sexta-feira, 20 de julho de 2007

seny y rauxa

Barcelona é um livro estupendo. É ao mesmo tempo um longo ensaio sobre a história de uma cidade, um excelente guia de viagens, um compêndio de críticas de arte e de artistas, uma reflexão desapaixonada sobre um povo e uma cultura. Conhecia Robert Hughes de seus documentários sobre arte moderna produzidos pela BBC nos anos 1980 e veiculados pela TV cultura de São Paulo: "O Choque do Novo" e "Visões da América". Lembro-me das conversas longas sobre cada um dos episódios que tinha com don Renato Cohen, hugheano de primeira hora. Hughes nasceu na Austrália mas se radicou ainda jovem no continente europeu em meados dos anos 1960. Desde 1970 é crítico de arte da revista Time em Nova York. "Barcelona" foi publicado às vésperas das olimpíadas de 1992 e textualmente se limita a descrever a história da cidade apenas até a morte de Antônio Gaudí, um pouco antes do início da guerra civil espanhola, no final dos anos 1930. O projeto inicial dele envolvia focar-se na arquitetura para descrever o período modernista catalão (mas conhecido em outros lugares como período art noveau, que vai da segunda metade do século XIX até 1910, aproximadamente). Mas segundo ele é impossível descrever estes 30, 40 anos sem ao menos refletir sobre os 2000 anos anteriores, desde o surgimento de Barcelona como pequena colônica na época de Augusto. Os capítulos não são esquemáticos. Quase todos os temas são apresentados sem atropelo, fundindo os fatos históricos mais importantes, a análise das influências, as mitologias, as descrições, as biografias, os relatos, as citações, a crítica de arte em um todo muito agradável de ler. O estilo é mesmo a marca de Hughes. Mesmo sendo um texto de fácil leitura em nenhum momento encontramos argumentos rasos e divagações inúteis. Contando com um detalhado guia remissivo e uma bibliografia extensa certamente este texto pode ser utilizado como porta de entrada ao universo da cultura catalã tanto por arquitetos, quanto artísticas plásticos, músicos, historiadores, curiosos e também, incrível, por viajantes em busca de sugestões de passeios turísticos. Eu li boa parte do livro com um mapa de Barcelona ao lado, procurando as referências e tentando lembrar um tanto dos passeios que fiz. Barcelona é mesmo " la gran encisera", a grande feiticeira, como o poeta Maragall escreveu um dia: "orgulhosa, traiçoeira e vulgar", mas completamente deles, orgulhosos, traiçoeiros e até vulgares, catalães.
“Barcelona”, Robert Hughes, tradução de Denise Bottman, Editora Companhia das Letras, 1a. edição (1955) ISBN: 85-7164-443-8

terça-feira, 17 de julho de 2007

musa

Na feira do livro de Porto Alegre do ano passado comprei este livro de poemas do Joelson. Era dia de festa, encontros e bate-papo, mas a sessão de autógrafos acontecia pela primeira vez naquele pavilhão afastado do espaço central, o que irritou muita gente acostumada as outras 50 vezes em que o burburinho do centro animava os viventes de POA. Ele eu já conhecia das minhas andanças pelos sebos de Porto Alegre, na convivência camarada na livraria Noigandres do Zeca, João e companhia. Terçamos gostos e descobrimos uma ou outra afinidade. Na época chamou-me a atenção a caixinha de remédios em que parece se apresentar o livro, pois não muito tempo antes um outro poeta amigo meu havia feito algo deste tipo: o Escobar com seu adorável receituário do "Milongol". Deixei o livro para ser lido em outros tempos e eis que neste final de semana o clima frio fez-me dedicar-me a ele. De fato o paralelo temático com o Escobar é grande, não só a apresentação é parecida, mas o tratamento pessoal aos poemas e aos temas também se aproximam. É como se uma musa brincalhã tivesse tocado a ambos e ficado a observar o que cada um faria com sua inspiração. No caso do Joelson o livro tem um ciclo de poemas centrais (prozac+annas) que correspondem a doses progresivamente mais altas de um medicamento qualquer. As elegias vão ficando mais complexas e mais fortes, assim como um sujeito que teima em ficar viciado em um determinado remédio que deve salvá-lo de um mal maior. Ao mesmo tempo ele vai se aprofundando nas histórias e lembranças. Há passagens realmente mágicas. Sua garimpagem de temas e as curtas elegias são muito tocantes. Gostei. Cabe dizer que a edição é muito bem cuidada mesmo. Há ilustrações e um tratamento gráfico que enobrece o livro (em que pese o fato dos poemas se defenderem sozinhos, vale dizer). A Brejo é uma jovem editora adminstrada por uma jovem brigada de entusiastas lá de Porto Alegre. É deles a edição do "Os Loureiros estão Cortados", do Dujardin, lançada em 2005, certamente um marco nos estudos joyceanos brazucas e sei que as peças completas do Alfred Jarry (Ubu Rei, Ubu cornudo, Ubu no outeiro e Ubu acorrentado) estão para sair do forno ainda este ano. Se é que os poetas se encontram pelas amizades e pelos temas estou certo que cedo ou tarde Joelson e Escobar estarão a ler juntos algo para os amigos. E se é que os projetos inovadores no mercado livreiro garantem alguma imortalidade a seus editores a editora Brejo merece nosso carinho e atenção.
elegias prozac+annas & outros poemas, Joelson Ramos, Editora Brejo, 1a. edição (2006) ISBN: 85-99450-03-4

segunda-feira, 16 de julho de 2007

moçambique

Este curto livrinho de contos é muito bom de se ler. Comprei no mesmo dia em que vi uma exposição de fotografias de Moçambique na CESMA. A exposição registrava um tanto o quanto a AIDS têm prejudicado este país que assim como o nosso foi colonizado por Portugal, mas teve o azar de continuar colônia por quase 150 anos mais do que nós. Quando portugal saiu de Moçambique em 1975 levou consigo mais do que as riquezas que explorou por 500 anos. Um amigo meu esteve lá, dando aulas de português, nos anos 80 e contava aborrecido o quanto era difícil implementar as atividades mais cotidianas, como escovar os dentes, preparar um café da manhã, abrir uma lata de ervilhas, telefonar para alguém. Mas vamos ao livrinho de contos. Trata-se de um exercício de fixação de contos e mitos locais promovidos por padres Salesianos que mantêm uma escola em Moçambique desde 1975. Os alunos de nível médio não são jovens, têm entre 19 e 27 anos. O analfabetismo é altíssimo por lá, mais do que 60% da população é ágrafa mesmo em Ndau, a língua original deste povo. Os contos são simples, muito heterogêneos, mas têm aquela força intrínsica das mitologias mais antigas. Se por força de uma hecatombe nuclear quase tudo o que temos registrado da cultura universal desaparecesse e uma espécie sobrevivente encontrasse fragmentos deste "Nganos" nos escombros de minha biblioteca, certamente o colocaria na mesma prateleira onde teria lugar também as Metamorfoses de Ovídio, ou as Mil e Uma Noites, por exemplo. São histórias curtas que devem ter sobrevivido graças ao talento, invenção e imaginação de homens e mulheres, de avós e netos, de cantadores à beira de fogueiras espalhadas por este país. Difícil não torcer o nariz para o glorioso Portugal e não lamentar a sorte deste povo. Longa vida aos Ndaus.
Nganos: Contos Tradicionais Moçambicanos, Alexsandro dos Santos Machado, Domingos Pedro Zina Faz-Ver, Letícia Duarte (organizadores), Editora La Salle, 2a. edição (2007) ISBN: 85-89344-53-3

sexta-feira, 13 de julho de 2007

homens-bonsais

Vi este livrinho na CESMA, na sessão de livros infantis, e estranhei o nome do autor. Descobri que o Manolo Montalbán também se aventurou pela literatura infantil. Li em uma viagem sossegada de ônibus pensando nos paralelos possíveis com seus livros para adultos e para aborrecidos contumazes como eu. No livro um grupo de jovens estranha a presença de um criador de bonsais na cidade e seus hábitos de recluso. Aos poucos eles descobrem que além de bonsais típicos ele utiliza a mesma técnica utilizada nas árvores para tentar obter versões em miniatura de cachorros e seres humanos. Expulso o dr. Moreau de Montalbán um outro sujeito estranho ocupa o terreno de sua casa e constrói ali um castelo de vidro. A curiosidade dos jovens faz com que eles novamente enfrentem o desconhecido. Trata-se mesmo de um esforço por apresentar aos jovens leitores alternativas à massificação do mundo moderno, onde de fato todos estão sujeitos à miniaturização de seus cérebros, embotados por demandas artificiais, bobagens, mitos e multiplicação de ignorância. Não sei avaliar se esta abordagem toca um jovem leitor, pouco familiarizado com o contexto e os protagonistas que governam os temas da vida moderna. De qualquer forma é um livro que leva o leitor a pensar na sua vida e nos seus hábitos. A metáfora dos homens-bonsais é muito boa mesmo. Em tempos menos politicamente corretos já usei o termo anão-mental para descrever estes escravos da estupidez e estultice que graçam nestes pagos tupiniquins. Estamos mesmo rodeados de néscios, sandeus, abúlicos de toda sorte, pascóvios incapazes de completar uma frase com algum significado que seja. Millôr Fernandes estava certo quando criou o neologismo "idioletice" para descrever o comportamento dos milhões de idioletas deste Brasil, de homens que têm um vocabulário pessoal único e incompreensível para os demais. Montalbán descreve como a juventude pode eliminar os criadores de homens-bonsais, e nisto devemos partilhar um tanto seu otimismo.
“O Senhor dos Bonsais”, Manuel Vázquez Montalbán, tradução de Rosa Freire d'Aguiar, Editora Companhia das Letrinhas, 1a. edição (2002) ISBN: 978-85-359-0029-2

segunda-feira, 9 de julho de 2007

tango


Acabei de terminar o Quinteto de Buenos Aires, livro do Vazquez Montalbán. O livro já estava esgotado apesar de ter sido publicado recentemente (já comentei este fenômeno editorial aqui). Encontrei em um sebo aqui mesmo de Santa Maria. Sorte grande a minha pois este é o último volume da série Carvalho que me faltava ler (isto é, dentre aqueles traduzidos para o português). O livro é na verdade um dos últimos da série, correspondendo à ação imediatamente anterior ao volume “O Homem de Minha Vida”, que já li e resenhei aqui há poucos meses. No “Quinteto” o detetive Carvalho se desloca para a Buenos Aires do governo Menen, em meados dos anos 90. Sua missão é encontrar um primo seu, filho de um tio catalão rabugento. Este primo, que já há muito tempo havia se radicado na Argentina, casou-se, e foi preso durante o golpe de estado dos anos setenta. Sua mulher foi morta. Sua filha sequestrada, desapareceu. A partir daí o livro discute muito dos problemas enfrentados pela Argentina na redemocratização, tímida ainda após os anos violentos do regime militar. Há muito o que falar sobre os mortos e desaparecidos; sobre a guerra idiota pelo controle das Malvinas/Falklands, que desencadeiou a queda do regime ditatorial; do processo de anistia, mal conduzido e não cicatrizado ainda hoje. Apesar do livro ser muito interessante, servindo para lembrarmos do ritmo portenho, das livrarias, dos cafés, das conversas sanguíneas com os argentinos, há um excesso de casos paralelos ao principal desta vez. Acredito que pelo fato da ação do livro envolver muitos meses, Montalbán tenha optado por fazer com que seu personagem principal, o detetive Carvalho, passasse a trabalhar regularmente na capital argentina em parceria de um velho detetive local. Estes “bicos” envolvem vários casos menores, cada um deles exemplificador de um aspecto da cultura argentina, ajudando o autor a descrever a paixão pelo boxe e pelo futebol, mitos da comunidade judaica ali radicada, os clubes de gastronomia portenhos, o peronismo, o tango, o dia a dia dos cafés, a presença imorredoura de Borges, os vestígios não removidos da guerra suja e do aparato policial de militares envolvidos na ditadura. Inegavelmente é bem escrito e há as inevitáveis receitas e combinações de vinhos de sempre. Há um excesso de mortes violentas desta vez, mas condizente com o exagero argentino no período militar. Li com prazer mas já um tanto saudoso do personagem. Tenho outros livros do Montalbán, mas são de ensaios e de crônicas. O ano Montalbán se encerrou mesmo, vamos partir para outros desafios (o Miles já está bem adiantado, o Robert Hughes e sua Barcelona também). Depois eu conto mais.
“O Quinteto de Buenos Aires”, Manuel Vázquez Montalbán, tradução de Eduardo Brandão, Editora Companhia das Letras, 1a. edição (2000) ISBN: 85-359-0029-2