda o leitor a entender os sistemas de referências, as paródias, as reiteradas citações, a metalinguagem e a história da construção do estilo de cada autor. Eu, mais simpático aos romances e livros de ensaios produzidos por Marías, fiquei curioso por entender melhor (e ler mais) os romances de Vila-Matas. Mas claro, cabeça dura como sou, sempre que tiver tino e tempo escolherei reler os livros de Javier Marías. [Cabe aqui uma nota curiosa: já pelo meio da leitura perdi este livro em um ônibus da viação Nossa Senhora das Dores, aqui de Santa Maria. Todavia, os anônimos cobrador e motorista do ônibus e os atendentes Pamela e Claudiomir, da gerência, fizeram o livro voltar rapidamente às minhas mãos. Sou muito grato a eles. Apesar do que sempre digo, o mundo não está exatamente podre e perdido.] Vale. [início 06/06/2011 - fim 20/07/2011]
"Figuraciones del yo en la narrativa: Javier Marías y E. Vila-Matas", José María Pozuelo Yancos, Castilla y León: editorial Universidad de Valladolid (Ensayos literarios, cátedra Miguel Delibes), 1a. edição (2010), capa-dura 13,5x22 cm, 231 págs. ISBN: 978-84-8448-542-1

terça-feira, 19 de julho de 2011

a página assombrada por fantasmas

Javier Marías em seu "Vida de fantasma" diz que todo escritor se assemelha a um fantasma, pois fala e influencia, mas nem sempre se deixa ver, ao desaparecer ou se calar por longos períodos; é fantasma quando luta contra seus medos, sua dificuldade de reencontrar a voz após cada texto finalizado; é fantasma ao viver, quando vê e opina, vai ao cinema, lê e fuma, se enoja e se disfarça, viaja e faz resenhas, vai ao futebol e rememora. Antônio Xerxenesky apresenta em seu "A página assombrada por fantasmas" um estranhamento deste tipo. Os nove contos de seu livro são bem curtos, mas devem ter tomado um bom tempo dele para alcançarem sua concisão e potência. São histórias que denunciam um bom leitor, um bom observador, que espalha referências literárias por seu texto como um semeador que imagina antecipar o efeito que elas irão provocar em um eventual leitor. Há muita ironia e jogos mentais nas histórias, todas elas gravitando em torno do mundo cruel dos livros e da literatura. Xerxenesky fala de um detetive literário; de um efebo que encontra seu precursor (ou tenta encontrar); de um escritor que se descobre exaurido; de paróquias literárias (como não rir da Porto Alegre descrita por ele?); de um leitor que imagina encontrar personagens dos livros que leu. Duas histórias são piegas, engessadas por nostalgia (que não necessariamente é dele mesmo), mas talvez ele quisesse ou precisasse que elas produzissem este efeito. Gostei muito do conto que dá nome ao livro, onde ele emula uma voz feminina para descrever uma Buenos Aires assombrada por Jorge Luis Borges. Um outro que gostei muito é "Sequestrando Cervantes", que parece uma versão sarcástica, atualizada, do 'Fahrenheit 451" (de Ray Bradbury). No conto de Xerxenesky ao invés dos livros serem proibidos e queimados eles são reescritos e modificados. A idéia de um programa de computador que interpreta os livros de acordo com a ideologia do leitor é muito boa. Coincidência ou ironia mesmo foi ter lido hoje que Umberto Eco reescreverá seu "O nome da rosa" para torná-lo legível para as novas gerações. Os bons escritores parecem mesmo captar coisas no ar. Enfim, são contos realmente bons, de um sujeito que não alcançou esfumar-se como um bom fantasma, mas parece experimentar com destreza vários truques que aprendeu com seus precursores. Bom livro. Vamos a ver o que ele nos apresentará no futuro. [início - fim 18/07/2011]
"A página assombrada por fantasmas", Antônio Xerxenesky, Rio de Janeiro: editora Rocco, 1a. edição (2011), brochura 13,5x20,5 cm, 127 págs. ISBN: 978-85-325-2658-8

sábado, 16 de julho de 2011

raga

Nunca li um livro de J.M.G. Le Clézio que não abordasse um tema terrível, mas o sujeito é tão genial que o leitor - e ao menos comigo sempre foi assim - acaba se apaixonando pelo texto. Em "Raga" Le Clézio apresenta um relato de viagem, mas há algo de ficção no texto, na forma em que ele apresenta suas reflexões. Le Clézio nos fala das ilhas de um país chamado Vanuatu, um país jovem, que alcançou a independência apenas em 1980. Falando destas ilhas ele fala de todas as pequenas ilhas do Oceano Pacífico, de todo o povo que aprendeu a percorrê-las, que aprendeu a conhecê-las e respeitá-las, até o funesto momento em que foram confrontados com a realidade da chegada dos europeus. Assim como nas Índias, na África e nas Américas, quando a escória da raça branca chegou a miríade de ilhas do Pacífico só trouxe morte, pilhagem e destruição. Le Clézio não nos poupa de descrever alguns destes fatos terríveis, mas ao mesmo tempo ele consegue nos convencer que há lugar para otimismo e esperança no futuro destes povos. Ele descreve uma travessia marítima entre as ilhas, descreve como toda uma tribo se lança ao mar, contra os elementos, sem carregar mais do que o imprescindível, sem levar no peito mais que o conhecimento, a memória e o desejo de um lugar melhor. Ele descreve também a geografia das ilhas principais de Vanuatu, fala das lendas e mitos do povo ali radicado, conta sobre os homens e mulheres que ali viveram. Mas ele fala também das pessoas comuns que estão lá agora, neste início de século XXI, vivendo e se organizando. Trata-se de um livro pequeno, baseado em trabalhos de antropologia e sociologia que ele cita para aqueles interessados em se aprofundar no assunto. A contribuição principal de Clézio é a poesia sutil que ele acrescenta às histórias, às lendas e aos mitos que ouve. Aprende-se um bocado neste livro, que não é panfletário, nem piegas. Na próxima vez que ouvir sobre terremotos no Pacífico, ler sobre vulcões que brotam do mar no círculo de fogo do Pacífico, conversar sobre o efeito do aquecimento global no nível do mar naquela região, tomar ciência dos cruzeiros milionários que vagam por aquelas águas sem pedir permissão, lembrarei de Le Clézio e deste pequeno livro, lembrarei da extraordinária capacidade de resistência deste povo, que encontrou no mito e no sonho uma forma de superar a tragédia de sua história. [início 03/07/2011 - fim 16/07/2011]
"Raga: uma viagem à Oceania, o continente invisível", J.M.G. Le Clézio, tradução de Clóvis Marques, Rio de Janeiro: editora Record, 1a. edição, revista (2011), brochura 12x18,5 cm, 124 págs. ISBN: 978-85-01-08622-8 [edição original: Raga, approche du continent invisible (Paris: éditions du Seuil) 2006]

segunda-feira, 11 de julho de 2011

sodoma e gomorra

Publicado originalmente em duas partes, em 1921 e 1922, ¨Sodoma e Gomorra¨ é o quarto dos volumes do ciclo "Em busca do tempo perdido", de Marcel Proust. Entre cada um dos três volumes anteriores ["No caminho de Swann", "À sombra das raparigas em flor", "O caminho de Guermantes"] observamos um lapso temporal considerável, que correspondem a diferentes estágios da vida do narrador. Já de "O caminho de Guermantes" a "Sodoma e Gomorra" observamos uma continuidade na narrativa. Há trechos que antecipam e/ou fazem retrospectiva de acontecimentos distribuidos nos dois volumes. A transição não é temporal, mas antes na forma de entendimento das coisas do mundo. Este volume tem duas partes, bem diferentes em extensão. Na primeira parte, de umas cinquenta páginas poderosas, o narrador da história descreve sua descoberta da homossexualidade no barão de Charlus. Proust retoma os instantes imediatamente anteriores a seu encontro com Swann, o duque e a duquesa de Guermantes (a adorável sessão dos "sapatos vermelhos da duquesa"). Usando uma série de metáforas botânicas e entomológicas ele descreve como Charlus e Jupien se atraem, fazem a corte e seduzem um ao outro. O narrador entende, retrospectivamente, as atribulações pelas quais passou em todos os encontros que teve com o barão. A segunda parte de "Sodoma e Gomorra" é bem mais extensa, dez ou onze vezes maior que a primeira. Acompanhamos como o narrador alcança o ápice de sua vida mundana, ao ser recebido com reverência no círculo íntimo de relações dos aristocráticos Guermantes. Depois ele decide passar novamente suas férias de verão na região costeira de Balbec. Ali o narrador retoma seus encontros com a burguesia ascendente representada pelos Verdurin. Estes dois mundos (antes os habitantes destes dois mundos) irão estabelecer relações progressivamente mais complexas e reveladoras, tanto de suas virtudes e valores, quanto de suas limitações e defeitos. O tema principal deste volume é o comportamento sexual (notadamente o comportamento homossexual) de homens e mulheres, mas Proust também reflete com exuberância sobre o judaísmo e a política de seu tempo. De certa maneira o caso Dreyfus (um complicado problema que dividiu a sociedade francesa do final do século XIX e início do século XX, envolvendo militarismo, espionagem, política e xenofobismo) serve metaforicamente aos propósitos de Proust de descrever como os indivíduos se relacionam e se comportam em sociedade. O narrador também reencontra Albertine. Seu envolvimento com ela passa por várias metamorfoses, por ciúme e paixão, mas justamente quando ele decide dela se separar descobre que não pode viver sem ela (a paixão é destruidora). Os personagens que Proust cria são críveis, mutáveis e impressionantes, cada um a sua maneira. Nenhum personagem é absolutamente bom ou mau, esquemático ou plano. Apesar da violência com que somos apresentados ao que há de pior no comportamento humano (este deve ser um dos livros menos condescendentes com a espécie humana que já li) depreendemos que até isso é irrelevante, o ser humano é mesmo uma besta capaz dos crimes mais hediondos, das desculpas morais mais canhestras. A nenhum leitor é dada a ventura (ou escusa) de permanecer ingênuo após ler todo o ciclo. O julgamento moral que experimentamos tem a nós mesmos como juiz, jurí, promotor, carcereiro e carrasco. As passagens mais torpes ainda estão por vir, nos três volumes restantes do ciclo. Como já registrei em outras resenhas esta reedição da Globo da tradução original é cheia de mimos para o leitor (prefácio, resumo, caudalosas notas, posfácio), mas nota-se que desta vez o trabalho foi feito sem apuro ou revisão adequada. A paginação do resumo está totalmente errada, o que o torna inútil. Talvez seja a constatação de erros como este (há vários outros, de grafia, menos importantes, mas que poderiam ser evitados) que tenha feito a editora globo interromper a seqüência da reedição. Paciência. Vou reler meus volumes antigos. Ainda há tempo de sobra neste ano. [início 01/05/2011 - fim 11/07/2011]
"O caminho de Guermantes: Sodoma e Gomorra (vol.4)", Marcel Proust, tradução de Mário Quintana, São Paulo: editora Globo, 3a. edição, revista (2008), brochura 16x23 cm, 637 págs. ISBN: 978-85-250-4228-6 [edição original: Sodome et Gomorrhe (éditions Gallimard), 1919-1922]

sábado, 9 de julho de 2011

o silêncio da água

Este é o tipo de livro para ser desfrutado com alguma criança, para ser compartilhado com algum jovenzinho, para ser lido em voz alta para o filho de algum amigo, principalmente aqueles meninos e meninas que ainda não passaram pelos primeiros aborrecimentos desta vida. José Saramago nos conta uma pequena história, onde ilustra como até nas perdas se aprende algo (lembra uma frase de Shakespeare, no Othello: "O homem roubado que sorri, rouba alguma coisa do ladrão"). No caso da história dele um rapaz pesca, vagabundo e feliz, nas margens do grande rio Tejo. Quando está quase a conseguir pescar um grande peixe ele escapa. Procura um novo anzol, uma linha mais forte. Conta sua perda para a avó. Quando volta ao rio e tenta uma segunda vez o peixe não vem. O rapaz se põe a pensar nos sucessos da vida. A história é ilustrada pelo espanhol Manuel Estrada, que utiliza várias técnicas (colagem, aguada, aquarela, grafismos digitais, pastel, óleo) para produzir imagens poderosas. O texto original pertence ao livro infantil "As pequenas memórias", onde Saramago reune lembranças de sua infância e adolescência. Livro bom para estes dias vagabundos de inverno. [início - fim 08/07/2011]
"O silêncio da água", José Saramago, ilustrações de Manuel Estrada, São Paulo: editora Companhia das Letrinhas, 1a. edição (2011), capa-dura 21,5x29 cm, 24 págs. ISBN 978-85-7406-468-0 [edição original: El silencio del agua (Barcelona: Libros del Zorro Rojo) 2011]

quinta-feira, 7 de julho de 2011

a miscelânia de esportes, jogos & ócio de schott

Há uns seis anos li o divertido "A miscelânia original de Schott" e um pouco depois o curioso "A miscelânia da boa mesa de Schott". O que havia de interessante e realmente inspirador nestes dois livros não se encontra em nenhum momento em "A miscelânia de esportes, jogos e ócio de Schott", o terceiro dos volumes dos almanaques modernos inventados por Ben Schott. O formato, a concepção e o projeto gráfico são os mesmos, mas falta fôlego e unidade neste volume. Publicado originalmente em 2004 o livro não mereceu da editora brasileira uma atualização de dados, que seria necessária, por exemplo, nas tabelas de resultados de jogos olímpicos, estatísticas de futebol e de corridas (de carros, de cavalos). Utilizar um almanaque deste tipo é uma atividade totalmente lúdica, irrelevante, própria dos dias vagabundos que encontramos nas férias. Não consigo deixar de associar este livro às propostas de Gustave Flaubert nos seus "Dicionário de idéias feitas" e "Enciclopédia de lugares comuns" mas, claro, Flaubert sabe ser mais irônico e divertido que Schott. Leitura totalmente dispensável, confesso. [início 08/05/2011 - fim 03/07/2011]
"A miscelânia de esportes, jogos & ócio de Schott", Ben Schott, tradução de Alexandre Martins, Rio de Janeiro: editora Intrínsica, 1a. edição (2011), capa-dura 12x19,5 cm, 160 págs. ISBN 978-85-8057-003-8 [edição original: Schott's sporting, gaming & idling miscellany (New York: Bloomsbury) 2004]

segunda-feira, 4 de julho de 2011

se um de nós dois morrer

Semanas atrás li um livro inspirado nos romances e histórias de Enrique Vila-Matas (o bom "Conversas apócrifas de Enrique Vila-Matas", de Kevin Falcão Klein, que já resenhei aqui). Este "Se um de nós dois morrer" também é inspirado por Vila-Matas, mas pertence ao universo da ficção e não do ensaio (como é o caso do livro de Klein). Trata-se de um pequeno livro, bem editado, onde se faz uso de fontes diferentes, cores no texto, fotografias. O resultado, literariamente falando, é mediano. Claro, funciona como homenagem ao "mestre", a Vila-Matas, pois lembra o estilo fragmentado dele, tanto no uso massivo de referências literárias quanto no típico jogo erudito entre escritor e leitor que sepre encontramos em seus livros. A história de Roberto Pires começa com a morte de um escritor chamado Théo (um deus ex machina, claro), que deixa instruções detalhadas para sua namorada seguir após sua morte. A primeira das instruções é fazer com que Sofia (a namorada, arquétipo do conhecimento e sabedoria, claro) leve suas cinzas para o cemitério francês Pere Lachaise, para serem deixadas próximas às tumbas dos escritores que ele mais reverenciava. Ficamos sabendo que ele vivia bloqueado literariamente após der publicado um único livro. Nos anos de bloqueio literário, entre bebedeiras, viagens a França, trocas de namoradas e brigas com seu editor canalha (um personagem enigmático, que poderia aparecer com mais relevo na história a meu juízo, ele reuniu uma série de apontamentos, cartas e notas que acredita úteis como material para um livro, caso cheguem às mãos da pessoa certa: o escritor catalão Enrique Vila-Matas. Sofia, diligente como só os personagens totalmente fictícios sabem ser, presta-se a esta tarefa. Aproveitando a presença do escritor na festa literária FLIP, que acontece anualmente em Paraty ela viaja para fazer a última das vontades de seu namorado. O livro de Roberto Pires tem passagens inspiradas, uns dados interessantes (que da mesma forma que nos livros de Vila-matas podem ou não serem críveis) mas o livro como um todo não me convence. Prefiro os originais de Vila-Matas. Paciência. [início 27/06/2011 - fim 29/06/2011]
"Se um de nós dois morrer", Paulo Roberto Pires, Rio de Janeiro: editora Objetiva, 1a. edição (2011), brochura 14x23,5 cm, 117 págs. ISBN: 978-85-7962-077-5

domingo, 3 de julho de 2011

cuentos negros

"Cuentos Negros" é um presente para todos os aficcionados na prosa de Manuel Vázquez Montalbán. São textos que foram publicados originalmente em jornais. Todos tem Pepe Carvalho como protagonista. O mais antigo é de 1974 e o mais recente de 1997. Mais da metade deste livro corresponde a novela "La muchacha que pudo ser Emmanuelle", publicada originalmente na forma de folhetim, no jornal El país. Nesta novela somos apresentados a uma trama que antecede imediatamente os sucessos do livro "Quinteto de Buenos Aires". Sou daqueles que sempre fiquei curioso sobre a real motivação de Carvalho em se deslocar da España para a Argentina naquele livro. Montalbán usa sua novela para discutir as desgraças do governo militar argentino, a atuação dos grupos paramilitares, as relações entre os aparelhos de repressão franquista e argentino daquele período. Apesar do tema terrível Montalbán consegue com sua prosa irônica e tiradas filosóficas tornar a leitura agradável. A novela é repleta de boas sessões gastronômicas. Biscuter, Charo, Fuster e os demais personagens das novelas policiais de Montalbán aparecem em passagens divertidas. Além da novela o livro inclui cinco contos curtos e dois ensaios. São textos típicos da poética carvalhiana, onde há doses bem distribuídas de história, sociologia, filosofia e literatura. Carvalho também viaja nestas histórias. Além da Argentina e ele vai a Itália (em um divertido texto sobre espionagem) e Portugal (em um belo texto sobre a revolução dos cravos). Este livro (e seu irmão gêmeo, Cuentos Blancos, que também inclui textos inéditos de Montalbán, mas não relacionados às histórias de Pepe Carvalho) é um presente realmente especial. O texto introdutório assinado por Georges Tyras apresenta com paixão a obra de Montalbán (mesmo um leitor já familiarizado com sua obra aprende um bocado). Cabe um último registo. Comprei este livro pela Abebooks e o recebi em menos de dez dias. De Madrid a Santa Maria, sem a intermediação dos correios brasileiros, sem aborrecimentos e por um preço ridículo. Há algo mesmo podre com os correios brasileiros para que isto seja possível. [início 03/06/2011 - fim 26/06/2011]
"Cuentos Negros", Manuel Vázquez Montalbán, edicíon e introducción de Georges Tyras, Barcelona: Galaxia Gutenberg (Circulo de Lectores), 1a. edição (2011), capa-dura 13,5x21,5 cm, 250 págs. ISBN: 978-84-8109-923-2

sábado, 2 de julho de 2011

enchentes

“Enchentes” é o romance de estreia de Guido Kopittke, autor gaúcho com alguma experiência de produção e publicação de livros de contos e outros textos curtos. Seu romance pode ser entendido como uma alegoria, no sentido em que ele faz uma leitura do passado do Rio Grande do Sul utilizando elementos historiográficos. Todavia, também podemos entendê-lo como um conto moral, no sentido em que ele exemplifica para o leitor como as transformações sociais e políticas de um período revolucionário operam e afetam um indivíduo. Confessadamente não se trata de um romance histórico, mas antes uma ficção psicológica, na qual se tenta entender e descrever a motivação para as ações impetuosas de um jovem comerciante gaúcho nos anos que antecedem as mudanças provocadas pela revolução de 1930. Kopittke produz um enredo linear, apesar de fragmentar a voz de seu narrador e tentar alguma heterogeneidade enunciativa. Um comerciante influente de uma cidade próxima a Porto Alegre é convencido a viajar de férias, deixando seus negócios aos cuidados do filho. O núcleo central do romance é a história desse rapaz, que aproveita a oportunidade para imprimir sua marca nos negócios. De alguma forma, ele infere que, apesar da grande influência e poder de seu pai, os negócios devam ser modernizados e adaptados às novas realidades. Suas ações para alcançar esse objetivo são antes fortuitas e intuitivas que realmente planejadas. Há nele elementos modernos, transformadores, mas também um romantismo atávico, que o impede de compreender na totalidade o alcance de suas ações. Kopittke usa vários personagens para criar os cenários onde seu personagem principal confronta seus sonhos e seus planos com a realidade objetiva. Kopittke se preocupa com a adequação das formas de expressão de seus personagens. O romance é dividido nas três partes clássicas de um drama (definição, complicação, resolução). Na primeira parte, as motivações do rapaz são apresentadas. Na segunda, um elenco de personagens de apoio surge para criar alguma tensão, propor alternativas, gerar reviravoltas. Na última, Kopittke apresenta seu desfecho. Mas o leitor emerge do romance sabendo que esse final poderia ser outro, como ocorre na vida, onde, frente às mesmas condições, aos mesmos problemas, cada indivíduo, por conta de um ou outro detalhe insignificante, experimenta e acolhe soluções bastante distintas. Esse romance parece ser o resultado do projeto de entreter honestamente, sem grandes pretensões intelectuais, nem literárias. Kopittke usa o que seria material típico de um soturno e eventualmente aborrecido romance histórico para produzir uma reflexão ligeira sobre as motivações de indivíduos frente aos desafios da vida. O livro produzido pela editora Dublinense tem uma capa bastante inspirada. Seu designer explora com exuberância as possibilidades gráficas. Isso pode ser apreciado nos detalhes refletidos espalhados pelo livro (nos títulos dos capítulos e na numeração, por exemplo), elementos que jogam com o tema central da história de uma forma particularmente feliz. Enchentes parece se inspirar em Il gattopardo (O leopardo), filme de Luchino Visconti, de 1963. Há muitos clichês, frases feitas e termos gauchescos nesse livro. É um artifício limitante mesmo considerando que toda trama se passa no Rio Grande do Sul do início do século passado. É um livro linear, previsível. Um leitor ingênuo pode se satisfazer com uma história bem contada, mas um leitor reflexivo pode chegar a se irritar com a ausência de algum desafio que seja digno de nota. Kopittke povoa sua história com mais de duas dezenas de personagens. Um excesso, mesmo que todos tenham alguma função no enredo. Como a história se concentra em poucos dias, o desenvolvimento da trama depende muito do acaso, com soluções demasiado artificiais e esquemáticas. Temas que poderiam tornar-se importantes, como culpa, emancipação feminina, justiça e redenção, são tratados muito superficialmente. De qualquer forma “Enchentes” é um livro que vale o tempo de leitura. [Em tempo: esta resenha foi produzida originalmente para o Campeonato Gaúcho de Literatura de 2011, do qual fui juiz. Em função do formato desse campeonato esta resenha compartilha idéias com aquela do outro livro que julguei: "A misteriosa morte de Miguela de Alcazar", de Lourenço Cazarré]. [início - fim 25/06/2011]
"Enchentes", Guido Kopittke, Porto Alegre: editora Dublinense, 1a. edição (2010), brochura 14x21 cm, 158 págs. ISBN: 978-85-62757-08-2

sexta-feira, 1 de julho de 2011

a misteriosa morte de miguela de alcázar

Há livros que nos provocam intelectualmente e outros que simplesmente se deixam desfrutar, sem muito esforço. É o caso deste divertido "A misteriosa morte de Miguela de Alcazar", de Lourenço Cazarré, jornalista gaúcho radicado em Brasília. Cazarré é um autor experiente e já premiado, com mais de 30 livros publicados, entre contos, romances e textos dedicados ao público infanto-juvenil. "A misteriosa morte de Miguela de Alcazar" é antes uma sátira que um romance policial canônico. O deboche é explícito. Uma versão anterior dele foi publicada na forma de folhetim em um jornal brasiliense em meados dos anos 1990. Por ter sido pensado originalmente como um folhetim, o livro ainda guarda algo do ritmo e truques deste gênero, seja no tom com que o narrador se comunica com o leitor, pontuando a história com divagações; seja na sucessão de “ganchos” que aparecem ao final de cada capítulo, postergando a elucidação da história. O enredo é simples: um jornalista é escalado por seu editor para cobrir um inusitado encontro de velhos escritores de romances policiais. O encontro é sigiloso e acontece em um hotel de Brasília, administrado por um gerente bem conhecido do editor. Tanto o jornalista quanto o editor e o gerente são terrivelmente mal-educados, preconceituosos, repulsivos. Já os escritores inventados por Cazarré são caricaturas de escritores reais (entre eles Dashiell Hammett, Agatha Christie, Georges Simenon e Jorge Luis Borges). Ele faz com que cada um desses personagens de alguma forma tenha se familiarizado com o português, que falam com acentos regionais bastante marcantes. Um fala com acento mineiro, outro carioca, os demais em registros gauchesco, nordestino e paulistano. Há ainda um deles que se expressa por meio de um rascante portunhol. Esse artifício dá a Cazarré oportunidade de fazer seu narrador arriscar alguma sociologia selvagem, na qual as diferenças regionais brasileiras são contrastadas com a forma de resolução de crimes utilizadas por cada detetive, características de seus países de origem. Como é de se esperar em um romance desse tipo, alguém morre (o título do livro já antecipa isso, claro). Cabe, então, aos detetives, com a ajuda do jornalista, do gerente do hotel e de um delegado (tão pernóstico quanto os dois) descobrirem quem matou Miguela de Alcázar. Trata-se do típico problema de crime em uma sala fechada, mais do que conhecido por quem aprecia literatura policial. Esse é um romance que parece ser o resultado de um projeto de entretenimento honesto, sem grandes pretensões intelectuais, nem literárias. Cazarré brinca com a impossibilidade de se inventar uma história policial que não tenha sido ainda experimentada. É um livro bem editado, tem uma capa divertida, boa distribuição do espaço e inclui bons detalhes gráficos. O livro lembra alguns aspectos de Murder by death (Assassinato por morte), filme de Robert Moore, de 1976. Os personagens de Cazarré abusam do uso de clichês, frases feitas e termos regionais (em sua maioria gauchescos, mas há "sotaques" para todos os gostos). Parece que se aferrando ao efeito jocoso que esses termos provocam no justifica-se a forma de agir de seus personagens, acrescentando alguma graça e relevo a eles. É um livro linear, previsível. Um leitor ingênuo pode se satisfazer com uma história bem contada, mas um leitor reflexivo pode chegar a se irritar com a ausência de algum desafio que seja digno de nota. De qualquer forma Lourenço Cazarré domina bem a maquinaria da escrita literária. Mesmo um sujeito que se irrite com a proposta de seu enredo reconhece que Cazarré sabe conduzir sua história com apuro técnico sofisticado e poderoso. [Em tempo: esta resenha foi produzida originalmente para o Campeonato Gaúcho de Literatura de 2011, do qual fui juiz. Em função do formato desse campeonato esta resenha compartilha idéias com aquela do outro livro que julguei: "Enchentes", de Guido Kopittke]. [início - fim 24/06/2011]
"A misteriosa morte de Miguela de Alcazar", Lourenço Cazarré, Rio de Janeiro: editora Bertrand Brasil, 1a. edição (2009), brochura 14x21 cm, 176 págs. ISBN: 978-85-286-1379-7